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2 O PROJETO DE EDUCAÇÃO MUSICAL DA UFC

2.6 Habitus conservatorial

O que caracteriza o que vem sendo chamado de modelo conservatorial? Segundo argumenta Pereira (2014), esse tipo de formação já estaria tão naturalizada para o músico que dificilmente percebe a necessidade de expor tais questões ou conseguir vislumbrar uma outra maneira de pensar os processos de ensino-aprendizagem. Peço licença ao leitor para um longa citação na qual o autor acima referido elenca alguns aspectos característicos do ensino superior de música no Brasil, a partir de uma análise da constituição histórica que demonstra aspectos fortemente ligados ao que costuma-se chamar de “ensino conservatorial”.

- o ensino aos moldes do ofício medieval – o professor entendido, portanto, como mestre de ofício, exímio conhecedor de sua arte;

- o músico professor como objetivo final do processo educativo (artista que, por dominar a prática de sua arte, torna-se o mais indicado para ensiná-la);

- o individualismo no processo de ensino: princípio de aula individual com toda a progressão do conhecimento, técnica ou teórica, girando em torno da condição individual; a existência de um programa fixo de estudos, exercícios e peças (orientados do simples para o complexo) considerados de aprendizado obrigatório, estabelecidos como meta a ser alcançada;

- o poder concentrado nas mãos do professor – apesar da distribuição dos conteúdos do programa se dar de acordo com o desenvolvimento individual do aluno, quem decide sobre este desenvolvimento individual é o professor;

- a música erudita ocidental como conhecimento oficial; a supremacia absoluta da música notada – abstração musical;

- a primazia da performance (prática instrumental/vocal);

- o desenvolvimento técnico voltado para o domínio instrumental/vocal com vistas ao virtuosismo; a subordinação das matérias teóricas em função da prática;

- o forte caráter seletivo dos estudantes, baseado no dogma do ‘talento inato’ (PEREIRA, 2014, p.93-94).

Pereira (2014) nos lembra que esta prática – do “modelo conservatorial” – não ocorre sem reflexão, mas que ela é refeita e repensada continuamente, incluindo tanto a sua manutenção quanto a sua mudança. Assim, Pereira entende como mais adequado tratar de

habitus conservatorial, que seria “uma ideologia própria do campo artístico que foi

incorporada nos agentes que passaram a atuar no campo educativo. Esta ideologia baseia-se na superioridade da música erudita, ligada a uma suposta autonomia, a um vácuo social que, contudo, não existe” (PEREIRA, 2014, p.96).

Pereira (2014) discute que, para as licenciaturas em música, não há nenhum dispositivo legal que oriente o currículo a privilegiar determinado tipo de música ou alguma estruturação curricular específica. O que, na percepção do autor ocorre, é uma mudança superficial ou “cosmética ” – quando se altera o nome da disciplina, apenas, ou mesmo uma 28

mera reorganização dos conteúdos no currrículo – , mas que a essência conserva-se inalterada. A incorporação de tal habitus conservatorial faz com que a “música erudita figure como conhecimento legítimo e como parâmetro de estruturação das disciplinas”, sendo a notação musical uns dos objetivos centrais deste currículo. Assim, “o aprendizado musical torna-se mais visual do que auditivo, por mais paradoxal que isso possa parecer.” (Pereira, 2014, p. 95). Ou seja, neste contexto, dá-se muito mais importância à escrita musical do que mesmo à exploração do fenômeno sonoro em si.

Assim, sendo a música erudita ocidental o principal referencial do habitus conservatorial implicando na negação de outras manifestações musicais, a inserção do ensino de música na escola regular é prejudicada pois tende a ser protagonizada por profissionais cuja formação não lhes possibilita a inserção no contexto sócio-cultural de seus educandos. (PEREIRA, 2014). Concordamos com o referido autor quando este afirma que:

ainda que a música popular urbana esteja imersa em processos também ideológicos e que envolvem massificação e homogeneização de gostos e estilos de vida, não é cabível negá-la ou excluí-la dos processos educativos, uma vez que esta música está

Este termo se refere a, por exemplo, mudanças de nomenclatura que não refletem uma mudança efetiva da 28

presente no cotidiano de praticamente todos os cidadãos brasileiros. Seria mais produtivo, portanto, trabalhar a partir da realidade dos alunos e procurar desenvolver o seu senso crítico, tendo como objetivo uma mudança na experiência de vida e, especialmente, na forma de se relacionar com a música e com a arte no cotidiano. Tudo isto se, ao final do processo, esta mudança for da vontade deles (PEREIRA, 2014, p.98).

Isto posto, entendemos que, ao dar destaque à chamada “música brasileira” e sugerir, em seus objetivos, a formação de um profissional “capaz de atuar de maneira crítica e reflexiva, interagindo, enquanto artista educador musical, com o meio em que atua” (UFC p. 14) o Projeto de Educação Musical da UFC busca, justamente, romper com o habitus conservatorial por nós incorporado e propor uma formação mais condizente com os pressupostos de democratização do acesso ao ensino de música, considerando que todos podem aprender/vivenciar música, e, sendo esta um saber, contribuir para a formação integral do ser humano.

No entanto, ressaltamos que, apesar dos esforços para romper com o habitus conservatorial e empreender uma Educação Musical para o Século XXI – mais democrática e voltada para o desenvolvimento integral do sujeito autônomo, agregada a valores colaborativos – o Projeto de Educação Musical da UFC ainda está se consolidando e se construindo.

No curso de Música de Sobral, por exemplo, citaremos alguns indícios que demonstram uma grande necessidade de reflexão e aprimoramento da sua proposta pedagógica. O número de formados ainda é baixo em comparação com o número de ingressos (2014.2 - 3 egressos; 2015.2 - 6 egressos; 2016.2 - 4 egressos; ingressantes por ano - 40 alunos). Ainda existem algumas disciplinas que “represam” mais estudantes, especialmente nos primeiros anos como as “Práticas Instrumentais” e “Percepção e Solfejo”. De maneira geral, ainda podemos perceber a presença muito significativa do habitus conservatorial pela maneira como as disciplinas se organizam no currículo, muito semelhante àquela existente em currículos tidos como mais conservadores, nos quais é comum que os conteúdos e atividades encontrem-se desconectados uns dos outros. O currículo do curso de Música ainda é muito rígido, no sentido de permitir poucas escolhas do estudante sobre a própria formação, ou seja, possui pouca flexibilidade (apenas 6,4%) . 29

Em uma carga horária de 2.968 horas, apenas 192 horas são dedicadas para disciplinas optativas ou livres. A 29

carga horária de disciplinas obrigatórias é 2.048h, 128h dedicadas ao Trabalho de Conclusão de Curso, 400h para Estágio Curricular Supervisionado e 200h de Atividades Complementares.

Percebemos como necessário uma profunda e contínua reflexão sobre a adequação do curso às necessidades pedagógicas dos estudantes ingressantes, o que exigiria uma reformulação da prática no sentido de superar o habitus conservatorial que ainda ecoa na formação de professores de música no século XXI.