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2 O PROJETO DE EDUCAÇÃO MUSICAL DA UFC

3.6 Educação Dialógica como base para a Aprendizagem Musical Compartilhada

3.6.5 Reflexões sobre a prática educativa dialógica

3.6.5.1 Saber de experiência feito

Paulo Freire alerta para a importância do “saber de experiência feito”, ou senso comum, como a base para a construção de um conhecimento

resultante de procedimentos mais rigorosos de aproximação aos objetos cognoscíveis. (…) Subestimar a sabedoria que resulta necessariamente da experiência sociocultural é, ao mesmo tempo, um erro científico e a expressão inequívoca da presença de uma ideologia elitista. Talvez seja mesmo o fundo ideológico escondido, oculto, opacizando a realidade objetiva, de um lado, e fazendo, do outro, míopes os negadores do saber popular, que os induz ao erro científico. Em última análise, é essa ‘miopia’ que, constituindo-se em obstáculo ideológico, provoca o erro epistemológico (FREIRE, 2014-B, p.116).

E continua:

O respeito, então, ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural. Alocalidade dos educandos é o ponto de partida para o conhecimento que eles vão criando do mundo. ‘Seu’ mundo, em última análise, é a primeira e inevitável face do mundo mesmo (FREIRE, 2014-B, p.119).

Logo, discursos que afirmam que o estudante que ingressa no curso de Licenciatura em Música da UFC em Sobral estaria, por exemplo, “zerado”, ou seja, afirmar que o estudante nada sabe de música ao ingressar na faculdade significa desconsiderar o que o estudante traz consigo de experiência, vontade e capacidade de aprendizado. Paulo Freire afirma que:

Se não é possível defender uma prática educativa que se contente em girar em torno do ‘senso comum’, também não é possível aceitar a prática educativa que, zerando o ‘saber de experiência feito’, parta do conhecimento sistemático do(a) educador(a) (FREIRE, 2014-B, p.81).

Antes de ensinar os conteúdos, trabalhamos e compartilhamos a leitura de mundo, o que vai nos ajudar a mediar o aprendizado de outros saberes como, por exemplo, os conteúdos propostos para determinada disciplina.

Basta ser homem para ser capaz de captar os dados da realidade. Para ser capaz de saber, ainda que seja este saber meramente opinativo. Daí que não haja ignorância absoluta, nem sabedoria absoluta (FREIRE, 2014-A, p. 137-8).

Muitas vezes os estudantes, e até mesmo os professores, são “desautorizados" de alguma maneira em seu percurso formativo. Acaba se alojando uma ideia de que não se é possível avançar apesar dos esforços ou que a barreira é maior do que realmente precisa ser. Quando tratamos do aprendizado de música, especialmente, o conceito de dom é muito forte no discurso e na vivência dos sujeitos. É comum acontecer bloqueios no potencial de criação e aprendizagem que devem ser superado pelo professor e, simultaneamente, trabalhado com

os estudantes no sentido de sua superação. Muitas vezes, é necessário realizar um trabalho de superação de falsas descrenças antes e durante o trabalho mais específico dos conteúdos e 62

demais habilidades.

Um dos efeitos principais desta ideia de dom impregnada no discurso dos estudantes é a desvalorização do próprio saber de experiência feito, levando-os a acreditar, muitas vezes, que seu conhecimento prévio nada tem em relação com o conhecimento acadêmico. Mais gravemente, o próprio professor pode ter esse entendimento, aumentando ainda mais a distância entre o estudante e os conteúdos/saberes a serem trabalhados. “Partir do ‘saber de experiência feito’ para superá-lo não é ficar nele” (Freire, 2014-B, p.98).

Não há pra mim, na diferença e na ‘distância’ entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar- se, tornando-se então, permito-se repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente ‘rigorizando-se’ na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão (FREIRE, 1996, p.31).

Este entendimento de Freire é, para nós, essencial. Não há uma ruptura entre o conhecimento do estudante e o conhecimento do professor em relação ao conteúdo/objeto a ser trabalhado, mas uma possibilidade de superação através da construção de um novo entendimento, compartilhado, entre todos os agentes do processo educativo. Esta é uma postura central que possui implicações didáticas profundas. Todos os processos didáticos, como planejamento, seleção de conteúdos, objetivos, metodologias, avaliação, acabam por ser redesenhados para acomodar este "novo" (talvez) princípio.

Quando tratamos especificamente do ensino de Música, percebemos que a ideia de respeitar o saber de experiência feito do estudante se aproxima dos princípios de educação musical apresentados por Keith Swanwick . O primeiro de tais princípios é considerar a 63

música como uma forma de discurso. Para o referido autor, discurso musical é o que as pessoas expressam com música mas que não se constitui uma linguagem, por não encerrar o

Falsas descrenças: Refiro-me a estudantes que ingressam no curso de Música e, por trazerem internalizados 62

certos discursos desautorizantes, não acreditam que podem aprender música por alguma limitação inata. Ou seja, apesar de estarem no lugar apropriado, com disponibilidade e suporte, sofrem por uma “falsa descrença” em si mesmo(a). Apesar de sutil, é um sentimento profundo e limitador, que precisa ser trabalhado no sentido de sua superação.

Keith Swanwick é um educador e pesquisador britânico com destaque na pesquisa em Educação Musical. 63

Influenciou a Educação Musical brasileira principalmente através da tradução de seu livro: Ensinando Música Musicalmente, com tradução de Alda de Oliveira e Cristina Tourinho, Editora Moderna, 2003.

conceito mais claramente, como linguagem faz. No entanto, apesar de não ser linguagem, comunica algo mesmo que não verbalizável. Este é o discurso musical, que se expressa especificamente com música e possui humano sentido. O segundo princípio de educação musical é considerar o discurso musical do estudante (SWANWICK, 2003), o que se aproxima fortemente do que é proposto por Paulo Freire como Saber de Experiência Feito proposto por Paulo Freire.

A intenção é que o professor esteja atento ao fazer musical dos estudantes – e junto a eles – independente da complexidade utilizada. Dessa forma, as possibilidades de expressividade e sentido musical do som terão maiores chances de se orientarem para a ocorrência de experiências musicais significativas (OLIVEIRA, 2012, p. 22).