Capítulo 3 – Análise do dizer dos alunos
3.1 O dizer do aluno
3.1.6 Há deslocamentos?
Quando perguntamos aos alunos se eles achavam que estudar inglês na escola havia
mudado alguma coisa em suas vidas, obtivemos respostas cuja análise é bastante válida para
esta pesquisa.
Vejamos o recorte 47:
(47) a01- “Muitas coisas assim, só (incomp) muita gente pergunta “Ah você sabe o que é
No recorte 47, verificamos uma forma de heterogeneidade mostrada marcada.
Conforme Ahthier-Revuz: “[...] neste conjunto de formas marcadas, distingo aquelas que
mostram o lugar do outro de forma unívoca (discurso direto, aspas, itálicos, incisos de glosas)
[...]” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 36). No recorte discursivo 47, o aluno a01 traz o dizer do
outro via discurso direto: “Ah, você sabe o que é isso?” e “Ah, tudo bem”. Authier-Revuz
(2004) explica, ainda, que a heterogeneidade mostrada está articulada com a heterogeneidade
do sujeito e do discurso, isto é, as formas de heterogeneidade mostrada manifestam
negociações do sujeito com a heterogeneidade que o constitui. Desse modo, ao trazer o
discurso do outro para seu dizer, o aluno a01 deixa flagrar aspectos da heterogeneidade que
constitui sua subjetividade, ou seja, o sujeito é constituído pela linguagem e também pelo
registro do imaginário, do simbólico e do real. Além disso, a heterogeneidade mostrada
manifesta também a negociação do sujeito com a heterogeneidade constitutiva do discurso,
logo, aparecem aí manifestações interdiscursivas.
O aluno a01 demonstra, também, possuir uma visão fragmentada da língua. Ao
utilizar o substantivo coisas e o pronome demonstrativo isso o aluno se refere a palavras que
ele conhece em inglês. Esse dizer é proveniente dos discursos que circulam na escola, se filia
à formação discursiva do inglês para fins práticos. O aluno enuncia ficar satisfeito ao ser
capaz de explicar o significado de alguma palavra em inglês quando lhe é perguntado. Essa
satisfação e surpresa em poder ser útil são expressadas pelo uso da forma verbal explico, o
aluno relaciona o inglês a uma questão prática, útil. A surpresa em ser capaz de explicar é
demonstrada pelo uso do advérbio até. A surpresa pode estar relacionada ao fato da
deficiência do ensino, dos discursos decorrentes deste fato, assim, apesar de todas as
dificuldades o aluno ainda se surpreende por saber um pouco de vocabulário. Porém, saber
um pouco de vocabulário está longe de proporcionar uma boa base de conhecimento de uma
língua estrangeira. Como já foi apontado aqui, a aprendizagem de uma língua estrangeira
envolve fatores não cognitivos e também a articulação de dimensões que Revuz (1998)
classifica como: dimensão do corpo, dimensão do eu e dimensão cognitiva. A idéia de que
saber inglês é acumular conhecimento de vocabulário também está presente no recorte 48:
(48) a04- “Porque eu não sabia falar nada em inglês, eu fui e aprendi.”
No dizer do aluno a04, o pronome indefinido nada quer dizer nenhuma palavra em
inglês, ou seja, nada significa não conhecer vocabulário em inglês. A utilização do verbo
falar também remete à representação que os alunos possuem de que a língua inglesa é a
língua da comunicação, pois ele poderia utilizar outros verbos como ler, ouvir ou escrever.
Porém, os discursos oriundos dos meios de comunicação, das propagandas de cursos de
inglês, os discursos sobre a globalização constituem seu imaginário e atuam na instituição de
representações.
Ao enunciar eu fui e aprendi, o aluno a04 remete à visão instrumentalizada da língua
inglesa, sugerindo que a língua é um objeto que está em um determinado lugar e que podemos
tocá-lo. Além disso, esse modo de enunciar também denota a visão de que aprender língua
estrangeira depende apenas da cognição, como se uma língua fosse apenas um conteúdo e
para aprender essa língua basta assimilar esse conteúdo.
