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7. AS INVESTIGAÇÕES INTERNAS E O ESPECÍFICO

7.4 Os interrogatórios internos de empregados suspeitos

7.4.4 Os problemas normativos: considerações críticas e soluções

7.4.4.1 Observação prévia: a inexistência de marco normativo

Antecipou-se que o presente trabalho leva em conta os interrogatórios internos produzidos para a satisfação de interesses empresariais relacionados precipuamente ao cumprimento da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013). De igual modo, expôs-se que as provas resultantes dessa atividade têm vocação para servir, de modo preponderante, à valoração, no âmbito do processo penal, contra os empregados acusados da infração.

A referida Lei, todavia, no essencial, prevê apenas os benefícios sancionatórios para as empresas colaboradoras, bem como as exigências direcionadas à obtenção desses favores, uma vez satisfeitas, como o programa de cumprimento normativo e o acordo de leniência.

Para além, a Lei Anticorrupção não traça qualquer limite, diretriz ou regulação acerca das investigações empresariais internas, no geral, e muito menos do interrogatório ou “entrevista” do empregado suspeito, no particular, matérias naturalmente entregues à autorregulação privada.

511 Cf., p.ex., MASCHMANN (2013: 156) e PABLO MONTIEL (2013b: 271), ambos, porém, com

A perspectiva interna do Direito laboral, setor regulatório primário dessas apurações, é muitíssimo limitada.

A Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei n.º 5.452), diploma central que estatui as normas que regulam as relações individuais e coletivas de trabalho no Brasil, data de 1º de maio de 1943, não possuindo qualquer específica disciplina ou regulação para os inquéritos voltados a apurar as faltas dos empregados512 - 513 , muito menos se pensada à luz da mais moderna figura do

compliance.

Considerado, além do mais, que tais interrogatórios ocorrem em âmbito privado, e se desenvolvem em atenção primária às normas de direito laboral e civil, ter-se-ia inaplicável, a princípio, o Código de Processo Penal, cuja regulação está endereçada à autoridade policial, na fase do inquérito (art. 6º, IV) e à autoridade judicial, durante o processo (art. 185 e ss.).

Do ponto de vista infralegal, o Decreto nº 8.420/2015, que regulamentou a Lei Anticorrupção, não traz qualquer observação de destaque a propósito das investigações internas, mesmo quando esmiuçou o programa de integridade padrão a ser exigido das empresas colaboradoras (arts. 41 e ss.).

A Controladoria-Geral da União (CGU), órgão competente para, em concorrência com os demais órgãos e instituições do Governo Federal, promover a aplicação das sanções administrativas da Lei Anticorrupção no âmbito federal, editou Diretrizes não vinculantes com o objetivo de esclarecer o conceito de

512 As faltas que autorizam o empregador a demitir o empregado com justa causa estão no art.

482 da Consolidação. Dentre as faltas que se podem relacionar com infrações do empregado em matéria de corrupção pública ou privada podem ser citadas a prática de ato de improbidade; incontinência de conduta ou mau procedimento; e a violação de segredo da empresa.

513 No sistema brasileiro vige o princípio do livre despedimento. O empregador que deseje pôr

fim ao contrato de trabalho individual possui dois caminhos: a dispensa sem justa causa e a dispensa com justa causa, nesse caso justificada em razão de falta do empregado. No primeiro caso, a rescisão do contrato de trabalho é livre, sem a necessidade de exposição de motivos (art. 477, Consolidação das Leis do Trabalho), respondendo o empregador, todavia, pelo ônus de indenizar financeiramente o trabalhador por vantagens mais amplas que aquelas reconhecidas na rescisão por justa causa. Na rescisão do contrato de trabalho por justa causa, incumbe ao empregador – desde que questionada a demissão na Justiça – provar a falta grave do empregado (art. 482, Consolidação das Leis do Trabalho), donde se presume o poder de apurar internamente a irregularidade. Nessa hipótese de despedimento, o empregado perde algumas vantagens, como aviso prévio, férias proporcionais, 13º salário proporcional, sem direito a levantar o saldo do FGTS. A reintegração ao posto de trabalho constitui tutela excepcional, reservada apenas aos empregados consideráveis estáveis, que constituem exceção (como, p.ex., a empregada em estado de gravidez e o dirigente sindical), e para aqueles cuja demissão ocorreu por justa causa, posteriormente invalidada pela justiça, desde que não comutada, a reintegração, em indenização (art. 495). Para o empregado despedido sem justa causa não é possível a reintegração ao posto de trabalho. A via judicial abre-se-lhe apenas para a reparação dos valores devidos, mas não satisfeitos pelo empregador no ato da demissão.

