• Nenhum resultado encontrado

Hipertexto e construção de sentidos

No documento Karlene do Socorro da Rocha Campos (páginas 64-71)

Capítulo 2 Gênero textual digital homepage e educação online

2.2 Hipertexto e construção de sentidos

Embora tenha ganhado mais destaque com as TIC, o termo hipertexto não é novo. De acordo com Lévy (1993 [1990]), Vannevar Bush foi o primeiro a empregá-lo, em 1945, no artigo As we may think, no qual postulava que, para produzir conhecimento, a mente humana organizava informações por associação e não por classificação e indexação, em uma ordenação hierárquica. E foi em 1962 que o termo foi utilizado por Theodor Nelson para se referir a textos não lineares em um sistema de informática, quando sugeriu a criação de uma rede que interligasse todo o conhecimento literário e científico mundial.

Também não é nova a forma não linear de produção e leitura hipertextual: a não linearidade ocorre na leitura de textos impressos, em que fragmentamos as informações, percorrendo caminhos que não se traduzem exatamente em um percurso linear (FINNEMANN, 1999). Por sua vez, a leitura de textos na Web pode ser linear, visto que, apesar de um hipertexto ser um conjunto de textos conectados por links, o leitor percorre um texto de cada vez.

Não podemos, pois, reduzir o estudo do hipertexto à dicotomia linear/não linear. Trata-se de uma rede constituída por lexias (ou blocos de textos), que consistem em unidades de sentido formadas por textos verbais, imagens, sons etc. e são conectadas por links (LEMKE, 2002; LÉVY, 1999 [1997]). As lexias acomodam-se em dois modos de leitura: o modo de leitura propriamente dito e o modo de navegação. O primeiro permite que acessemos o texto da forma como conhecemos: guiando-nos pela leitura geralmente sequencial de suas partes (FINNEMANN, 1999). O segundo leva-nos a acessar, por meio de links, outros textos interligados ao texto de origem, permitindo-nos construir nosso percurso de leitura no site. Então, no consumo de textos digitais, “o usuário emprega duas capacidades cognitivas diferentes, demonstrando dois tipos diferentes de comportamento quando passa do modo de leitura para o de navegação e vice-versa” (ASKEHAVE; NIELSEN, 2004, p. 15).

Sem dúvida, diversos textos impressos configuram-se em uma estrutura de hipertexto. Um exemplo é o texto acadêmico, que, com suas notas de rodapé ou referências a outros textos, levam o leitor a se adiantar ou a retroceder na leitura. Mas é na Web que a figura do hipertexto surge de modo mais intenso, já que a passagem de um texto a outro se dá rapidamente, por meio dos links que os articulam.

Na estrutura hipertextual, os links não são apenas um modo de organizar a informação. Mais do que isso, levam a novas formas de interação entre leitor e texto, que diferenciam o hipertexto de um texto impresso, principalmente porque a informação, neste último, apresenta-se sem que haja um eixo narrativo ou argumentativo que relacione em sequência os diversos textos que ele engloba (BRAGA, 2010 [2004]). Dessa maneira, as articulações entre os textos não se concretizam por meio de sequência preestabelecida e dependem das escolhas do leitor, determinadas pela ordem de acesso aos links.

As variadas possibilidades de acesso resultam em diferentes construções do sentido global do texto lido. Em outras palavras, a estrutura hipertextual leva a uma mudança na noção de autor e leitor, pois o sistema que configura o hipertexto permite a produção de um texto que, na atualidade, muito mais do que antes, não traz em si uma estrutura linear que permita identificar seu começo, meio e fim. Desse modo, o leitor inicia a leitura por qualquer um de seus links e, ao realizar suas escolhas, determina uma nova organização dos segmentos hipertextuais, conferindo-lhe relações que atribuem um novo sentido ao texto.

No entanto, o fato de o hipertexto ser deslinearizado não nos autoriza a considerá-lo um texto desorganizado. Segundo Leão (1999), é necessária alguma organização para que o texto seja inteligível e, dessa maneira, o produtor de hipertextos precisa levar em conta que o sistema hipertextual favorece percursos de leitura diversos, multilineares e multissemióticos. Ele precisa supor as possíveis escolhas que os leitores farão para produzir sentidos e, assim, os links devem ser apresentados de forma suficientemente organizada para proporcionar um acesso complexo.

Tais considerações importam muito ao designer instrucional de cursos ou disciplinas online. Afinal, as características do hipertexto, como o excesso de informação veiculada, podem acarretar problemas para a compreensão textual e,

consequentemente, para a construção de conhecimento. A quantidade excessiva de textos relacionados por links, por exemplo, pode ser um obstáculo para usuários na hora de filtrar o que lhe interessa.

O designer precisa ter em mente que a disposição dos textos é importante para o alcance de um objetivo didático e, para tanto, essa disposição precisa ajustar-se às necessidades de aprendizagem. Ele precisa trabalhar em conjunto com o professor responsável pela elaboração do conteúdo educacional, uma vez que as articulações entre os links hipertextuais devem garantir ao estudante a produção de um sentido global. Desse modo, tanto o professor que elabora os conteúdos quanto o designer precisam ter um razoável conhecimento sobre a natureza do hipertexto e as possibilidades de produção de sentidos.