A visão da língua como instrumento também está presente quando o aluno faz
referência à gramática. Ao ser perguntado sobre o que aprendeu na escola, o aluno a08
responde:
(49) a08- “Ah, os verbos né? Em inglês, as cores, as palavras, muitas coisas
Ao utilizar o substantivo coisas o aluno a08, a exemplo dos dizeres analisados
anteriormente, faz referência ao vocabulário e novamente refere-se a vocabulário ao enunciar
cores e palavras. Outro aspecto que faz parte desta visão da língua inglesa como instrumento,
é a gramática. O aluno a08 faz referência, em seu dizer, a verbos. Grigoletto (2001)
averiguou, em uma pesquisa realizada com estudantes do curso de Letras Português-Inglês,
que os alunos possuem a representação de que a língua pode ser decomposta em partes. Para
Grigoletto (2001): “[...] nas formulações a respeito do enfoque prioritário sobre a gramática
da língua encontra-se em funcionamento o discurso da tradição de estudos lingüísticos na
escola, que decompõe uma língua em “partes” para viabilizar o seu estudo enquanto sistema”
(GRIGOLETTO, 2001, p. 141). Mais adiante, em sua explanação, Grigoletto completa:
ancorado nesse saber, estaria o seu contraponto, ou seja, a noção de que, se uma língua é igual a um conjunto de pedaços e dessa forma ela pode ser descrita, aprender uma língua estrangeira implicaria aprender as “partes” da língua gradativamente para, no final do processo, sabe-la bem. Além desse, um correlato desse conceito de aprendizagem de línguas estaria no enunciado de que deveria haver um ponto-limite em que cada parte se esgota (isto é, se mostra completa, inteira) e forma um “todo” que é a língua (GRIGOLETTO, 2001, p. 142).
Quando o aluno enuncia muitas coisas remete a essa idéia de língua fragmentada e
também de língua como instrumento, conforme já dissemos na análise de outros recortes
discursivos. Além disso, ao utilizar o advérbio de intensidade muitas, o aluno demonstra
acreditar que conhece muito da língua inglesa e também demonstra uma visão bastante
limitada da língua. Primeiramente, é uma visão limitada porque remete à noção de língua
fragmentada, que se aprende em blocos. Segundo, é uma visão limitada porque este aluno não
possui a noção de que aprender a língua implica muito mais que saber “muitas coisas”. É
preciso se constituir nesta língua.
Reiteramos que o aluno não pode ser criticado por ter essa visão limitada de uma
língua estrangeira. Essa visão é processual, ou seja, é fruto, sobretudo, do processo de
ensino-aprendizagem que ele vive. Para que esse aluno ampliasse sua visão da língua seria preciso
que ele tivesse, por exemplo, vivências com a língua inglesa no sentido de explorar não só a
habilidade de ler, mas também de falar, de ouvir e de escrever em língua estrangeira. Além
disso o conhecimento da história dessa língua, de como ela se constituiu ao longo do tempo,
da cultura dos falantes nativos dessa língua seriam muito importantes para que esse aluno
visse a língua como um código que lhe permite interagir com outras pessoas e com outras
culturas.
Da mesma forma, não criticamos os professores dos alunos que entrevistamos,
porque não podemos responsabilizá-los inteiramente pelo fato de que seus alunos possuem
uma noção tão limitada da língua inglesa e também por saberem apenas um pouco de
vocabulário e não terem desenvolvido outras habilidades. Como já discutimos nesta
dissertação, há uma política de ensino-aprendizagem de língua estrangeira em curso que é
bastante insuficiente. Essa política aponta para o fato de que não é possível acontecer
deslocamentos identitários perceptíveis, pois a língua inglesa é um objeto ao qual o aluno toca
apenas uma faceta porque não lhe são dadas condições necessárias para que ele se constitua
nesta língua.
Analisemos agora o recorte 50:
(50) a02- “Ah, mudou assim, eu acho que eu tive que aprender as coisas eu (incomp)
pra saber alguma coisa eu tenho que saber inglês.”
Ao utilizar o verbo ter em tive e tenho que saber inglês o aluno a02 enuncia em seu
dizer mostrar o desejo de pertencimento a tudo o que o inglês representa, ou seja, o desejo de
ascensão social, por meio de boas oportunidades de emprego que são atribuídas ao inglês.
