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Gênero como ação social

No documento Karlene do Socorro da Rocha Campos (páginas 34-39)

Capítulo 1 Gênero textual na concepção sociorretórica

1.2 Gênero como ação social

Ainda que algumas tentativas de classificação de gênero sejam reducionistas e levem a um formalismo inútil, Miller (2009a [1984]) reconhece que essa classificação é necessária para a linguagem e a aprendizagem, porque a compreensão de como os gêneros se organizam explica o modo como os criamos e os interpretamos. Mas ela admite que o estudo de gêneros não deve somente permitir a criação de algum tipo de taxonomia: mais do que isso, para ser valioso, precisa enfatizar aspectos sociais e históricos das situações comunicativas.

Miller defende a existência de uma classificação de gêneros que contribua para a compreensão do modo como o discurso funciona, ou seja, da maneira como ele reflete a experiência retórica do povo que o cria e o interpreta. Ao tecer considerações sobre possíveis princípios norteadores de uma classificação, ela destaca o princípio pragmático baseado na ação retórica, que engloba tanto a substância quanto a forma discursiva e torna o gênero uma ação social, a qual envolve situação retórica e exigência, pois a ação humana é interpretável apenas em um contexto de situação, com base na demanda (ou exigência) que levou à sua realização.

Nessa concepção, as situações retóricas são recorrentes, e sua recorrência justifica- se não porque se repetem outras vezes e sim porque são comparáveis, análogas entre si, exigindo respostas que também são comparáveis e passíveis de analogias. A recorrência é, então, uma ocorrência social, de natureza intersubjetiva, e não deve ser compreendida por um viés materialista. Ela enfatiza que caso considerássemos

o termo recorrente como sinônimo de repetição, seríamos induzidos a generalizações científicas.

No centro de cada situação retórica, está a exigência que norteará as ações humanas. Não se trata aqui também de um fator individual, mas de uma forma de conhecimento social, responsável por “socializar os conceitos de intenção e propósito, ligando motivação à convenção e à expectativa” (MILLER, 2009, p. 15). Em outros termos, são as exigências do contexto situacional que requerem um determinado propósito; desse modo, espera-se que as ações realizadas em forma de gêneros textuais atendam às demandas percebidas em uma situação comunicativa recorrente. De acordo com Miller (2009a [1984], p. 32),

embora a exigência forneça ao retor um sentido de propósito retórico, claramente não é a mesma coisa que a intenção do retor, pois esta pode ser malformada, dissimuladora ou diferente do que a situação convencionalmente sustenta. A exigência fornece ao retor uma maneira socialmente reconhecível para realizar suas intenções conhecidas.

Ela assinala que alguns discursos têm formas convencionais justamente porque surgem em situações recorrentes, nas quais os retores apresentam respostas semelhantes às demandas que elas geram. Essas respostas decorrem da observação de uma situação anterior, no que diz respeito aos atos retóricos adequados ao contexto e aos seus efeitos de sentido sobre a audiência. Contudo, a exigência de uma situação retórica pode ser atenuada pela mediação de discurso, pois, conforme mencionamos, a exigência não é, por si só, um fator determinista das ações em uma determinada situação. Na verdade, antes de agirmos, interpretamos o contexto do qual participamos e definimos uma situação, e a interpretação desse contexto, obviamente, varia de acordo com fatores intersubjetivos.

Miller (2009a [1984], p. 31) argumenta que nossos conhecimentos se embasam em tipos que se fundamentam em similaridades relevantes, as quais permitem estabelecer analogias entre situações recorrentes. Ela destaca que

o que recorre não é uma situação material (um evento real, objetivo, factual), mas nossa interpretação de um tipo. A situação tipificada, incluindo tipificações de participantes, subjaz à tipificação retórica. A comunicação bem sucedida requer que os participantes compartilhem tipos comuns; isso é possível na medida em que os tipos são criados socialmente [...].

