• Nenhum resultado encontrado

2. Função normativa das agências reguladoras, compatibilidade

2.1. Função normativa e o texto constitucional

2.1. Função normativa e o texto constitucional 2.1. Função normativa e o texto constitucional 2.1. Função normativa e o texto constitucional 2.1. Função normativa e o texto constitucional

Como conseqüência do exercício da competência conferida pelas leis setoriais, os atuais entes reguladores editam normas para preencher este espaço discricionário, a fim de trazer plena aplicabilidade aos preceitos contidos nas respectivas leis. O exercício desse poder normativo concerne à edição de normas que desdobrem os parâmetros normativos gerais contidos na lei.

A polêmica travada acerca do exercício dessa competência diz respeito à sua compatibilidade com o sistema constitucional brasileiro, bem como a natureza desse poder e seus limites.

Alguns críticos pugnam que foi criada uma interpretação lata do que é lei, adotando-se um conceito material, quando a Constituição quis que fosse tomado um conceito formal. Desse modo, se interpretaria indevidamente que o conceito de reserva relativa de lei admitisse que direitos e obrigações fossem estabelecidos por meio de norma jurídica geral e abstrata que não lei, ou seja, por lei em sentido material, o que abrangeria outros atos normativos de hierarquia inferior, mas que trouxessem estatuições primárias.

Assim, em uma interpretação lata da Constituição, admite-se

que quando o texto constitucional quis que sua regulamentação adviesse completamente de lei formal, haveria menção expressa de que lei regulamentaria inteiramente a matéria específica. Tal espécie de previsão se dá no próprio art. 5º, inciso XXXIX; no art. 150, inciso I, e; no parágrafo único do art. 170 da Constituição. Configuram casos da chamada reserva de lei formal. Diversamente, no caso em que lei

material, ou seja, norma de caráter geral e abstrato – não necessariamente lei formal aprovada pelo Congresso Nacional –, pudesse tratar da matéria, a Constituição não traria qualquer disposição expressa prevendo que lei regulamentaria a matéria.51

Todavia, a admissão da competência regulamentar do Executivo na edição de normas setoriais não nega a reserva de lei, nem a formal nem a material. Da leitura do inciso II do art. 5º da Constituição Federal, vê-se que somente lei pode estabelecer obrigação para o particular: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Nesse contexto, pela interpretação estrita desse preceito,

nenhuma obrigação poderia ser imposta ao particular que não decorresse de texto de lei formal, ou seja, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, diante do princípio democrático da soberania popular, exercida através dos representantes eleitos pelo povo.

Em crítica, alega-se, ainda, que a atribuição de competência normativa primária a entes integrantes do Executivo, fora das hipóteses previstas constitucionalmente, dentre elas as Medidas Provisórias (art. 62), as Leis Delegadas (art. 68), e o Decreto previsto no inciso VI do art. 84 da Constituição, feriria a cláusula pétrea da separação de poderes, conforme prevista nos arts. 2º e 60, § 4º, inciso III da Constituição Federal, por se ter assentado que as hipóteses de exercício de função característica de outro poder só podem ser aquelas previstas expressamente na Constituição.52

51Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório: a alternativa participativa

e flexível para a administração pública de relações setoriais complexas no estado democrático. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 57 e GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto, 3ª edição, São Paulo: Malheiros, 2000, p. 184.

52Além destes argumentos, menciona-se que o art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, que prevê a revogação, em cento e oitenta dias a partir da promulgação da Constituição, de todos os dispositivos legais que atribuíssem ou delegassem a órgão do Poder Executivo matéria de competência do Congresso Nacional (referindo-se expressamente no inciso I especialmente no que tange a ação normativa), como sustentáculo para a tese da indelegabilidade de funções fora das previsões constitucionais. Todavia, com base na interpretação deste mesmo artigo também se sustenta que haveria possibilidade, sim, de delegação de funções mediante edição de lei. O propósito do dispositivo teria sido somente o de dizer que as delegações anteriores à Constituição de 1988 estariam revogadas, para que valessem aquelas editadas posteriormente à Carta Magna.

Na prática, não é isso que se observa, em face do poder regulamentar conferido ao Executivo. A Administração Pública, desde há muito tempo, regulamenta a atuação do particular impondo-lhe obrigações específicas, como por exemplo, ao publicar um edital de licitação que fixa requisitos a serem atendidos pelos participantes, ou mesmo no que diz respeito ao setor financeiro nacional, por meio das Resoluções do Banco Central do Brasil. No caso específico da regulação setorial promovida pelas novas agências reguladoras, observa-se que, se o particular intenta praticar uma das atividades reguladas, deve se submeter ao arcabouço normativo editado para o setor.

