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A geografia emocional e ficcional de Aquilino Ribeiro em Lisboa (1904 1908): memórias e trajetos na cidade contemporânea

No documento OS VALORES DA GEOGRAFIA (páginas 151-155)

memórias e trajetos na cidade contemporânea A Machado (a)

2. A geografia emocional e ficcional de Aquilino Ribeiro em Lisboa (1904 1908): memórias e trajetos na cidade contemporânea

Na Lisboa da Monarquia Constitucional ocorreu um capital simbólico de apropriação dos espaços públicos, para diversos tipos de ação política, associados a distintos territórios e percursos revolucionários de cariz republicano. Essa geografia de contestação republicana prestou-se à construção de uma forte carga identitária e memorial que fez perdurar os ritmos espaciais de mobilização política ao longos dos tempos. De certa forma, a ocorrência desta memória política afere uma interessante relação geográfica que converge frequentemente nos mesmos espaços, como se um certo determinismo sociopolítico e urbanístico delimitasse, quase sempre, os territórios de combate possíveis na capital (Rosas, 2010). O território literário proposto por Aquilino Ribeiro ganha então respaldo nesta geografia conspirativa republicana que ecoava na Lisboa da Monarquia Constitucional. A sua originalidade advêm na capacidade de conseguir refluir as memórias desse período e fixar com grande intensidade uma interpretação robusta dos pulsares libertadores que nelas se projetam. Por via disto, podemos, se bem que correndo o risco de se optar por um critério restritivo de avaliação, consolidar duas camadas interpretativas que permitem captar o quadro que agora apuramos:

2.1 Os locais de residência, o cenário que acolhe a construção da sua aculturação conspirativa Os locais de residência detalhados no livro de memória (figura 1) encontram-se condicionados pela sua circunstância social, conformando a herança de uma geografia territorial da plebe urbana lisboeta e da pequena burguesia que habitavam a coluna dorsal da cidade antiga.

Começa por residir na rua do Crucifixo, onde consolida a sua rede de amigos republicanos que contava com nomes como Humberto Avelar, José Dias e Manuel Buiça, professor de ensino livre, que viria a ser o futuro regicida” (Almeida, 2003). Dirá que a “tormenta revolucionária condensava-se sobre a capital e não havia ninguém que se furtasse ao seu fluido magnético. Eu não era dos menos possessos e dos de pé alceiro. Mercê da minha extrema sociabilidade, fui recebido de braços abertos numa grande roda republicana, repórteres, jornalistas, funcionários públicos, farmacêuticos, onde passei a ter parte cantante” (Ribeiro, 2008).

O respaldo desta deriva residencial prossegue na rua das Pedras Negras, junto à Sé de Lisboa (figura 1) partilhando um quarto “com janela para o saguão” que “convinha pelo preço e pelo tamanho”, com um insubmisso pseudo-alemão, de nome Zicker, que em matéria de vivacidade tinha um temperamento, provavelmente mais assomadiço que o jovem Aquilino o que os arrastaria a pegas “homéricas, com a escolástica à mistura, próprias das Cuevas de Salamanca” (Ribeiro, 2008).

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Figura 1 – Lisboa Revolucionária: territórios literários e emocionais de Aquilino Ribeiro (1904 -1908)

Mas a projeção desta cartografia residencial ganha uma progressiva intensidade conspirativa através de alguns episódios romanescos a fazerem lembrar o aparato emocional dos territórios literários de Máximo Gorki, entendido à época como o arquétipo de um modelo revolucionário intelectualmente voluntarioso (Almeida, 2003). Tal desenlace começaria com o episódio da rua Carrião, onde o jovem beirão alugara um novo e insalubre quarto. A sua atividade insurgente estava então no apogeu e o seu quarto era utilizado como uma pequena oficina bombista. Com dois elementos da Carbonária preparava aquilo que considerava o rastilho da luta contra a ditadura franquista, mas um deles parecia “imprudente e estabanado” e dramaticamente dá-se uma explosão que vitimaria os seus companheiros.

O jovem revolucionário ficaria preso dois meses na esquadra do Caminho Novo, mas graças à sua astúcia e ao “estudo psicológico dos guardas”, e quando se viu “em posse dos meios mecânicos da fuga” intensificou a “elaboração do cadastro, mais que tudo fisiognomónico, pois que os actos desta espécie de gente esquematizados pela função, só por mero acaso fogem à rotina e denunciam a lagarta que têm dentro” (Ribeiro, 2008). Evade-se de noite e por intermédio de Alfredo Costa, o outro regicida, e refugia- se na Rua Nova do Almada, numas águas-furtadas dum prédio dum prédio pombalino, a 150 metros da Parreirinha pelas escadinhas de S. Francisco, e a menos de 200 do Ministério do Reino”, onde podia ouvir, se não houvesse interferência acústica das paredes, os espirros do Sr João Franco” (Ribeiro, 2008).

