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7. AS INVESTIGAÇÕES INTERNAS E O ESPECÍFICO

7.3 Premissas de ordem jurídica

7.3.3 Funcionalização: o empregado como alvo

A premissa anterior conduz à necessária consideração acerca da função exercida pela prova compartilhada no processo penal.

Acentuou Gruner (2007: 279) que a tarefa de investigação das empresas tem fornecido ao DOJ, na aplicação do FCPA, um meio absolutamente seguro e econômico de obtenção de prova, habilitando-o a construir seus casos criminais contra empregados e diretores458, sem as aparentes travas das garantias penais459.

normativa que resulta da interpretação conjugada dos artigos 17.º, n.° 1, alínea a), 18.° e 43.°, n.° 3, da Lei n.° 18/2003, no sentido de obrigar o arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e documentos à Autoridade da Concorrência”, inconstitucionalidade esta especialmente decorrente, segundo o recurso, da violação do “direito (ou a garantia) fundamental à não autoincriminação ou nemo tenetur se ipsum accusare, enquanto direito que se pode definir como o direito do arguido a não ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação”. No referido Acórdão ficou dito, em apertada síntese, que “o direito à não autoincriminação, nomeadamente na vertente de direito ao silêncio, tendo o seu campo de eleição no âmbito do direito criminal, estende-se a qualquer processo sancionatório de direito público”, mas que, todavia, “no âmbito contra-ordenacional – dada a diferente natureza do ilícito de mera ordenação e a sua menor ressonância ética, comparativamente com o ilícito criminal – o peso do regime garantístico é menor, conforme já defendido por este Tribunal, nomeadamente no Acórdão n.º 659/2006”. Esclareceu ainda o Tribunal, na sequência, que, “não obstante ser difícil traçar uma fronteira absoluta entre a natureza das infracções criminais e contra-ordenacionais, a ponto de apenas se poder afirmar, indubitavelmente, que ‘constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima’ (artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 433/82), tal não significa que o âmbito de liberdade do legislador ordinário, quanto à decisão de reprimir determinadas condutas com os mecanismos sancionatórios penais ou apenas intervir com sanções de carácter ordenativo, não seja constitucionalmente vinculado e dependente, no limite, duma distinção substantiva entre os dois ilícitos,” a implicar, de consequência, que no “contexto distintivo do direito de mera ordenação social, justifica-se que o conteúdo potencial máximo do direito à não autoincriminação sofra significativa compressão, face à consagração de deveres de colaboração impendentes sobre as entidades sujeitas ao regime da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho”. Dentre tais deveres, ainda conforme o Tribunal Constitucional, “a obrigação de prestar informações e entregar documentos, à Autoridade da Concorrência, como entidade reguladora – fortalecida pela cominação de coima – surge como condição de eficácia da efectiva salvaguarda do princípio da concorrência – constitucionalmente protegido, designadamente em decorrência da alínea f) do artigo 81.º da Lei Fundamental, como já vimos – num domínio em que a colaboração dos agentes económicos se torna fundamental para a fiscalização, verificação e sancionamento da existência de comportamentos infraccionais”. Essa decisão, como refere BRANDÃO (2014: 39), conferiu “o aval prévio” de que necessitava o legislador português para a edição da Lei nº 19/2012, que aprovou o Novo Regime Jurídico da Concorrência, no qual se estabeleceu uma obrigação de entrega de documentos à Autoridade da Concorrência, por parte das empresas e demais pessoas envolvidas, sancionada a falta como contra-ordenação (art. 18), em situação de “derrogação da prerrogativa contra a auto-inculpação que tende a ser vista como constitucionalmente admissível” (cf. BRANDÃO, 2014: 39).

458 Cf. SPIVACK & RAMAN (2008: 160).

O papel principal do processo penal contra as empresas, no enforcement do FCPA, deslocou-se da acusação e punição para a ampla e generalizada reforma da cultura corporativa, com foco nas questões prospectivas de governança e compliance, e menor interesse nos problemas retrospectivos decorrentes da pesquisa da responsabilidade e culpa, campo reservado, este, para a persecução de empregados e agentes460 , tudo facilitado, evidentemente, pelos acordos pré-

processuais.

Os altíssimos valores envolvidos nos custos dessas investigações empresariais internas desempenharam papel de relevo na conformação dessa política acusatória461. Segundo Estrada I Cuadras & LLobet Angli (2013: 200), em

referência aos aproximados 70 milhões de dólares pagos em investigações internas pela empresa United Health,

‘(…) não é de estranhar-se que a política criminal adotada pelos procuradores federais do DOJ tenha sido a de centrar sua estratégia acusatória na responsabilidade individual das pessoas naturais integrantes da pessoa jurídica, no lugar desta última, o contrário do que havia sido sua política inicial. As empresas ou organizações passaram, deste modo, de alvo das acusações penais dos procuradores federais para agências privadas de investigação ao seu serviço.’

