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Fungibilidade entre as medidas provisórias

5 REGIME JURÍDICO DA TUTELA PROVISÓRIA DE EVIDÊNCIA:

5.3 Aspectos em que há distinções na disciplina das tutelas antecipadas

5.3.2 Fungibilidade entre as medidas provisórias

A fungibilidade entre as medidas provisórias pode ser analisada sob dois aspectos: a) possibilidade de alteração da medida pretendida por outra medida mais adequada ao caso concreto; e b) manutenção da medida pretendida, com alteração do nome e regime jurídico a ela indevidamente atribuídos pela parte.

Em ambos os casos, o valor a ser protegido pela fungibilidade é o da efetividade da jurisdição, o que se faz com amparo na concepção instrumentalista, segundo a qual devem ser privilegiados os escopos do processo e o direito material em detrimento das formas.403 A ideia é a de que havendo pedido de tutela, genericamente falando, e estando os seus requisitos preenchidos, não há razão para recusá-la a quem dela precisa, ainda que o provimento contenha tutela diversa da requerida.

Sob o primeiro aspecto, o juiz não dá o que foi pedido, mas algo diverso. É o que ocorre, por exemplo, quando, ao analisar o pedido de uma tutela provisória satisfativa, o juiz conclui que a única medida que se justifica é uma de natureza conservativa (cautelar) ou, ainda, no caso em que o juiz entende que a medida cautelar nominada requerida não preenche os requisitos legais, mas que é possível deferir uma outra, nominada ou inominada. Em ambos os casos, o juiz pode deferir a medida que entender cabível e não haverá violação do princípio do dispositivo, pois a troca se consubstancia, em última análise, em um deferimento parcial, em que a constrição deferida em face do réu é tão ou menos gravosa do que a pretendida (o menos está contido no mais). Trata-se aqui da

403 “A instrumentalidade do processo é vista pelo aspecto negativo e pelo positivo. O negativo corresponde à negação do processo como valor em si mesmo e repúdio aos exageros processualísticos a que o aprimoramento da técnica pode insensivelmente conduzir (v. nn. 34 e 35; v. ainda n. 1); o aspecto negativo da instrumentalidade do processo guarda, assim, alguma semelhança com a ideia da instrumentalidade das formas. O aspecto positivo é caracterizado pela preocupação em extrair do processo, como instrumento, o máximo de proveito quanto à obtenção dos resultados propostos (os escopos do sistema); infunde-se com a problemática da efetividade do processo e conduz à assertiva de que ‘o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda plenitude todos os seus escopos institucionais’ (v. nn. 34 e 36)” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 377).

“fungibilidade de provimentos”.404 Pela mesma razão, contudo, não se pode admitir o inverso, ou seja, a adoção de medida mais gravosa do que a requerida, pois isso feriria a exigência de requerimento (o mais não está contido no menos). Sob o segundo aspecto mencionado, a fungibilidade estabelece a irrelevância da correspondência entre a natureza da medida pretendida e o nome a ela atribuído pela parte ao requerê-la. É a acepção mais utilizada do termo fungibilidade e é dela que trata o art. 273, § 7.º, do CPC de 1973 e o parágrafo único do art. 305 do novo CPC.

Trata-se, em princípio, da simples aplicação do brocardo iura novit curia, segundo o qual o juiz sabe o direito e não está vinculado à qualificação jurídica dos fatos atribuída pelas partes. No caso de fungibilidade entre as medidas antecipativas e cautelares, a eficácia do brocardo vai além da causa de pedir e alcança o pedido, aplicando-se, por consequência, o regime jurídico adequado ao caso. Assim, se a parte pede o depósito judicial de um bem litigioso para salvaguardá-lo de risco de dano e denomina a medida de tutela antecipada, o juiz deve apreciar o pedido a partir do regime jurídico aplicável à natureza que o pedido realmente tem, que é o da cautelar de sequestro.