programa de integridade para os fins de atendimento àquela legislação, de forma a auxiliar as empresas na construção e/ou aperfeiçoamento de programas dessa natureza514.

Nesse documento, as empresas são orientadas a iniciar uma investigação interna sempre que detectarem indícios da ocorrência de atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira (p. 22). E, de relevo, numa textual opção pela autorregulação, dispôs a CGU, nas Diretrizes, que os aspectos procedimentais dessas investigações, como prazos, responsáveis pela apuração, identificação da instância ou da autoridade para a qual os resultados deverão ser reportados, devem ser disciplinados por normas internas da empresa (p. 22-23). A disciplina das investigações internas está entregue, no Brasil, desse modo, à autorregulação empresarial515 , ausente qualquer diretriz clara em termos de

heterorregulação (estatal) e corregulação (estatal e privada)516.

Esse vácuo conduz a dificuldades na identificação dos limites jurídicos à realização de interrogatórios internos como o modelo apresentado, ainda que, a propósito desses limites, tenha a doutrina afirmado com segurança a necessidade de respeito aos direitos fundamentais dos investigados517, de obediência a normas

extra-penais de ordem laboral518, de proteção de dados519, e de respeito a limites

impostos pelo próprio Direito Penal520.

Novamente, e já aqui contextualizando, uma afirmação dessa amplitude adquire densidade se se indaga, p.ex., acerca dos limites ao direito de vigilância do empregador sobre os meios de produção disponibilizados ao empregado para o desempenho da sua função (computador, telefone etc.). Nesse caso, não tem havido tanta discrepância acerca do reconhecimento da necessidade de proteção da privacidade do trabalhador, se, pelo uso moderado desses meios produtivos para fins pessoais, quando não o proibiu expressamente o empregador, criou-se sobre eles uma expectativa razoável de privacidade521, a indicar que o direito à

514 Disponível: http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/programa-

de-integridade-diretrizes-para-empresas-privadas.pdf, acesso em 24/10/2016.

515 Uma defesa teórica da autorregulação empresarial em termos de desenho e implementação

dos mais diversos aspectos das investigações internas, qual a constituição de um “código processual interno”, pode ser conferida em PABLO MONTIEL (2013a: 226 e ss.; e 2013b: 265 e ss.).

516 Opção, no particular, objeto das críticas de FELDENS (2016: 123) 517 Cf., por todos, MASCHMANN (2013: 147).

518 Cf. ESTRADA I CUADRAS & LLOBET ANGLI (2013: 206 e ss.). 519 Cf. MASCHMANN (2013: 151 e ss.).

520 Cf. GÓMEZ MARTÍN (2013: 132 e ss.).

privacidade oferece caminho autônomo para a proteção do empregado relativamente ao poder de investigar do empregador.

No caso dos interrogatórios internos, essa disposição para a conformação da investigação privada aos direitos fundamentais – na espécie, ao nemo tenetur – é menos segura522.

Todavia, se há dificuldades na identificação dos limites jurídicos próprios à realização de interrogatórios internos como aquele retratado no modelo, que passam pela ausência de marco regulatório (autorregulação predominante) e incluso por uma provável recusa de direito fundamental, não são elas insuperáveis. As considerações críticas adiante formuladas, e as soluções que se lhe seguem, são o resultado dessa tentativa. À semelhança da miríade de justificativas que estão na base do interrogatório modelo, por falta de um quadro jurídico definido, também os limites encontrados refletem essa realidade, encaixáveis ora em normas de direito público ora de direito privado.

7.4.4.2 A informalidade documental