O exercício de poder regulamentar pela Administração coaduna com a interpretação do princípio da reserva de lei relativa, que parte do princípio básico, dominante na doutrina, de que todas as vezes que a Constituição Federal mencionou o termo lei, estava se referindo, efetivamente, à espécie legislativa formal, conforme contida no art. 59 do texto constitucional.53 Nesse sentido, o termo lei não teria na Constituição a aptidão de englobar o regulamento como ato normativo do Poder Executivo de grau hierárquico infralegal.

Assim, a reserva relativa de lei não poderia significar que quaisquer obrigações pudessem ser impostas ao particular por meio de outro ato normativo que não lei. Na verdade, é necessária a existência de lei prévia para estabelecer regras de competência para o ente da Administração Pública encarregado de disciplinar a matéria. Contudo, não basta mera atribuição de competência. Faz-se imprescindível que os poderes criados sejam vinculados a enunciações mínimas de requisitos materiais, sob pena de se voltar ao mesmo resultado obtido com a ausência de lei formal. Essas condições mínimas é que estabelecem o âmbito do poder regulamentar do Executivo e do poder discricionário da Administração Pública.

53 Fundamenta Helena de Araújo Lopes Xavier que quando a Constituição quis referir-se a

outros instrumentos normativos utilizou-se de outras expressões como “ato normativo” ou “ação normativa”, presentes nos arts. 49, V; 97 e 102, I, a e § 2º; 103, § 3º; 169, § 4º da Constituição e art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Assim a Constituição referiu-se às categorias de poder regulamentar (art. 49, V da CF), atribuição normativa (art. 49, XI da CF e art. 25, I do ADCT), decretos e regulamentos (art. 84, IV e VI da CF), instruções (art. 87, parágrafo único, II da CF), agente normativo e regulador (art. 174), e órgão regulador (art. 21, XI e art. 177, §2º, III). XAVIER, Helena de Araújo Lopes, O regime especial da concorrência no direito das telecomunicações. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 90.

É importante, ainda, diferenciar as hipóteses em que se impõe a reserva de lei absoluta. Tal se dá no caso da imposição de obrigações tributárias, que devem ter não apenas seu fim, mas também todo o conteúdo decorrente diretamente de lei formal. A interpretação do caso concreto deve decorrer, inteiramente, de uma subsunção do texto legal. Igualmente se passa no direito penal, em que a interpretação do caso concreto deve decorrer diretamente da lei.

Diversamente, no direito administrativo, para satisfação do princípio da legalidade, não se faz necessário que haja previsão completa de todos os pormenores da atuação administrativa em lei. Óbvio que a lei é indispensável para toda a atuação da Administração, mormente ao ingressar na esfera de liberdade e propriedade do cidadão. Porém, “lei não tem que fornecer necessariamente, em toda a sua extensão e densidade, o critério de decisão no caso concreto, que o legislador pode confiar à livre valoração do órgão de aplicação do direito – o administrador”.54

Há, portanto, uma dupla exigência da Constituição para o respeito à reserva de lei: que haja prévia lei do Congresso Nacional e que a lei seja de natureza substancial, a fim de excluir atos normativos autônomos ou independentes.55

Com a edição das Emendas Constitucionais n.º 8, de 15 de agosto de 1995 e n.º 9, de 9 de novembro de 1995, que previram a criação de órgãos reguladores para as telecomunicações e para o monopólio petrolífero da União, respectivamente, ficou mais evidente que haveria uma categoria de poder atribuído a esses órgãos que seria utilizado na regulação setorial. Tal categoria compreenderia a edição de normas setoriais específicas, que seriam, obviamente, vinculadas aos parâmetros estabelecidos na lei definidora de competências dos entes reguladores.

54XAVIER, Alberto, Os princípios da legalidade e da tipicidade. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1978, p. 37-38 apud XAVIER, Helena de Araújo Lopes, O regime especial da concorrência no direito das telecomunicações. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 80.

55Ressalva feita à alteração introduzida no texto constitucional pela Emenda Constitucional

n.º 32/2001, que cria a polêmica sobre a inserção do regulamento autônomo no ordenamento jurídico brasileiro.