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Capítulo 1 – Conceitos Teóricos

1.3 Sujeito e subjetividade

É possível perceber que a noção de sujeito sofre alerações no percurso teórico de

Pêcheux, naquilo que se convencionou chamar de três fases do campo teórico da Análise do

Discurso. Na primeira fase, baseado em Althusser, Pêcheux descreve a maquinaria que opera

o processo discursivo. Nesta fase o sujeito é visto como interpelado pela ideologia. Na

segunda fase, também partindo da noção althusseriana de interpelação, Pêcheux desenvolveu

a noção de forma-sujeito, constituído pelo inconsciente e pela ideologia.

Partindo da idéia de Althusser de que a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos,

Pêcheux traz o discurso para esse processo de interpelação. A ideologia é materializada no

discurso, o sujeito como sujeito-falante, ao enunciar deixa flagrar aspectos dessa ideologia no

seu dizer. A interpelação é feita pelas formações discursivas nas quais o sujeito circunscreve

seu dizer e no interior das formações discursivas estão as formações ideológicas.

Pêcheux também agrega o inconsciente à noção de interpelação ideológica trazendo

as noções de Lacan sobre o inconsciente e o Outro para a sua teoria. O sujeito, para Pêcheux

(1995), é interpelado pela ideologia e afetado pelo inconsciente e se constitui pelo

esquecimento daquilo que o determina, ou seja, o que o determina é a interpelação da

ideologia, porém, esta é dissimulada no interior da formação discursiva. O sujeito constituído

pela ideologia e pelo inconsciente não possui consciência dessa constituição, pois o caráter

comum da ideologia e do inconsciente, que recebem de Pêcheux a denominação

estruturas-funcionamento é o de “[...] dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu

funcionamento” (PÊCHEUX, 1995, p. 152-153).

Pêcheux também traz a noção de pré-construído para o conceito de interpelação: “[...]

o “ pré-construído” corresponde ao “sempre-já-aí” da interpelação ideológica que

fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da universalidade (o “mundo das coisas”),

[...]” (PÊCHEUX, 1995, p. 164).

Outro acréscimo de Pêcheux à noção de interpelação é o conceito de esquecimento. A

questão do esquecimento é tratada por Pêcheux (1995) de duas maneiras: esquecimento nº 1 e

esquecimento nº 2. Por esquecimento nº 1, Pêcheux entende o fato de o sujeito ignorar que se

encontra no centro da formação discursiva e acreditar que aquilo que diz tem origem em si

mesmo e não em outro lugar. O sujeito acredita que ele mesmo dá sentido ao seu dizer. O

esquecimento nº 2 é, para Pêcheux, a instância em que “se apóia sua “liberdade” de sujeito

falante” (PÊCHEUX, 1995, p. 175), pois o sujeito seleciona dentro da formação discursiva

aquilo que deve ser dito e o que não deve ser dito. Porém, a “liberdade” do sujeito está restrita

ao interior da formação discursiva. A noção de forma-sujeito não permite ao sujeito se

desvencilhar da interpelação ideológica. Além disso, conforme Teixeira (2005, p. 90): “Uma

leitura do sujeito pelo viés da forma-sujeito induz então a AD a um certo pessimismo

político, pois expulsar o desejo do sujeito é emudecer seu clamor potencialmente rebelde,

[...]”. A noção de forma-sujeito sugere, então, um quadro de estabilidade.

Até aqui tratamos da forma-sujeito, que é o sujeito interpelado pela ideologia, porém

segundo Teixeira (2005), devido à noção de sujeito preso a uma estrutura de repetição sem

furo, incidiram críticas a essa noção de forma-sujeito tal qual é desenvolvida em Semântica e

Discurso. É na chamada terceira fase da Análise do Discurso, na obra O Discurso: Estrutura

ou Acontecimento que essa noção toma um outro corpo, porque entra a noção de real. Há uma

leitura da obra de Lacan que é feita por Pêcheux em que podemos perceber que as reflexões

de Pêcheux permitem uma aproximação de forma mais contundente com a noção lacaniana de

sujeito a partir da consideração do real. Teixeira faz a seguinte observação sobre o trabalho de

Pêcheux nessa nova fase:

os últimos textos do autor indicam a necessidade de um deslocamento, em relação ao que está proposto em Lês vérités de la Palice, do simbólico para o real, da linguagem para a pulsão, de que deve resultar um entendimento de que o sujeito é capaz de, no retorno ao simbólico, fazer um rearranjo de suas sobrederminações, modificando, ainda que momentaneamente, a situação já dada, sendo esta a “liberdade” possível para ele (TEIXEIRA, 2005, p. 91).