Para Braga (2010 [2004]), são dois os fatores que determinam a natureza do texto na tela do computador: a interatividade e a multimodalidade. Em relação à interatividade, os textos permitem que os usuários possam interferir nos programas que propiciam a comunicação ou no seu conteúdo. Quanto à multimodalidade, com a Internet surge a possibilidade de se criar um texto que apresente mais de uma linguagem, como som, escrita e imagem. Obviamente, há também textos impressos com mais de uma modalidade, que integram, por exemplo, texto e imagem. Mas, no ambiente digital, ampliam-se as possibilidades de articulação modal e, consequentemente, a multiplicidade de sentidos.

Partindo dos estudos de Lemke (2002) sobre hipermodalidade, a autora destaca que a hipertextualidade dos textos digitais, associada à multimodalidade, gera textos hipermodais e que “a hipermodalidade vai além da multimodalidade da mesma forma que o hipertexto vai além do texto como tradicionalmente concebemos” (BRAGA, 2010 [2004], p. 180).

Ao estudar textos hipermodais, Lemke evidencia que a interação entre os recursos semióticos de diversas modalidades (escrita, audiovisual) proporciona novas formas de significação. Segundo ele, a hipermodalidade é uma forma de denominar as interações da palavra, da imagem e do som em sistemas semióticos, em que os significantes, em diferentes escalas de organização sintagmática, relacionam-se entre si em complexas redes. Nessa direção, Braga (2010 [2004], p. 181) reforça:

Cada forma semiótica é única na medida em que agrega um conjunto de normas interpretativas e possibilidades de significado que lhe são particulares. Embora o significado construído através de uma modalidade possa ser ‘traduzido’ para outra, como se dá por exemplo na descrição de um quadro, nenhum texto é uma imagem e nenhuma imagem ou representação visual veicula os mesmos recortes de sentido que podem ser comunicados por um texto verbal.

O trabalho de Lemke (2002) privilegia o estudo das relações de sentido entre textos produzidos com diferentes modalidades de linguagem, mas contribui para a compreensão da construção de sentidos em estruturas hipertextuais mais simples, constituídas por textos produzidos com uma única modalidade. Para tanto, ele categoriza as relações possíveis de significados estabelecidas entre textos hipermodais, partindo do pressuposto de que essas relações entre lexias em hipertextos são estipuladas com base nas relações intra e intertextuais estabelecidas em textos de modo geral, conforme observa Halliday (1994), cujas ideias são explicitadas a seguir.

Halliday explica que as relações estabelecidas entre orações precisam ser consideradas em duas dimensões: o tipo de interdependência ou taxis e a relação lógico-semântica. No que se refere ao tipo de interdependência ou taxis, essa relação ocorre por meio de dois processos: a hipotaxe e a parataxe. No processo hipotático, a relação entre a orações é de dependência, pois uma é dependente de outra. É o que ocorre em29: [1] Marina quer que você estude, em que a oração Marina quer não tem sentido sem a outra e vice-versa. No processo paratático, as orações são justapostas em um patamar de igualdade, sendo ambas independentes, como ilustrado em: [2] Marina gosta de cinema e Paulo gosta de teatro; [3] Marina estava com medo, então ela ficou em casa.

Quanto à relação lógico-semântica, Halliday assinala que elas se referem às relações entre processos e que há certos padrões de relações semânticas estabelecidos entre orações, sendo as relações básicas as de expansão e projeção. Ele afirma que nas relações de expansão uma oração secundária expande outra primária, apresentando uma descrição, adicionando informações, explicitando suas condições circunstanciais ou suas consequências, entre outros aspectos. A expansão ocorre por meio de três processos, a saber:

29

• elaboração – uma oração elabora o significado de outra por meio de paráfrases, afirmações que trazem mais detalhes ou especificações, comentários, exemplificações. Por exemplo: em [4] Marta não desistiu de seus planos, ela apenas os adiou, a segunda oração expande a primeira por meio de uma afirmação que especifica a atitude de Marta;

• extensão – uma oração estende o significado de outra por meio de adição de informação, apresentação de exceção, oferecimento de alternativa. É o que ocorre neste exemplo: [5] Marta desistiu de seus planos, e seus familiares lamentaram, em que a segunda oração adiciona uma informação à primeira;

• realce – uma oração realça (intensifica) o significado de outra, por meio de circunstâncias de tempo, modo, causa, consequência, lugar, condição etc. Em [6] Marta estava preocupada com a atual situação da família, por conseguinte decidiu adiar a viagem à Europa, a segunda oração intensifica o significado da primeira, por meio da conjunção consecutiva por conseguinte.