Os gêneros são “ações retóricas tipificadas” (MILLER, 2009a [1984], p. 34), em que as ações sociais definem o discurso, e a situação tipificada é subjacente à tipificação retórica. Nessa ótica, os usuários de uma língua percebem que um gênero específico se apresenta mais eficiente em uma determinada circunstância comunicativa e, assim, passam a utilizá-lo sempre que vivenciam circunstância semelhante.

Para compreendermos o modo como o gênero funciona, precisamos, então, compreender o seu sentido, que se define com base na satisfação a uma determinada exigência social. Dessa maneira, ao estudarmos um gênero, precisamos observar não apenas características como, por exemplo, a idade e o grau de instrução dos interlocutores, mas também o propósito que possuem e os efeitos que pretendem produzir com suas escolhas.

Nos estudos sobre gênero, precisamos também observar a fusão genérica de sua substância e sua forma, sendo a primeira referente ao conteúdo semântico que veicula – aos aspectos simbolizados de uma experiência comum – e a segunda referente à maneira como a substância é formalizada. Miller (2009a [1984]) destaca que, como a forma fornece caminhos para a percepção e interpretação da substância de um gênero, ela é, também, dotada de significação. Tomemos como exemplo um poema: ele tem uma forma que ajuda o leitor a identificá-lo como tal e, por isso, ela adquire um valor semântico, além do sintático, que não deve ser ignorado. Em síntese, o estudo de gênero precisa ser atrelado a três níveis que se entrelaçam: forma, substância e contexto sócio-histórico-cultural. É o contexto, com sua exigência social, que determina o modo como forma e substância devem se fundir.

Na abordagem sociorretórica, o gênero refere-se a categorias discursivas convencionais, por serem decorrentes de ações retóricas tipificadas; só é compreendido por intermédio de regras que o regulam; permite a relação entre as intenções de um sujeito e a exigência social de uma situação comunicativa recorrente; é constituído da fusão entre forma e substância e reflete a cultura de seus usuários. Assim, uma coleção de discursos pode não constituir um gênero se não houver possibilidade real de se estabelecerem analogias formais significativas entre eles; se não forem levados em conta todos os elementos que constituem a

situação recorrente (por exemplo, se em uma análise for considerada apenas a exigência ou apenas a audiência); se não for possível compreendê-lo como ação social por meio de seus componentes pragmáticos.

Para Miller (2009b [1992], p. 45), a compreensão de gênero como ação retórica recorrente remete a muito mais do que apenas aprender que uma determinada forma de discurso pode nos ajudar a alcançar nossas intenções. Nessa ótica, o gênero é um “artefato cultural”, que expressa formas de “agir conjuntamente”. Como tal, nasce da relação entre ação e estrutura e expressa nossa vida cultural, ajudando-nos a entender melhor as situações comunicativas em que nos inserimos, inclusive os motivos do fracasso e do sucesso de nossas atividades sociais.

Como produtos culturais, os gêneros, obviamente, refletem um modo de vida existente em um determinado tempo e lugar, experienciado por um grupo com características que o identificam. Isso explica a existência de diferentes gêneros em diferentes épocas e lugares e também explica o fato de existir um mesmo gênero em lugares distintos, que assume características próprias e diversas.

É o que ocorre, por exemplo, com a resenha. Conforme demonstrado por Carvalho (2007 [2005]), no que se refere à organização retórica, a produção desse gênero no Brasil diferencia-se de sua produção nos Estados Unidos: por meio da identificação das regularidades textuais em resenhas de autores brasileiros e americanos, a autora constata que os editores brasileiros tendem a evidenciar pontos positivos em seus textos, ao passo que os editores americanos tendem a enfocar mais as falhas encontradas, procedimentos que levam a dois sistemas retóricos diferentes, embora se trate do mesmo gênero.

Carvalho (2007 [2005], p. 140) observa que as relações sociais e os aspectos culturais que permeiam a produção do gênero influenciam em sua organização retórica, daí a necessidade de o concebermos como ação social. Ela explica que o gênero não deve ser compreendido apenas como entidade linguística, já que “é ação que reflete características de situações retóricas recorrentes”.

