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O Abastecimento Alimentar de Lisboa: Perspectivas do Passado 1 M S Salvador (a) , M.R Oliveira (b)

No documento OS VALORES DA GEOGRAFIA (páginas 197-200)

(a) CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais/FCSH, Universidade Nova de Lisboa,

marianasanchezsalvador@gmail.com

(b) CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais/FCSH, Universidade Nova de Lisboa,

mariarosoliveira@gmail.com

Resumo

A actual tendência de mega-urbanização à escala global, coloca o abastecimento alimentar das metrópoles como um desafio incontornável. A resposta a este desafio pressupõe o restabelecimento da interacção entre urbano e rural, a diferentes escalas e em diversos âmbitos da gestão territorial. Em cidades como Lisboa, até meados do século XX, parte significativa do abastecimento alimentar da cidade provinha de uma cintura de produção que hoje corresponde a áreas urbanas e peri-urbanas. Compreender a evolução da paisagem alimentar de Lisboa no último século revela-se fundamental para o planeamento do seu actual sistema alimentar e da sua relação com a cidade, numa lógica de proximidade. O presente artigo propõe-se contribuir para o conhecimento da evolução desta paisagem alimentar, na perspectiva do reforço das dinâmicas urbano-rurais, constituindo uma base de fundamentação para o desenvolvimento de um modelo sustentável e resiliente, que assegure parte do abastecimento alimentar dos seus habitantes.

Palavras chave: sistema alimentar urbano; paisagem alimentar; dinâmicas urbano-rurais; Lisboa.

1. Introdução

A população mundial está a crescer de forma exponencial, mas também a transformar-se profundamente: estamos a tornar-nos mais urbanos, a alterar os nossos estilos de vida e os nossos hábitos alimentares. No decorrer do último século, as actividades de construção e de produção alimentar têm-se intensificado para responder às exigências de alojamento e alimentação crescentes. Assistimos à emergência de megacidades — mais densas e extensas que nunca — que contrastam com vastos territórios dedicados à produção alimentar intensiva, em monoculturas, estufas e pastagens. Os impactos destas actividades têm-se repercutido no planeta, transformando a paisagem, alterando o clima, reduzindo a biodiversidade e consumindo recursos naturais. À medida que estes processos se intensificam, o urbano e o rural tornam-se realidades cada vez mais distantes, física e funcionalmente, rompendo a sua ligação ancestral de interdependência, baseada num modelo de ciclo fechado, fortemente vinculado ao território, que se caracterizava pela sua escala local.

1 Este artigo constitui-se como enquadramento histórico e teórico para o desenvolvimento de cenários futuros

possíveis para o abastecimento alimentar da Área Metropolitana de Lisboa, expostos no artigo intitulado O

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Na sequência deste distanciamento progressivo, as cidades passam a estar ligadas aos seus territórios de produção alimentar através de redes de transporte e distribuição que operam à escala global, um elo frágil que coloca as cidades como Lisboa numa situação de grande dependência de externalidades para garantir a subsistência dos seus habitantes. Face a esta situação e perante as perspectivas de crescimento previstas, torna-se então fundamental repensar a relação da cidade com o seu sistema alimentar, com vista a um futuro mais sustentável.

Com este objectivo, o presente artigo será dividido em três partes. Na primeira, expõem-se os conceitos fundamentais e a metodologia utilizados para traçar a evolução da relação mantida entre Lisboa e o seu sistema alimentar, materializada na sua Paisagem Alimentar. A segunda parte constitui um contributo para o conhecimento desta evolução, comparando alguns dados do início do século com a realidade actual. Por fim, traçam-se algumas reflexões finais.

2. Paisagem Alimentar de Lisboa: conceitos e metodologia

Quando nos referimos à evolução da Paisagem Alimentar de Lisboa, referimo-nos à materialização ou tradução espacial do Sistema Alimentar de abastecimento urbano, que compreende as diferentes fases de Produção, Distribuição, Comercialização, Confecção, Consumo e Desperdício, às quais se acrescentam, mais recentemente e em momentos variáveis consoante os produtos alimentares, as fases de Processamento e Embalagem. Esta Paisagem Alimentar manifesta-se, portanto, a escalas distintas para cada etapa, abrangendo desde a escala regional (ou global) até à doméstica.

