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Gênero como fato social

No documento Karlene do Socorro da Rocha Campos (páginas 39-43)

Capítulo 1 Gênero textual na concepção sociorretórica

1.3 Gênero como fato social

Tal como Miller (2009a [1984], 2009b [1992]), Bazerman (2006 [1997]; 2009a [2004], 2009b [1994]) enfatiza que não se deve conceber o gênero apenas como um conjunto de traços textuais recorrentes, afinal ele só existe se for reconhecido por seus usuários. Em outros termos, a noção de recorrência não é compreendida sem se considerar que os usuários do gênero é que interpretam as situações de comunicação, para, assim, escolherem a melhor resposta às exigências dessas situações. Por serem eles que determinam as semelhanças e as diferenças das formas tipificadas de textos, não há como desconsiderá-los na observação das regularidades que constituem os gêneros.

O autor salienta a origem sociointerativa dos gêneros, reforçando o seu caráter histórico e cultural, que os torna dinâmicos e integrantes de processos de atividades socialmente organizadas. Nesses processos, os gêneros são formas típicas de usos discursivos que se conectam a outros gêneros produzidos em circunstâncias relacionadas, fato que deve ser levado em conta na compreensão de seu funcionamento nos contextos comunicativos. Em outras palavras, em uma sequência de eventos, produzimos diversos textos que estruturam expectativas e consequências em uma dada situação.

Os gêneros organizam, então, um sistema de atividades sociais, que decorre de um conjunto de gêneros e de um sistema de gêneros. Um conjunto de gêneros define- se como a “coleção de tipos de textos que uma pessoa num determinado papel tende a produzir” (BAZERMAN, 2009a [2004], p. 32). Consideremos, por exemplo, os gêneros que um professor precisa elaborar: programas de disciplinas, anotações de leituras, aulas etc. Esses gêneros, interligados, criam realidades na esfera profissional de atividades desse indivíduo.

O sistema de gêneros, por sua vez, diz respeito a “diversos conjuntos de gêneros utilizados por pessoas que trabalham juntas de forma organizada” (BAZERMAN, 2009a [2004], p. 32). Tal sistema organiza a produção e a circulação de gêneros em uma instituição específica e funciona como um enquadre geral para as ações realizadas em um dado sistema de atividades. Pensamos, neste momento, em uma aula a distância via Internet: nesse contexto, o professor apresenta o programa da disciplina; expõe um texto teórico e/ou didático que servirá como apoio para a compreensão do tema a ser estudado; apresenta as orientações para realização das atividades. Os alunos, por sua vez, produzem outro conjunto de gêneros: eles podem discutir o programa da disciplina em um fórum (ou outra ferramenta que propicie a discussão); postar dúvidas sobre o texto teórico em um fórum de dúvidas; apresentar resenhas, resumos etc. como resposta às atividades solicitadas. De acordo com Bazerman (2009a [2004]), dois conjuntos de gêneros estão relacionados de modo estreito e circulam de forma sequencial, em um período de tempo previsível.

O teórico corrobora a ideia de que a compreensão dos gêneros nos sistemas em que ocorrem contribui para o desenvolvimento da competência comunicativa, já que

entender o funcionamento dos textos com que nos deparamos ou produzimos ajuda- nos a compreender as necessidades do contexto em que nos inserimos, suas exigências e as expectativas de nossos interlocutores, como já mencionado. Em outros termos, “compreender a forma e a circulação de textos nos sistemas de gêneros e nos sistemas de atividades pode até ajudar a entender como interromper ou mudar os sistemas pela exclusão, adição ou modificação de um tipo de documento” (BAZERMAN, 2009a [2004], p. 32).

Nessa perspectiva, os gêneros criam fatos sociais, que consistem em ações realizadas pela linguagem, as quais precisam ser balizadas como verdadeiras pelas pessoas, pois elas irão reger a maneira como se comportam em uma situação (BAZERMAN, 2009a [2004], 2009b [1994]). Os fatos sociais só existirão efetivamente se forem compartilhados por um número significativo de indivíduos em uma determinada situação.