404“Nada impede a dedução lógica de que quem pode o mais, por consequência, pode o menos. Os provimentos de urgência têm uma base cautelar comum, mas o pedido de tutela antecipada contém alcance nitidamente maior no ambiente externo do processo. Frente a tal espécie de pedido, o juiz (ou o relator) está autorizado a tomar uma providência urgente de efeito mais brando e igualmente eficaz quanto à prevenção do dano que se avizinha. [...] Não houve modificação do pedido, mas apenas adequação da tutela àquilo que constou dos limites da demanda. A fungibilidade, portanto, é de provimentos” (MELO, Gustavo de Medeiros. O princípio da fungibilidade no sistema de tutelas de urgência: um departamento do processo civil ainda carente de tratamento adequado. Revista de Processo. São Paulo: Ed. RT, v. 167, p. 86, jan. 2009). Humberto Theodoro Júnior nega, porém, a existência desse tipo de fungibilidade entre as medidas: “Na tutela de evidência é o pedido substancial da parte que se intenta proteger, não havendo como substituir o objeto da tutela, sem comprometer a liberdade do autor de definir o objeto litigioso e de pleitear o remédio processual que entenda útil à sua defesa. Ou se acata o pedido da parte, ou se lhe nega acolhida. Não há como decretar, por iniciativa do juiz, medida satisfativa diversa daquela requerida pela parte. Pode deferi-la em parte, mas não substitui-la por outra completamente distinta” (THEODORO JÚNIOR, Curso... cit., 2015, p. 677-678). É de fungibilidade de provimentos que trata o seguinte acórdão: “Compra e venda com reserva de domínio. Ação de consignação em pagamento. Deferimento de medida obstativa de anotações em serviços de proteção ao crédito. Natureza cautelar presente, a possibilitar a aplicação da fungibilidade, o que autoriza seja deferida medida diversa da pleiteada, desde que melhor adequada a debelar a situação de risco. Presença dos requisitos legais, a assegurar a sua persistência. Recurso improvido. No âmbito da atuação de urgência, pode o juiz conceder providência cautelar diversa daquela pleiteada pela parte, desde que se mostre adequada a atender a situação de risco evidenciada nos autos, suficientemente identificados os requisitos legais, não há como deixar de conceder a providência, que encontra amparo legal.” (TJSP, AI 0128558-20.2005.8.26.0000, Rel. Desembargador Antonio Rigolin, julgado em 28.06.2005 e registrado em 05.07.2005).

Aqui, portanto, ontologicamente o provimento judicial pedido e o que será deferido ou indeferido é o mesmo, o que muda é apenas o nome e o correspondente regime jurídico que o juiz atribuirá a ele. Como observa Gustavo de Medeiros Melo, o “requerimento formulado pela parte continua sendo essencialmente o mesmo, significando isso que a substituição não está no plano dos pedidos, mas sim na técnica dos pressupostos”.405

A fungibilidade, porém, não se limita a autorizar o juiz a desconsiderar a qualificação jurídica atribuída ao pedido pela parte, pois para isso já existia e era suficiente o princípio do iura novit curia. Sua principal função é, em verdade, a de autorizar o juiz a desconsiderar a forma como o pedido foi apresentado, conhecendo-o a despeito dela.

A importância do instituto se revelava, portanto, no fato de que, no regime do CPC de 1973, as medidas cautelares devem ser requeridas, em regra, por meio de ação própria, enquanto as medidas antecipativas satisfativas só podem ser requeridas incidentalmente. Daí porque se fazia necessária uma regra que autorizasse o deferimento das medidas em sede e na forma do procedimento relativo à outra medida, quando neles fossem requeridas.406

Não se trata, portanto, apenas de dar tratamento jurídico cabível em função da real natureza da medida pretendida, mas de desconsiderar o tratamento legalmente cabível e autorizar o deferimento da medida, ainda que requerida de forma diversa da exigida pela lei. Conclui-se, dessa forma, que a fungibilidade somente tem relevância em si mesma no que diz respeito às situações em que a lei estabeleceu diferenças procedimentais entre as medidas tidas como fungíveis. Se os procedimentos são iguais, a mera aplicação do iura

novit curia é suficiente para a solução da questão.

Nesse sentido, no novo CPC, a discussão a respeito desse tipo de fungibilidade perdeu parte do sentido com a unificação do regime das tutelas provisórias de urgência, tendo sido tornados comuns os modos de requerimento

405 MELO, O princípio... cit., p. 102.

406 Como foi dito no item 2.2.1, a interpretação mais correta do § 7.º do art. 273 é a que conclui pela fungibilidade de mão dupla ou intertrocabilidade entre as medidas cautelares e antecipativas. Assim, tanto a cautelar pode ser deferida em sede incidental, quando pedida como tutela antecipada, como a tutela antecipada pode ser deferida de forma antecedente, quando requerida na forma de cautelar autônoma.

dessas tutelas, independentemente da natureza cautelar ou satisfativa que elas exibam.