Neste artigo, privilegiam-se as fases de Produção, Distribuição e Comercialização alimentar manifestadas à escala urbana, principalmente as relativas aos cultivos hortícolas e frutícolas, pela clareza de ocupação do solo ligada às suas actividades e pelo facto do sistema alimentar que lhes está subjacente ser mais simples, dispensando as fases intermédias de processamento e embalagem.

Para esta abordagem ao desenvolvimento da cidade, um outro conceito ganha relevância pela sua operatividade: o de Historic Urban Landscape, desenvolvido pela UNESCO em 2011, e que adaptamos para Historic Urban Foodscape. A cidade é, nesta óptica, entendida como um palimpsesto, resultante da sobreposição de ‘camadas’ naturais e culturais caracterizáveis. Neste contexto, incluem-se as relativas ao suporte físico natural da cidade e à massa construída materializada na sua morfologia urbana, às quais se sobrepõem as dos espaços de produção alimentar, das rotas de distribuição e dos espaços de comercialização, como mercados ou feiras. Entende-se que a caracterização e mapeamento dos espaços que compõem cada uma destas ‘camadas’ permite uma leitura transversal do sistema alimentar, traduzindo a Paisagem Alimentar.

Partiu-se da cartografia histórica como fonte primária de informação. Entendendo-se que os diversos factores e forças em presença na cidade, de natureza essencialmente imaterial, são materializados e expressos na sua forma física, e que, por sua vez, esta é registada — de forma objectiva e rigorosa —

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na cartografia, então, esta assume-se como uma verdadeira síntese da história urbana em cada momento, tornando-se a fonte primordial de informação para o desenvolvimento desta investigação. Esta abordagem metodológica ao desenvolvimento urbano e ocupação do solo, foi explorada e justificada pelas várias Escolas de Morfologia Urbana, dentro das quais destacamos a anglo-saxónica ou Conzeniana, pela sua abordagem descritiva e interdisciplinar aos processos de construção das paisagens urbanas (Whitehand, 2007). Estas bases cartográficas são, ainda, complementadas por outras fontes — nomeadamente bibliográficas, fotográficas e estatísticas — conferindo à cartografia um carácter dinâmico, uma possibilidade potenciada pelos desenvolvimentos tecnológicos dos SIG (Moudon, 1997), e dando uma visibilidade espacializada a dados que tradicionalmente não a têm.

Esta abordagem metodológica permite, portanto, não apenas recolher e sistematizar a informação, como também torná-la legível e operativa, sendo possível caracterizar a evolução da Paisagem Alimentar de Lisboa e, progressivamente, conferir-lhe maior detalhe, consoante os dados recolhidos em diversas fontes, estando as suas ‘camadas’ em constante actualização.

3. Paisagem Alimentar de Lisboa: breve evolução histórica

A partir da metodologia anteriormente descrita, traçar-se-á agora uma primeira aproximação à evolução da Paisagem Alimentar de Lisboa, confrontando principalmente alguns dados relativos à situação existente no início do século XX com a actual, e pondo em evidência as transformações operadas no período que medeia os dois momentos.

A Lisboa do início do século XX, sintetizada no Levantamento da Planta de Lisboa coordenado por Silva Pinto (1904-1911), remete-nos para uma realidade com marcas ainda pré-industriais, caracterizada pela proximidade e interdependência entre a forma urbana e o abastecimento alimentar da cidade, operando a uma escala maioritariamente local.

A sua mancha urbanizada era significativamente menor, concentrando-se no interior da circunvalação definida pela ferrovia. Contudo, nesta zona concentrava-se a grande maioria da população de Lisboa e seus arredores, residindo aqui aproximadamente dois terços (63%) da população que, nessa época, habitava uma área sensivelmente correspondente à actual Área Metropolitana2 (MEMO, 2014). A cidade

que, pela sua natural vocação associada às navegações, se tinha vindo a espraiar ao longo da frente ribeirinha, com a introdução do caminho-de-ferro e do eléctrico ganha a possibilidade de se expandir para o interior. Assim, partindo da Baixa Pombalina, as linhas de expansão da Avenida da Liberdade e Avenida Almirante Reis eram já claras, seguindo as linhas de vale naturais em direcção a Norte.