Ao considerar o sujeito na concepção de Lacan, constituído pela linguagem e também

pelo registro do imaginário, do simbólico e do real, Pêcheux mostra a possibilidade de a

Análise do Discurso lidar com o sujeito como o efeito-sujeito, desejante, indeterminado e

sempre em produção.

É relevante ressaltar, como o faz Teixeira (2005), o deslocamento que Pêcheux

promoveu em sua teoria: ele partiu da forma-sujeito desenvolvida na segunda fase, em que o

sujeito é assujeitado e interpelado pela ideologia, para o efeito sujeito da terceira fase, em que

o sujeito é desejante e está sempre em produção.

A aproximação de Pêcheux com a noção lacaniana de sujeito configura um sujeito

constituído pelo imaginário, pelo simbólico e pelo real. Conforme Teixeira (2005), o real é

inseparável do imaginário e do simbólico, formando com eles uma estrutura. Segundo a

autora, o imaginário está ligado ao nascimento do eu, o simbólico é identificado com a

linguagem, com o significante e o real é a impossibilidade de formalização pela linguagem, é

o impossível que escapa ao simbólico, portanto não simbolizável, mas que existe produzindo

efeitos: “[...] um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber que não se

transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos”

(PÊCHEUX, 1990, p. 43).

O sujeito desejante é movido pela pulsão. Desse modo, a subjetividade está sempre em

construção.Situamo-nos nessa noção de sujeito, visto que, considerar o sujeito como um

sujeito desejante é relevante para nos ajudar a compreender o modo de enunciar do aluno,

sujeito de nossa pesquisa, e também compreender como se constitui sua subjetividade.Via de

regra, o ensino de língua estrangeira oferecido na escola explora atividades de leitura, de

gramática e de vocabulário. Porém, o aluno está sempre em contato com discursos que

propagam os benefícios do inglês e, especialmente com o discurso dos institutos de idiomas,

que promete eficiência no ensino da habilidade de falar em inglês, speaking. A partir desses

discursos é atribuído à língua inglesa o significado de que ela é uma língua que oferece

vantagens àqueles que a conhecem, especialmente àqueles que conseguem se comunicar nessa

língua através da fala. Por conseguinte, constitui-se uma representação sobre a língua inglesa

que leva esse aluno a desejá-la e também a considerar que é preciso ser capaz de falar essa

língua para ter acesso a boas oportunidades nos estudos e na profissão. Logo, constitui esse

aluno uma contradição, pois o ensino ao qual ele tem acesso não lhe oferece condições de ser

proficiente em inglês, levando-o a desvalorizar o ensino da escola e a acreditar que os

institutos de idiomas são o lugar em que se aprende inglês.

O desejo do aluno pela língua inglesa não é o desejo pela língua inglesa propriamente

dita; é o desejo pelo lugar enunciativo ao qual ela promete acesso. É um outro lugar que o

aluno acredita que essa língua pode levá-lo, no qual este sujeito não está. Este lugar

supostamente daria acesso a melhores condições de vida. Desse modo, a língua inglesa marca

a possibilidade de um outro lugar enunciativo que dá acesso a essas coisas. Além disso, a

frustração que configura esse aluno, devido à falta de acesso à língua inglesa no espaço

discursivo da escola, também constitui sua subjetividade.

A constatação de que estamos lidando com um sujeito desejante nos leva a

compartilhar da idéia de subjetividade produzida e modelada pelo sistema capitalístico. Essa

idéia é desenvolvida por Guattari (2005) de que trataremos a seguir:

o sujeito, segundo toda uma tradição da filosofia e das ciências humanas, é algo que encontramos como um être-là, algo do domínio de uma suposta natureza humana. Proponho, ao contrário, a idéia de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida (GUATTARI, 2005, p. 33).