Como ambas as medidas de urgência podem ser requeridas na forma antecedente e incidental, caso a parte formule o pedido de uma, usando o nome e regime da outra, bastará o juiz reconhecer a verdadeira natureza da medida e aplicar a ela o regime adequado, pois os procedimentos não são incompatíveis.407 Persiste, a nosso ver, portanto, a intertrocabilidade entre as medidas, em caso de a parte instaurar incidente diverso do cabível.

5.3.2.1 Fungibilidade entre tutelas de urgência e evidência

Sob o aspecto material, não vislumbramos sentido em se falar em fungibilidade entre as medidas satisfativas de urgência e de evidência, pois elas não se diferenciam em termos de conteúdo. A medida deferida é a mesma, o que muda é, somente, o fundamento.

Entre a medida de evidência e a cautelar, por sua vez, só cabe a fungibilidade de provimento se for para deferir a cautelar no lugar da medida de evidência, em razão da maior gravosidade da segunda.

No aspecto relativo à qualificação jurídica do pedido, a fungibilidade será parcial quando envolver a tutela provisória de evidência. Parcial porque o juiz poderá desconsiderar o nome atribuído pela parte e conhecer do pedido e dos fundamentos a partir da natureza que realmente tenham, mas não poderá, por outro lado, desconsiderar as limitações procedimentais, quando verificar que foi pedida, com outro nome, a medida fundada em evidência, na forma antecedente, pois essa não é aplicável ao instituto.

Assim, em caso de pedido de qualquer espécie de tutela provisória na forma incidental, a fungibilidade é plena. O juiz deve apenas reconhecer a natureza do pedido e aplicar o regime jurídico a ela pertinente, independentemente do nome atribuído pela parte. Caso, contudo, o pedido apresentado tenha natureza de tutela de evidência e seja apresentado na forma antecedente, ainda que a ele seja atribuído outro nome, a solução será a

407 É o que estabelece o art. 305, parágrafo único, quando trata da hipótese de pedido de tutela antecipada requerida como cautelar. A lei novamente perdeu a chance de tornar clara a “mão dupla” da fungibilidade.

inadmissão, visto que a forma antecedente é exclusiva para as tutelas de urgência.

A exclusão do regime antecedente para a tutela de evidência se deve à opção do legislador, que previu urgência contemporânea à propositura da ação como pressuposto para sua admissão (art. 303). Além disso, o que autoriza o uso do incidente antecedente é a necessidade imediata pela parte do provimento judicial, sem que sejam possíveis maiores delongas na preparação da ação principal, o que não ocorre com a tutela de evidência.408

Entende-se que o legislador realmente perdeu uma oportunidade de tornar ainda mais ampla a extensão da tutela de evidência e dos seus respectivos benefícios e acredita-se que isso ocorrerá no futuro. Não se pode negar, contudo, que tanto a estabilização, como a própria antecipação fundada na evidência, com a extensão que o novo CPC lhe conferiu, são institutos novos no cenário jurídico brasileiro, sendo legítima a opção restritiva do legislador, fruto de uma cautela saudável com o que é desconhecido, ao menos em termos nacionais. Dessa forma, não se vislumbra razão para se ignorar ou ter por inconstitucional a opção restritiva do legislador que exige a urgência para o exercício da tutela provisória na forma antecedente.

Assim, não há fungibilidade plena entre as medidas de urgência e de evidência. O juiz sempre estará autorizado a aplicar o regime jurídico correto à medida pleiteada, independentemente do nome que a parte lhe atribuiu, deferindo ou indeferindo o requerimento, conforme estejam presentes ou ausentes os seus requisitos. Porém, se o procedimento adotado for incompatível com a natureza da tutela pretendida, deverá inadmiti-lo, sob pena de viabilizar a burla oblíqua de restrições legítimas do sistema. Com efeito, ou se admite o pedido de evidência na forma antecedente e ele poderá ser assim requerido, ou não se o admite e ele não poderá ser aceito, pela via da fungibilidade. Do contrário, a parte poderia facilmente ultrapassar a restrição fingindo pedir outra medida na forma antecedente, quando na verdade, pede a tutela de evidência.

408“O fato que autoriza a simplicidade do ato processual é, justamente, a urgência. Não há, nesse passo, o preenchimento da hipótese fática ou razão jurídica que autorize a aplicação do procedimento antecedente na tutela de evidência” (MACÊDO, Antecipação... cit., p. 539). Em sentido contrário, admitindo a tutela provisória de evidência antecedente: BODART, Tutela... cit., p. 145; MEDINA, Novo Código... cit., p. 503; REDONDO, Estabilização... cit., p. 181; MITIDIERO, Livro V – Da tutela antecipada cit., p. 775.