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5. LEI ANTICORRUPÇÃO BRASILEIRA (LEI Nº 12.846/2013)

5.2 Os atos lesivos

Distintamente dos modelos regulatórios adotados pelo FCPA e pelo UKBA, não se limitou, a Lei Anticorrupção, à repressão da corrupção ativa e/ou passiva, desfiando, além da tipificação da corrupção em si, outras duas linhas de ilícitos a partir da matriz constituída pela cabeça do art. 5º.

Desse modo, três são os núcleos de comportamentos proibidos: (1) o primeiro está centrado no oferecimento de vantagem indevida, e se desdobra nas condutas de (a) prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; (b) financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei; e (c) utilizar-se de interposta pessoa, física ou jurídica, para

275 Observe-se, como exemplo mais concreto, o processo administrativo sancionador previsto

na Lei Antitruste brasileira (Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011), direcionado à apuração e repressão das infrações à ordem econômica ali também especificadas.

ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; (2) o segundo se relaciona a fraudes em licitações e contratos: (a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; (b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; (c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; (d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente; (e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo; (f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou (g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública; (3) a terceira hipótese torna ilícita a conduta de dificultar a atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.

Bertoncini (2015: 158) conceitua tais ilícitos, no gênero, como atos típicos – por exigência da natureza punitiva –, antijurídicos, e objetivamente imputáveis às pessoas jurídicas, extraindo desse conceito duas importantes consequências: referida relação de ilícitos é exaustiva; e, por ausência de previsão legal, não admitem – as infrações, a punição pela forma tentada.

A maioria ilícitos, pela forma de estruturação semelhante a tipos penais já consolidados no nosso sistema276, não guarda maior complexidade dogmática. Isto

não elimina a necessidade de referir, porém, que a vantagem indevida mencionada indistintamente em alguns tipos de ilícito não necessita ostentar conteúdo patrimonial.

De modo particular, o ato lesivo previsto no inc. V instaura um tipo de ilícito de obstrução da justiça, com inspiração no art. 25 da Convenção da ONU contra a Corrupção277. Segundo esse dispositivo, constitui infração dificultar a atividade de

investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir

276 Cf., p.ex., o crime do art. 337-B, do Código Penal (corrupção de funcionário público

estrangeiro), bem como os crimes previstos nos arts. 89 a 98 a Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações).

em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.

São dois os comportamentos: dificultar a atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, e intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional. A abertura típica reclamará considerável esforço dogmático para densificar o que está contido na área de proibição, especialmente porque, ante a falta de delimitação da qualidade da investigação ou fiscalização a ser afetada, também eventuais embaraços às atividades de fiscalização das agências reguladoras podem, em tese, configurar o ilícito.

Uma proposta não livre de polêmica acerca do que não está ali inserido, porém, começa a aflorar. Nesse sentido, Carvalhosa (2015: 34) refere que a conduta de dificultar a atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos não compreende o dever de a pessoa jurídica investigada colaborar com fiscalizações, investigações e requisições que lhe forem feitas, por força do nemo tenetur se ipsum accusare. Referido tipo, prossegue o autor, com o qual concordamos, deve ser entendido como delito de fraude processual e de criação de entraves à fiscalização, como destruição de provas, aliciamento de testemunhas, falseamento de documentos, etc., e não propriamente como obrigação de prestar colaboração278.

Aplica-se a Lei Anticorrupção, de modo indistinto, às sociedades empresariais279 e simples, personificadas ou não, independentemente da forma de

organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente (art. 1º, parágrafo único)280.

278 Em idêntico sentido, BERTONCINI (2015: 195-200) e HEINEN (2015: 144-145). Uma

detalhada análise do crime definido no art. 294 do Código Penal espanhol, de conteúdo semelhante ao ilícito em causa, estruturado qual um delito de desobediência às potestades de agências administrativas de vigilância e proteção, incluso com referência à aplicação do nemo tenetur se ipsum accusare às pessoas jurídcas, pode ser conferida em SILVA SÁNCHEZ (2003: 307 e ss.).