Guattari prefere, ao invés de ideologia, tratar de subjetivação e produção de

subjetividade justificando que “A noção de ideologia não nos permite compreender essa

função literalmente produtiva da subjetividade” (GUATTARI, 2005, p. 36). Para o autor há

no sistema capitalístico máquinas que fabricam determinados modelos de sujeitos, há uma

modelização da subjetividade. Poderíamos então dizer que os sujeitos de nossa pesquisa, o

aluno e o professor de inglês, correspondem a modelos, ou seja, têm suas subjetividades

produzidas, como se pode verificar na análise do corpus.

Optamos pela noção de subjetivação, como entendida por Guattari, porque

entendemos ser mais adequada à natureza desta pesquisa, pois partimos da noção de sujeito

desejante. Assim, a noção de subjetivação desenvolvida por Guattari é um conceito

compatível com esse sujeito da 3ª fase da Análise do Discurso, porque há um desejo em

operação que move o imaginário do sujeito de nossa pesquisa. Ele é um sujeito desejante

movido pela pulsão que faz com que ele vá adiante.

Conforme dissemos anteriormente, o foco de nosso trabalho é compreender porque o

aluno enaltece uma língua de que ele praticamente não tem conhecimento. Para Woodward,

há contradições na subjetividade: “As posições que assumimos e com as quais nos

identificamos constituem nossas identidades, a subjetividade inclui as dimensões

inconscientes do eu, o que implica a existência de contradições” (WOODWARD, 2000, p.55).

Essa contradição pode ser explicada pelo conceito de interdiscurso, uma vez que

aquilo que explica a posição favorável do aluno a respeito da língua inglesa são os discursos e

as representações sobre essa língua construídos a partir do já-dito, pois apenas o contato com

a língua inglesa no contexto escolar não seria suficiente para que o aluno se constituísse nessa

língua.

As dimensões inconscientes do eu, incluídas na subjetividade e que explicam a

existência de contradições e o dizer heterogêneo originado no interdiscurso, reforçam ainda

mais essa característica contraditória da subjetividade. Além disso, devemos considerar,

também, os processos de subjetivação.

Segundo Guattari, existe produção de subjetividade, uma subjetividade de natureza

industrial e maquínica, que é fabricada, modelada, recebida e consumida.

As máquinas de produção de subjetividade variam. Em sistemas tradicionais, por exemplo, a subjetividade é fabricada por máquinas mais territorializadas, na escala de uma etnia, de uma corporação profissional, de uma casta. Já no sistema capitalístico, a produção é industrial e se dá em escala internacional (GUATTARI, 2005, p. 33).

Guattari explica, ainda, que há “[...] certos processos da constituição da subjetividade

coletiva, que não são resultado da somatória de subjetividades individuais, mas sim do

confronto com as maneiras com que, hoje, se fabrica a subjetividade em escala planetária”

(GUATTARI, 2005, p.37). Conforme esse autor, o indivíduo consome sistemas de

representação, de sensibilidade etc., e a máquina de produção de subjetividade capitalística

opera desde a infância do indivíduo, “[...] desde a entrada da criança no mundo das línguas

dominantes, com todos os modelos tanto imaginários quanto técnicos nos quais ela deve se

inserir” (GUATTARI, 2005, p. 49). Guattari explica também: “[...] que é a subjetividade

individual que resulta de um entrecruzamento de determinações coletivas de várias espécies,

não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia e tantas outras” (GUATTARI, 2005,

p. 43).

A TV, o cinema, a música, a mídia, as propagandas de institutos de idiomas e o livro

didático de língua inglesa são também grandes agentes modelizadores de subjetividade; além

disso, conforme já dissemos em alguns pontos desse trabalho, são também grandes

propagadores dos benefícios e vantagens do inglês. Esses elementos fornecem imagens sobre

a língua inglesa que são extremamente atraentes para os jovens que são por elas constituídos.

Desse modo, a subjetividade desse aluno está sendo moldada de um modo conveniente

para o sistema capitalista. Conforme já dissemos na seção sobre representação e imaginário,

quem representa tem o poder, quer dizer, as representações são determinadas de acordo com o

interesse de grupos hegemônicos. As representações sobre a língua inglesa são atribuições de

sentidos aos discursos que interessam aos países de língua inglesa e constituem, para os

alunos e também para o professor de inglês, regimes de verdade, ou seja, essas representações

são tomadas como senso comum, são naturalizadas conforme afirma Fairclough (1989) e

veiculadas pelas máquinas de produção de subjetividade de que nos fala Guattari (2005),

constituindo os sujeitos.