Nas relações de projeção, uma oração secundária é projetada na oração primária e, nessa projeção, a oração secundária é instanciada como:

• locução – uma oração é projetada por outra como sendo uma locução, ou seja, como sendo uma construção de palavras. Por exemplo, em: [7] O aluno disse que irá estudar, temos uma projeção por locução – disse que irá estudar;

• ideia – uma oração é projetada por outra como sendo uma ideia, uma construção de sentidos. No exemplo [7] acima, temos uma projeção por ideia – o aluno pensou: vou estudar.

Halliday (1994) destaca que as relações hipotáticas e paratáticas, bem como as relações lógico-semânticas são relações gerais, que não se restringem à categoria de oração e ocorrem em outras formações textuais. É isso que permite a Lemke (2002) estender essas ideias às estruturas hipermodais e às hipertextuais constituídas de textos da mesma modalidade. Considerando as relações lógico- semânticas de expansão e projeção nos pares de links presentes na homepage, ele observa que uma lexia pode expandir ou projetar outra pela introdução de algo já

mencionado; pela generalização de algo; pela explicação, exemplificação, citação etc. Ele explica que tais relações no hipertexto são essencialmente binárias, não dependendo da existência de estruturas textuais extensas para serem estabelecidas.

Lemke (2002) também parte dos estudos de Halliday (1978) sobre descrição de significados produzidos por signos linguísticos. Halliday explica que, por meio desses signos, produzimos três tipos de significados: ideacional, interpessoal e textual. Grosso modo, o significado ideacional revela conteúdos ligados a experiências vivenciadas pelo usuário da língua no mundo real ou em seu universo subjetivo; o significado interpessoal diz respeito à maneira como os participantes de uma situação comunicativa se relacionam entre si e com o conteúdo que está sendo expresso pelos signos linguísticos; o significado textual organiza de forma coerente os significados ideacional e interpessoal em textos que produzimos.

Com base nessa classificação, Lemke observa que os múltiplos sentidos gerados pelos textos hipermodais – e obviamente pelos textos produzidos em uma única modalidade – são explicados com base em três categorias de significados: o significado representacional, o significado orientacional e o significado organizacional.

O significado representacional é aquele que apresenta um estado de coisas. Ele é construído por meio do conteúdo ideacional veiculado nos textos verbais e nas imagens de textos visuais. O significado representacional permite-nos representar o mundo em que vivemos: os conceitos, as ideias, as relações entre os participantes, os eventos, as circunstâncias. As escolhas que realizamos para representá-lo não são neutras, pois revelam traços de nossa identidade, nossas crenças e valores, nossa intenção comunicativa.

Já o significado orientacional não é explícito, mas pressuposto, e revela o que ocorre na comunicação, bem como as relações estabelecidas entre os participantes e desses com o conteúdo ideacional. Trata-se de significado por meio do qual orientamos os interlocutores sobre nosso papel na interação e sobre a projeção que fazemos de seu papel; se estamos em uma relação informal ou formal; se estamos sendo tratados com respeito ou com desdém; se estamos oferecendo algo; se

estamos atendendo a alguma exigência. Esse significado pode ser veiculado pelo verbal e pelo não verbal (advérbios, adjetivos, cores, gestos, tonalidade da voz etc.).

O significado organizacional, por sua vez, permite que os significado representacional e orientacional alcancem maior grau de complexidade e precisão. Os recursos que constroem esse significado estabelecem relações entre os signos no interior do texto, formando unidades de sentido maiores. Tais recursos podem ser unidades estruturais contíguas no texto, que contêm elementos com funções diferentes, como sujeito e predicado, verbo e complemento; ou cadeias coesivas estabelecidas por repetições de palavras ou retomadas por expressões sinônimas.

Segundo Lemke (2002, p. 307-308), os tipos de relações estabelecidas entre lexias hipermodais/hipertextuais são:

entre significados representacionais:

• links que estabelecem entre si relações lógicas de expansão e projeção, tais como exemplificações, explicações, adições de ideias, contextualizações, alternativas etc.;

• relações retóricas que exprimem relações lógicas de concessão, oposição, disjunção, problema-solução, causa-consequência, eventos- generalizações etc.;

entre significados orientacionais:

• links que estabelecem relações de oferta e resposta (concordâncias, discordâncias, rejeições); ação e resposta; graus de oferta e demanda (sugestão, proposta, insistência);

• links que estabelecem relações entre estado de coisas (state-of-affairs) e avaliação, tais como imposição, garantia, desejo, usabilidade, aliança etc.;

entre significados organizacionais:

• links que estabelecem relações funcionais entre elementos estruturais de grupos nominais, sentenças, formações retóricas, sequências e gêneros textuais etc.;

• links que estabelecem relações entre elementos da mesma cadeia semântica, tais como elementos similares, elementos co-hiponímicos) etc.

De acordo com Lemke (2002), cada par de link pode apresentar mais de uma das relações mencionadas.

Tendo em vista a estrutura hipertextual dos gêneros mediados pela Web, Askehave e Nielsen (2004) propõem um modelo de análise bidimensional de gêneros textuais digitais.

2.3 MODELO DE ANÁLISE BIDIMENSIONAL DE GÊNEROS DIGITAIS

No documento Karlene do Socorro da Rocha Campos (páginas 64-71)