138 2.2. Os territórios de sociabilidade e de aprendizagem política

Os cafés eram “a “universidade, e a antecâmara permanente da revolução. Cada um tinha os seus clientes, agrupados pela cor das ideias e das gravatas: republicanos, aficionados, poetas, batoteiros, e seria milagre que acampasse por ali um só que não acusasse estigma. Desconhecido que aparecesse era tal um moiro na costa. De mesa para mesa voava a palavra passe: Cuidado pode ser bufo!” (Ribeiro, 2008). A cartografia conspirativa era disposta em torno do Rossio (figura 1), onde sobressaíam o Café Martinho e o Gelo Revolucionário. Neles estreitará amizade com os revolucionários, contaminar-se-á com as ideias extremistas lendo Kropotkin e ingressará na Carbonária. No Rossio tumultuário, os cafés tinham uma dimensão simbólica dum cenáculo, onde a boa roda de amigos e o instinto da sociabilidade levavam a ampliar a apropriação dos territórios de ação política e dos tributários movimentos de contestação: “não se pensava, discutia, falava senão em revolução republicana” (Ribeiro, 2008).

Mas a geografia de ação política marcava-se também no espaço público, através dos percursos de contestação política (Machado, 2012). O lastro da sua paisagem literária descreve esta mancha insinuante de insurgência republicana que assomava a avenida D. Amélia: “os comícios monstros que baldeavam, hoje Almirante Reis, eram sinais pujantes da vaga democrática que açoutava o trono” (Ribeiro, 2008).

Por vezes, o jovem libertário era acometido pelo apego à sua geografia beirã e deambulava pelos arrabaldes da cidade procurando as paisagens que oferecessem a placidez de um “mimo rural” (figura 1): “nas belas manhãs eu gostava de ir sozinho Avenida fora, trepar ao bocado do sertão, que era o Parque pouco antes baptizado de Eduardo VII, onde via coelhos a correr, pássaros de tanguinho no bico em vias de construir o ninho. Ali a natureza era a autêntica madre, no seu plano primitivo ou quase.” (Ribeiro 2008). Nestes quadros deambulatórios era confrontado com o avanço dos princípios da cidade burguesa, que concatenavam uma aventura urbanística mais amadurecida (França, 1980), mas que seriam olhados pelo jovem Aquilino com alguma desconfiança. Diria num artigo publicado na Ilustração Portuguesa: “que o aglomerado urbano evoluiu por esse mundo fora, de igual maneira! Quando em todos os países civilizados era princípio assente de saúde e aformoseamento das cidades e arborização intensiva, e, Lisboa que se fazia? Em Lisboa talavam-se todas as quintas, todas as cercas conventuais, todos os logradoiros públicos para erguer hediondos prédios, armazéns de gente”. Na verdade, assumindo-se como um cronista da cidade a sua visão distanciava-se do racionalismo urbanístico de inspiração haussmanniana porque este determinava a exclusão da flânerie e acentuava a perda do fascínio ficcional (Benjamin, 2001).

3. Conclusão

Elencámos duas questões no primeiro ponto deste artigo: (i) Que relevância assume uma paisagem literária para o mapeamento de uma geografia emocional em território urbano? (ii) Poderá a paisagem

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literária urbana de Aquilino Ribeiro emprestar à geografia emocional uma interpretação robusta dos diversos espaços-tempo e da forma como estes se repercutem nas transformações urbanas? A leitura que fazemos das representações e trajetos desta paisagem literária permite-nos responder afirmativamente. Uma primeira ideia que pode ser registada é a de que a força dos territórios literários e a intensidade da geografia emocional construídas por Aquilino Ribeiro se prestam a encontrar acolhimento nos movimentos de contestação republicana que a cartografia das memórias políticas viriam perpetuar. Ecoando a sua rica e impar ação literária constatamos uma sintonia entre identidade territorial urbana e a ficção paisagística. E entendemos que esta projeção literária desempenha um papel determinante na perceção de lugares de memória da Lisboa Republicana que, por força de uma narrativa mitológica, se associam intimamente ao espírito do sítio.

Assim, se releva uma perspetiva insinuante no entendimento dos distintos espaços-tempo e da forma como estes se repercutiram nas transformações urbanas. A dimensão simbólica de grande intensidade que emana destas paisagens literárias presta-se ao reforço de valores identitários que perpetuam a memória revolucionária do princípio do século XX. Competirá às entidades públicas municipais aproveitarem este lastro identitário que favorece a identificação dos seus utilizadores com o respetivo território físico e leva a uma maior consciencialização cívica para salvaguardar esse legado cultural imaterial.

4. Bibliografia

Almeida, H. 2003. Aquilino Ribeiro – O fascínio e a escrita da Terra, Coimbra, Edição Comissão de Coordenação

da Região Centro

Barthes, R. 1997. O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70

Benjamin, W. 2001. Paris, Capital do Século XIX. Cidade, Cultura e Globalização, Lisboa, Celta Editora, 67-82 Borjas, J. 2013. Revolución urbana y derechos ciudadanos, Madrid. Alianza Editoral

França, J. 1980. Lisboa, Urbanismo e Arquitectura, Lisboa. ICLP

Machado, A. 2012. Mobilizações Políticas no Espaço Público de Lisboa, em três momentos do Século XX. I Actas

do Colóquio Ibérico de Geografia: Repuestas de la Geografia Ibérica a la Crisis Actual. 24 - 27 de Octubre 2012.

Meubook 642 – 652

Manguel, A. & Guadalupi, G. 2013. Dicionário de Lugares Imaginários, Lisboa, Edições Tinta-da-China Ribeiro, A. 2008.Um escritor confessa-se, Lisboa, Bertrand Editora.

X CONGRESSO DA GEOGRAFIA PORTUGUESA

Os Valores da Geografia

Lisboa, 9 a 12 de setembro de 2015

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A gestão e manutenção dos logradouros no contexto da reforma

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