Com base nos estudos de Giddens15, Miller (2009b [1992], p. 51) explica ser possível caracterizar uma cultura por meio dos gêneros nela produzidos, os quais constituem um sistema de ações e interações que apresenta funções e lugares sociais determinados, bem como natureza recorrente. Mas, para tanto, é necessário considerar a relação existente entre ação e estrutura, uma vez que a estrutura é a responsável por relacionar indivíduo e coletividade; trata-se de uma conexão “entre a concretude e particularidade da ação e a abstração e a longevidade das instituições”.

Miller assinala que os indivíduos, ao agirem socialmente, criam uma estrutura para si e para os outros, esquematizando as situações que vivenciam, com base em estruturas já disponíveis, classificadas e interpretadas socialmente. Dessa forma, as ações individuais reproduzem as propriedades estruturais das coletividades existentes em tempo e lugar específicos e essa reprodução remete à ideia de que os atores, em situação de interação, criam recorrência em suas ações, quando reproduzem aspectos estruturais das instituições. Mas ela não quer dizer que o gênero é uma estrutura social: reforça que o gênero é uma ação social da qual a estrutura é apenas um aspecto. Assim, ainda que a estrutura seja o fator que torna um gênero reproduzível, a ação é o seu aspecto mais significativo, visto que dela decorre o conhecimento e a capacidade necessários para a reprodução da estrutura.

Como a ação se caracteriza por sua natureza social, não compreendemos um gênero sem antes compreendermos a natureza da coletividade em que ele se insere (MILLER, 2009b [1992]). Desse modo, reforçando a concepção de que o gênero é o mediador entre o particular e o público, entre o indivíduo e a comunidade, Miller (2009b [1992]) concebe a noção de comunidade retórica, constituída por um conjunto de ações retóricas, que implicam modos de agir e de interagir comuns aos membros que a compõem.

A comunidade retórica é uma entidade virtual – que habita a memória humana – concretizada pela linguagem. Ela é, concomitantemente, o veículo das interações e o resultado que elas geram, sendo invocada, representada, pressuposta ou

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GIDDENS, A. Agency, institution and time-space analysis. In: Knorr-Cetin, K.; Cicourel, A. V. (eds.). Advances in social theory and methodology: toward an integration of micro-and-macro-sociologies. Boston, MA: Routlege and Kegan Paul, p. 161-174, 1981; GIDDENS, A. The constitution of society: outline of the theory of structuration. Berkelye, CA: University of California Press, 1984; GIDDENS, A.; TURNER, J. H. (eds.). Social theory today. Stanford, CA: Stanford University Press, 1987.

desenvolvida no discurso dos membros que a compõem, os quais compartilham de uma certa maneira de pensar sobre algo em uma determinada situação. Trata-se de uma projeção discursiva, que opera por meio do gênero, considerando-o, conforme observamos, como “o lugar operacional da ação social articulada, reproduzível, o nexo entre o privado e o público, o singular e o recorrente” (MILLER, 2009b [1992], p. 55).

Para Miller, as comunidades retóricas caracterizam-se não somente por suas similaridades – como ocorre com as comunidades geográficas – mas também por suas diferenças, decorrentes da interação efetiva entre seus membros, ligados por uma maneira de compreender o mundo. Ao reproduzirem esse modo de compreensão, eles não os repetem simplesmente, mas adaptam-no às demandas retóricas de uma situação.

Bazerman (2006 [1997]; 2009a [2004], 2009b [1994]) compartilha das ideias de Miller sobre a concepção de gênero como ação social e ratifica que interagimos por meio de gêneros para criar significações em situações retóricas tipificadas. Segundo ele, os gêneros estão encaixados “em atividades sociais estruturadas”, criando realidades, uma vez que vivemos no que eles “explicitamente afirmam e nas estruturas de relações e atividades que implicitamente estabelecem, [...] em um modo de vida organizado”. Com base em tais asserções, o autor destaca que “cada texto bem sucedido cria para seus leitores um fato social” (BAZERMAN, 2009a [2004], p. 22).

No documento Karlene do Socorro da Rocha Campos (páginas 34-39)