Esse desejo de pertencimento relaciona-se a questões de poder. O discurso da globalização
promete vantagens e propaga um estilo de vida atraente e a língua inglesa representa, no
imaginário social, uma forma de acesso a esse mundo de vantagens. Porém, como afirma
Faria (2005), quem representa tem o poder. Por isso os grupos hegemônicos exercem
influência sobre as representações que são suscitadas no imaginário social. Assim, essa
representação da língua inglesa como uma língua que permite o acesso a tudo o que a
globalização permite denota o poder dos povos de língua inglesa.
Conforme Lacan, o sujeito é constituído pela linguagem, a partir do registro do
imaginário, do simbólico e do real. No imaginário do aluno, a língua inglesa é a língua que
tudo promete. Porém, como já discutimos nesta dissertação, a língua inglesa não é a língua
que tudo promete, ela possui esse status devido a fatores sociais, históricos e políticos, que
suscitaram discursos de exaltação a essa língua, que por sua vez constituem representações
sobre ela. A respeito do real Pêcheux define como: “[...] um real constitutivamente estranho à
univocidade lógica, e um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no
entanto, existe produzindo efeitos” (PÊCHEUX, 1990, p. 43).Verificando no corpus de nossa
pesquisa, percebemos que o real desse sujeito, ou seja, a percepção de que a língua inglesa
não é tudo aquilo que ele imagina, não irrompe em seu dizer. Dessa forma, essa categoria de
um imaginário de enaltecimento da língua inglesa não se rompe, pelo menos na fase em que
se encontram os sujeitos dessa pesquisa. Não há dizeres que furam esse simbólico e que
funcionassem como um real que desestabilizasse esse imaginário. O que pudemos capturar no
dizer de alguns alunos é sua percepção de que o ensino de língua inglesa ao qual ele tem
acesso não lhe permite ser proficiente nessa língua. Como por exemplo, no recorte 51:
(51) P- “Mas você já sabe alguma coisa...”
a01- “Ah, muito pouco.”
Apesar de também se circunscrever nos discursos de enaltecimento da língua inglesa,
o aluno a01 demonstra estar ciente de que possui pouco conhecimento da língua, aludindo à
insuficiência do ensino ao qual ele tem acesso.
Parece que a percepção da insuficiência do ensino ao qual o aluno tem acesso é a
única manifestação do real que os alunos apresentam em seus dizeres. Pois eles não deixam
de exaltar a língua inglesa, ou seja, eles não percebem que aquilo que essa língua simboliza é
fruto de uma construção imaginária.
Vejamos a resposta do aluno a11 no recorte discursivo 52, quando lhe foi perguntado
se estudar inglês mudou algo em sua vida:
(52) a11- “Não... pra mim não.”
O aluno a11 admite que não houve mudanças na sua vida, após ter começado a estudar
inglês, porém considera importante aprender outras línguas, bem como inglês:
(53) a11 – “acho muito importante, eu tenho vontade de aprender espanhol... inglês...
espanhol.”
Ao enunciar desse modo, o aluno a11 demonstra o desejo de pertencimento ao mundo
globalizado, enunciando a importância de aprender duas línguas que têm sua expansão ligada
ao fenômeno da globalização. O enunciado Não... pra mim não remete aos reflexos da atual
política de ensino de línguas estrangeiras vigente no Brasil. O que podemos observar na
análise do corpus é que os alunos têm um determinado tipo de ensino que não condiz com
tudo aquilo que a língua inglesa promete. O aluno fala em viagem, em internet e, no entanto, a
escola, salvo raras exceções, centra-se no ensino de gramática e vocabulário. No entanto, a
demonstração de insatisfação com esse ensino no enunciado Não... pra mim não, é
insuficiente para desestabilizar esse imaginário, pois o aluno continua considerando
importante aprender inglês.
No documento
PAULIANA DUARTE OLIVEIRA O IMAGINÁRIO DO ALUNO SOBRE A LÍNGUA INGLESA NA CONSTITUIÇÃO DE SUA SUBJETIVIDADE
(páginas 114-121)