A referência que se vem de fazer, acerca de uma funcionalização do enforcement do FCPA via acordos de compliance, para a produção de provas contra as pessoas físicas, pode encontrar também repercussão na aplicação do UKBA e da Lei Anticorrupção. No UKBA, por força das semelhanças encontradas entre o primeiro DPA celebrado pelo SFO e o programa modelo estudado (DOJ x BGH), ambos com destaque para a ampla cooperação com autoridades462; Na Lei

Anticorrupção, pela declarada opção legislativa de incluir como pressuposto do acordo de leniência a efetiva colaboração das pessoas jurídicas com as

460 Cf. SPIVACK & RAMAN (2008: 161).

461 Informa KUHLEN (2013: 60), p.ex., a propósito do caso SIEMENS, que referida empresa

“contratou o escritório Debevoise & Plimpton para descobrir, através de amplas investigações internas (internal investigations), tanto os casos de corrupção como os departamentos frágeis da corporação que os favoreciam. Nesta tarefa, os advogados foram auxiliados pela empresa de auditoria Deloitte & Touche. Estas investigações custaram à SIEMENS cerca de um bilhão de euros. Os resultados penalmente relevantes foram postos à disposição das autoridades encarregadas pela persecução penal”.

462 Com explícitas exceções relacionadas apenas a material de prova coberto por sigilo, como o

profissional, p.ex., que atina mais com a proteção da própria empresa, incluso em face do risco de dano reputacional (como defendem GOLDSMITH & KING, 1997: 13 e ss.), que com a proteção dos próprios empregados.

investigações, dela devendo resultar a identificação dos demais envolvidos na infraçãoe a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração (art. 16).

Enfim, a eventual limitação à cooperação decorrente da aplicação às empresas do nemo tenetur, além de não abranger objetivamente a prova colhida contra empregados reputados suspeitos, plenamente compartilhável, encaixa-se finalisticamente com uma prática processual penal acusatória já formatada e em franco desenvolvimento, maiormente dirigida ao acertamento da responsabilidade penal da pessoa física, com salvaguarda da empresa, transformadas em agências privadas de investigação a serviço das autoridades463.

As implicações que isto pode representar em termos de legitimidade464 e

eficácia político-criminal465 dessa aparente nova formatação da investigação

criminal e do foco que ela põe no indivíduo enquanto alvo das autoridades, se se está a falar em processo penal clássico, são questões excedentes deste âmbito. Algo, porém, pode ser antecipado, porque exercerá influência no equacionamento jurídico ao fim sugerido: as investigações internas servem igualmente, de modo apriorístico – por determinação legislativa, no caso da Lei Anticorrupção – às autoridades da persecução penal, com elementar vocação para a produção da prova necessária à construção dos casos criminais contra indivíduos, notadamente quando o acordo encerra a pesquisa acerca da responsabilidade da empresa, como tem sido regra466.

463 Cf. ESTRADA I CUADRAS & LLOBET ANGLI (2013: 200).

464 Não seria impertinente questionar, p.ex., se as investigações empresariais internas estão a

promover a interrupção ou mesmo retrocesso na positiva tendência de processualização da fase de investigação criminal, quando são tomadas as decisões mais determinantes do processo penal (cf. MATA-MOUROS, 2011: 20 e ss.).

465 Como alerta FIRST (2010: 97), exatamente a propósito do desempenho das tarefas de

investigação empresarial interna qual um “escritório avançado” ou “sucursal” (branch office of the prosecutor) das agências de investigação oficial, e da funcionalização dessa tarefa para a superior a persecução de indivíduos (e não das empresas), “a adoção de uma função de parceria com a empresa, no entanto, não deve obscurecer a importância da responsabilidade criminal corporativa na dissuasão do crime empresarial. (…) A acusação contra indivíduos não é fator suficientemente dissuasório da criminalidade organizacional complexa. Pode revelar-se difícil processar e condenar os indivíduos; as sanções podem não ser eficazes; e sanções contra específicos indivíduos podem estar abaixo do ideal, quando a sua conduta produz elevados ganhos econômicos que reverterão em benefício de sua organização.” Referido autor finaliza alertando para o fato de que, a depender do caso, embora seja relevante a preocupação dos procuradores com os danos colaterais dos processos criminais contra as corporações, o acordo com as empresas pode implicar em perdas maiores em termos de dissuasão geral que as eventuais consequências negativas de uma denúncia.

466 GÓMEZ-JARA DÍEZ (2016: 237) esclarece que a jurisprudência do Tribunal Supremo de

Espanha (STS nº 809/2004, de 23 de junho; STS nº 1348/2004, de 25 e novembro, p.ex.) pressupõe vinculação entre as atenuantes de colaboração e confissão. Todavia, segundo este autor, “a previsão específica dessa atenuante para as pessoas jurídicas [(de colaboração com a

Tal configuração das investigações internas, adrede instrumentalizadas a serviço das autoridades, tensiona sobremaneira os já conflituosos interesses em jogo, especialmente nos interrogatórios de empregados reputados suspeitos, em face do dever que possuem de informar a direção da empresa sobre os fatos ocorridos no ambiente de trabalho467.

Nesse contexto, vale a observação de Nieto Martín (2013a: 48), no salientar que

‘(...) quem investiga tem sempre maiores possibilidades para construir a ‘realidade’ tal como lhe convém. E neste caso o que convém à empresa é mostrar que seus controles funcionam, que é uma empresa cumpridora, e que tudo foi culpa de um free rider”468.’

7.4 Os interrogatórios internos de empregados suspeitos