279 Segundo CARVALHOSA (2015: 62), “quando a presente Lei fala em sociedades

empresariais, não está identificando aquelas com fins lucrativos que organizam os fatores de produção, no conceito clássico de empresa. Está a Lei se referindo à forma de organização e de governança da pessoa jurídica, independentemente de ter ela fins lucrativos ou associativos, beneméritos, assistenciais, etc.”

280 Conforme o art. 1.126 do Código Civil, é nacional a sociedade organizada de conformidade

Como adverte Costódio Filho (2015: 76), seguiu a Lei o critério adotado pelo novo Código Civil, de inspiração italiana, que unificou o direito obrigacional antes dividido entre Código Comercial e o antigo Código Civil, abandonando a distinção entre sociedades civis e comerciais para fixar como empresárias as sociedades que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro, com arquivamento dos atos constitutivos nas Juntas Comerciais, incluso as sociedades por ações, independentemente do seu objeto; e simples as demais sociedades (art. 966, parágrafo único, Código Civil).

Os tipos de ilícito alcançam igualmente as sociedades estrangeiras que aqui tenham atuação ainda que temporária, seja por meio da contratação de agentes, prepostos, filiais, ou por associações a empresas locais (joint ventures)281.

Trata-se, portanto, de rol amplo, não exaustivo, de sujeitos ativos, aplicável igualmente às empresas estatais282 nacionais e estrangeiras que desempenhem

atividade econômica em regime concorrencial283.

Como antes se revelou, o próprio regime de enforcement do FCPA, aliás, pressupõe compreendido no termo “dirigente estrangeiro” também empregados e dirigentes das empresas controladas pelo Estado (state-owned enterprises) que possuam fins lucrativos, papéis negociáveis em bolsa, e espaço de atuação no mercado, forma de organização público-empresarial geralmente encontrada nas áreas de exploração de petróleo e gás284.

Para os efeitos da Lei Anticorrupção, a responsabilidade subsistirá ainda que posteriormente se verifique hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária (art. 4º). Nas hipóteses de fusão e incorporação, porém, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, inaplicáveis as demais sanções se decorrentes de atos e

281 Cf. COSTÓDIO FILHO (2015: 78).

282 Cf. COSTÓDIO FILHO (2015: 85), que admite a responsabilidade indistinta de empresas

estatais que prestem serviços públicos e/ou desempenhem atividade econômica, todavia excluindo algumas sanções incabíveis para as primeiras (p.ex., dissolução e interdição de atividades).

283 Acrescentaríamos nós, vocacionada que está, a Lei Anticorrupção, também, a igualar

oportunidades globais de negócios.

284 Cf. KOEHLER (2014: 83-84). Interpretação que casa com a determinação constante do art.

173, §1º, inc. II. da Constituição Federal, de que a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica devem sujeitar-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. HEINEN (2015: 47-49) igualmente refere o problema, embora não expresse tomada de posição.

fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados (art. 4º, §1º).

Por fim, as sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos na Lei Anticorrupção, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado.

Já a definição do sujeito passivo dessas infrações não guarda maior dificuldade, visto tratar-se de ilícitos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. No primeiro caso, a administração pública nacional compreenderá os entes e órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional, de todos os níveis de governo285 , sentido este que colmata pela qualidade de funcionário

público, nos casos, p.ex., de suborno, conceito densificado pelo art. 327 do Código Penal286-287.

Por outro lado, o §1º do art. 5º da referida Lei considera administração pública estrangeira os órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro; considera-se também administração pública estrangeira, por equiparação, nos termos do §2º desse mesmo artigo, as organizações públicas internacionais.