Na verdade, os gêneros são, para Bazerman (2009a [2004], 2009b [1994]), fatos sociais configurados em formas de comunicação padronizadas, empregadas em situações também padronizadas. Por conta dessas padronizações, atribuímos sentido às circunstâncias e organizamos as informações que devemos fornecer em um dado contexto: em uma situação em que nos candidatamos a um emprego, por exemplo, por se tratar de uma situação tipificada, sabemos os procedimentos que devemos adotar: apresentar nossas qualificações profissionais, falar de nossa experiência no cargo pretendido, demonstrar disposição para trabalhar em equipe, ser polido com o entrevistador, evitar termos informais etc.

Bazerman (2009b [1994], p. 53) afirma que, em uma situação de interação, sinalizamos aos nossos interlocutores como devemos nos portar, por meio de pistas de contextualização que ajudam a identificar, entre outros elementos, o gênero textual do evento que está ocorrendo. Essas pistas auxiliam na construção de sentidos e conectam-nos

aos entendimentos sociais intangíveis dos gêneros dos eventos de fala, da mesma forma que as palavras como agora e mais tarde, aqui e ali nos indexam aos aspectos empíricos e físicos da situação da fala. Quando não compartilhamos pistas de contextualização, como é provável em situações transculturais, podemos falar sem entender um ao outro, situação que leva a mal-entendidos, desacordos e estigmas ideologizados da conduta do outro.

A identificação dos gêneros por suas características tipificadas é importante para interpretarmos os fatos nas situações das quais participamos, mas, como vimos até aqui, não devemos conceber um gênero apenas pelos elementos que lhe atribuem fixidez, sob pena de ignoramos seu caráter sócio-histórico e cultural. Bazerman (2006 [1997]; 2009a [2004], 2009b [1994]) ratifica que se definimos um gênero apenas com base em seus elementos estruturais, desconsideramos a importância do papel desempenhado por seus usuários na construção de sentidos em um contexto comunicativo.

Ele também chama a atenção para o caráter político dos gêneros (BAZERMAN, 2009b [1994]), que auxilia os indivíduos a agirem colaborativamente em sociedade. Por intermédio deles, seus usuários interagem com os outros, negociando e institucionalizando sentidos em uma determinada cultura. Nesse prisma, o conhecimento individual não deve mesmo ser desvinculado do coletivo, pois é inegável que o primeiro se adapta às situações que surgem na vida social. Dessa forma, como mencionamos mais acima16, com o exemplo de resenhas produzidas no Brasil e nos Estados Unidos (CARVALHO, 2007 [2005]), sociedades diferentes não apresentam os mesmos gêneros textuais, e os gêneros, por sua vez, nem sempre sobrevivem às transformações sociais, assim como, por conta dessas transformações, novos gêneros podem surgir.

Fundamentado pelas ideias aqui apresentadas, Bazerman (2009a [2004]) explicita algumas diretrizes metodológicas para a realização de uma análise de gêneros. São elas:

• enquadrar os propósitos da pesquisa – é necessário saber por que se está envolvido em um empreendimento e que perguntas devem ser respondidas;

• definir o corpus – também é necessário identificar os textos que devem ser examinados, de modo que a quantidade de textos do mesmo gênero seja extensa o suficiente para que as evidências substanciais se revelem, mas não tão ampla a ponto de fugir do controle do pesquisador;

• selecionar e aplicar ferramentas analíticas – com base nos objetivos da investigação, o pesquisador precisa selecionar ferramentas apropriadas

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para o exame das consistências e variações das características, funções ou relações no corpus já definido, tais como o emprego de uma variedade de conceitos linguísticos, retóricos e organizacionais menos óbvios, que lhe permita ir além de elementos característicos já reconhecidos e verificar se há consistências dentro de um mesmo gênero que ultrapassam: a) as características distintivas mais óbvias; b) a extensão da amostra de pesquisa para incluir um maior número e uma maior variedade de textos, que o levem a observar como as formas textuais variam; c) a coleta de informações não apenas sobre os textos, mas também sobre o modo como as pessoas compreendem esses textos, entre outras.

Outro autor que concebe gênero como ação social e corrobora os postulados aqui apresentados é Swales (1990): ele propõe um modelo de análise que enfoca a descrição da organização dos movimentos retóricos caracterizadores do gênero. Nessa ótica, a produção de textos não é uma atividade puramente individual, mas uma prática social, norteada, principalmente, por propósitos comunicativos.

No documento Karlene do Socorro da Rocha Campos (páginas 39-43)