2 Em 1911, residiam em Lisboa 435 359 pessoas, cerca de 63% do total de 690 893 habitantes na cidade e seus

arredores. Actualmente a situação está invertida, representando a população do concelho de Lisboa uma minoria face à restante Área Metropolitana. Registavam-se, em 2012, cerca de 530 847 habitantes na cidade, ou seja, cerca de 19% dos 2 818 388 habitantes da AML (MEMO, 2014).

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Relativamente aos espaços de produção agrícola, destaca-se um conjunto numeroso de quintas que compunham uma coroa produtiva em torno deste núcleo construído, alastrando até à região saloia. Observamos um predomínio de hortas, vinhas e olivais nas cercanias do núcleo urbano a Oriente, enquanto a Ocidente prevaleciam as terras lavradas (Marat-Mendes et al, 2014: 73), e um entrecruzamento dos espaços construídos com espaços de produção alimentar, encontrando-se hortas, cultivos de cereais, olivais, vinhas e pastagens no interior dos seus limites, chegando estas áreas agrícolas “quase até ao coração da cidade, ainda hoje recordadas na toponímia” (Brito, 1976: 62-64). Uma parte significativa das suas rotas de distribuição alimentar, no período pré-industrial, eram marítimas/fluviais, traduzidas também na toponímia da cidade, nomeadamente nos seus pontos de chegada, tais como o Cais do Trigo ou o Campo das Cebolas.

Os seus espaços de comercialização alimentar limitavam-se, praticamente, aos mercados e algumas feiras. A planta de Silva Pinto mostra já um conjunto destes equipamentos inaugurados nas décadas precedentes, tais como o Mercado de Alcântara (1905), localizado junto à estação ferroviária de Alcântara-Terra (onde hoje é a Avenida de Ceuta), o Mercado 24 de Julho ou da Ribeira Nova (1882) junto ao Cais do Sodré, que veio complementar e mais tarde substituir o Mercado da Ribeira Velha, localizado junto à Casa dos Bicos, o Mercado existente na actual Praça da Figueira (1885), o Mercado de São Bento (1881), e outros, que complementavam esta rede. Durante muito tempo, também, se comercializavam peixe, hortícolas e frutícolas informalmente, junto ao rio.

À medida que a pressão urbana se intensificou, os terrenos agrícolas foram-se reduzindo, persistindo frequentemente este uso apenas em linhas correspondentes aos solos mais ricos, como vales de fundos aluviais (Brito, 1976: 64). A cidade não podia garantir a sua auto-suficiência, e as zonas produtivas que compunham o seu entorno passaram a ser cada vez mais reforçadas por produções estremenhas e algarvias, competitivas por se conseguirem preços semelhantes, situação potenciada com o desenvolvimento do caminho-de-ferro e, mais tarde, com o transporte rodoviário.

Esta transformação, ocorrida em Lisboa como noutras cidades europeias, reflecte uma importante transformação na concepção do abastecimento alimentar urbano, anunciando já a transição para uma escala global, e que Hedden traduziria no seu conceito de foodshed (1929). Quando o autor adapta a noção de bacia hidrográfica à de bacia alimentar — área de proveniência dos produtos alimentares que abastecem um determinado núcleo urbano — faz uma importante distinção entre estas, afirmando que, enquanto na primeira operam condicionantes topográficas, na segunda as condicionantes económicas prevalecem. Está, então, anunciado, talvez pela primeira vez, um desligamento ou emancipação do território e das suas condicionantes no que diz respeito ao abastecimento alimentar. O critério do preço torna-se hegemónico na definição dos fluxos alimentares, o que se agravará após a Segunda Guerra Mundial, como o desenvolvimento tecnológico na conservação e embalagem.

No documento OS VALORES DA GEOGRAFIA (páginas 197-200)

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