O modelo de responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas, habilitante tanto das sanções cíveis como administrativas, está referido no art. 1º e no art. 2º da Lei Anticorrupção, e se caracteriza pela inexigência de que os atos lesivos antes mencionados sejam praticados com dolo ou culpa288 , por parte de diretores ou

285 Cf. HEINEN (2015: 64-65).

286 Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora

transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. §1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. §2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.

287 Cf. BERTONCINI (2015: 165).

288 Cf. BERTONCINI (2015: 159). Ausente qualquer ônus de prova, diríamos, por parte da

executivos (top management), funcionários, ou terceiros associados ou contratados289.

O ato lesivo deverá ser praticado, decerto, no interesse ou benefício da pessoa jurídica, exclusivo ou não (art. 2º)290. Para Bottini & Tamasauskas (2014:

126),

‘O escopo do legislador é fortalecer o ambiente institucional de repressão à corrupção. Ao suprimir a exigência da constatação do dolo ou da imprudência para imputar as sanções previstas, quer-se incentivar a adoção de politicas de integridade e compliance, que evitem qualquer ligação da empresa com pessoas ou outras entidades que possam lhe trazer problemas ou danos de imagem.’

Além do mais, conforme disciplina o art. 3º, a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito, responsabilidade, neste caso, a ser cobrada na medida da culpabilidade de cada qual, como é da tradição jurídica interna (art. 3º, §2º), e limitada às infrações penais, administrativas e/ou civis eventualmente correlatas aos atos lesivos 291 , nunca por imputação destes mesmos atos, no âmbito da Lei

Anticorrupção, visto que inaplicáveis as disposições e sanções desta Lei às pessoas físicas292.

289 Cf. BOTTINI & TAMASAUSKAS (2014: 126). Estes autores, porém, conexionam e

legitimam a responsabilidade objetiva, na sequência, à exclusiva sanção de reparação do dano. Para as demais sanções, defendem uma imputação amparada em critérios de culpabilidade organizativa da corporação, excluindo responsabilidade quando o ato lesivo ocorreu a despeito da existência de efetivo programa de compliance, p.ex (2014: 127-129). No mesmo sentido, cf. SERRANO (2014: 110-114).

290 Uma responsabilidade que pede, em resumo, conforme HEINEN (2015: 68), prova da

existência de uma conduta (ativa ou omissiva), de um resultado, e de um nexo de causa e efeito entre ambos.

291 A exemplo, em caso de corrupção de funcionário público estrangeiro, ter-se-ia consumado,

para o agente, o crime do art. 337-B do Código Penal, e para a empresa a hipótese do art. 5º, inc. I da Lei Anticorrupção, satisfeitos que sejam os demais pressupostos.

292 Cf. CARVALHOSA (2015: 57) e COSTÓDIO FILHO (2015: 86 e ss.). Assim se entende, de

acordo com este último, porque a exposição de motivos da Lei deixou clara essa idéia; porque as sanções cíveis e administrativas guardam pertinência com a estrutura e função econômicas das corporações; e, por fim, acrescentamos, porque o art. 1º da Lei o determina, excluindo referência punitiva às pessoas naturais. O art. 3º da Lei Anticorrupção («a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito invocado»), é assumido por HEINEN (2015: 93 e ss.) como suficiente a justificar a imputação a pessoas físicas de infrações à Lei Anticorrupção, à semelhança, ainda segundo HEINEN, da aplicação do FCPA também a pessoas físicas. Esse art. 3º, todavia, não determina a punição de dirigentes, administradores ou funcionários por aquela legislação; apenas ressalva a possibilidade de que respondam, em terreno próprio, pelos atos que praticarem (cf. COSTÓDIO FILHO, 2015: 88). Ademais, o FCPA aplica-se a pessoas físicas porque veicula – de modo não exclusivo – disposições de natureza criminal, a

Trata-se, portanto, de um modelo de responsabilidade do tipo vicarial, exsurgente do comportamento daquele que age em nome ou interesse da empresa293.