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A HISTÓRIA DA LOUCURA

No documento Saúde mental: saberes e fazeres (páginas 172-175)

OS SABERES SOBRE A LOUCURA PRODUZIDOS NO MEIO RURAL

A HISTÓRIA DA LOUCURA

Focault (1978) delimita o lugar da loucura na história a partir das considerações acerca da relação entre a lepra e a loucura. A lepra foi representada como um mal contagioso com forte conotação moral -religiosa, que deveria ser segregado da sociedade. Com o tempo, o

foco sobre a lepra foi sendo substituído pelas doenças venéreas, as quais passam a ser objeto de interesse das estruturas morais e reli- giosas da época. Apesar da exclusão social, os doentes acometidos de doenças venéreas vão se infi ltrando nos hospitais, demonstran- do resistências em sair. Este processo força a construção de casas especiais para esses doentes, não mais para sua exclusão, mas para o seu tratamento. As doenças venéreas tornam-se “causa médica, inteiramente do âmbito do médico” (FOUCAULT, 1978, p.8).

Esta perspectiva de tratamento da doença venérea estabelece uma distinção entre a doença só moral, aquela que é associada à no- ção de pecado e de salvação, como a lepra, e a doença que pertence ao campo médico, aquela que merece tratamento com medicamen- tos. Foucault (1978) afi rma não ser a loucura herdeira da doença venérea, mas da lepra. E serão necessários quase dois séculos para que a loucura suceda a lepra em seus espaços de medos, reação de divisão, de exclusão e de purifi cação, para incluí-la nas formas de tratamento médico.

A Renascença (século XV ao XVII) evidenciou uma grande con- tradição. Por um lado, a segregação da loucura, por outro, a sua “libertação”, por meio da expressão das várias artes. Através dessa

expressão, foi possível compreender as múltiplas formas de cuidar da loucura: como dominá-la, como exorcizá-la para que ocorra a remissão dos pecados, como extirpá-la da sociedade, enfi m, como “tratá-la”.

Foucault utiliza-se das expressões da literatura, da fi losofi a e da iconografi a para mostrar, através da análise discursiva destas ex- pressões, como a loucura foi representada e associada à morte, ao vazio, ao nada. Entretanto, a loucura, mesmo em face da desordem que representa, exerce um grande fascínio nos homens, porque sig- nifi ca um saber.

A Era Clássica, por sua vez, iniciada ainda no século XVII, vai silenciar a loucura. Descartes, ao perceber que a loucura esteve, du- rante a Renascença, em pé de igualdade com os sonhos e com todas as possibilidades de ilusão e de erro, posiciona-se de forma contrá- ria, afi rmando a existência de diferenças básicas entre a loucura, o sonho, a ilusão e o erro. Assim, se na Renascença evidenciava-se a representação da loucura, mediante a incerteza entre a razão e a desrazão, na Era Clássica, destacava-se a cisão entre a loucura e a razão. Essa delimitação favorece o início do domínio da loucura pela medicina, originando a fase dos internamentos.

O fato mais marcante da Era Clássica foi o internamento do lou- co. O objetivo do internamento ainda não estava atrelado à ideia de tratamento, mas ao de segregar. Além dos doentes venéreos e loucos, eram internados também devassos, dissipadores, homosse- xuais, blasfemadores. Assim, a grande internação foi marcada pela mistura indiscriminada, sem que houvesse preocupação em discer- nir os doentes dos não doentes, os criminosos dos alienados.

Nos séculos XVII e XVIII, surgem as internações por tempo determinado em lugares reservados à loucura. Essas experiências marcam, mesmo que de forma rudimentar, a representação da lou- cura como doença.

A Era Clássica também marca o nascimento do asilo implemen- tado por Pinel que ressalta a necessidade de diferenciar os loucos dos criminosos comuns e mendigos. Pinel defende o tratamento do louco e critica as formas usadas naquele momento, a saber: o amontoado de doentes em lugares úmidos, frios e abafados. Propõe

a quebra das correntes, a separação dos doentes e a sua colocação em lugares mais apropriados.

Ao fi nal do século XVIII, o personagem do médico, que até então ocupava uma posição secundária na vida do internamento, torna- se fi gura central do asilo. Este fato vai modifi car o relacionamen- to entre a alienação e a medicina e comandará toda a experiência moderna da loucura. É nesse sentido que caminha a psiquiatria no século XIX, convergindo para Freud, que aceitou o par médico-pa- ciente. Isto signifi ca que Freud desmistifi cou todas as estruturas asilares, transferindo os poderes dos asilos, sobre a existência do louco, para o médico. Pela situação psicanalítica, a alienação tor- nou-se desalienante, porque o louco passa a ser sujeito do médico.

O pensamento moderno sobre a loucura de acordo com Foucault (1978) é marcado pela ruptura das velhas formas de pensar, entre a antiguidade clássica e a modernidade. O século XIX é marcado pelo discurso da liberdade do louco. Para Foucault, a liberdade proposta por Pinel era ambígua, pois só podia atuar no espaço fechado do in- ternamento. A associação direta da loucura com o crime e o mal se desfaz, mas o louco é inserido nos mecanismos rigorosos do deter- minismo: “retirando as correntes que impediam o uso de sua livre vontade, mas para despojá-lo dessa mesma vontade, transferida e alienada no querer do médico” (FOUCAULT, 1978, p.507).

Porter (1991) afi rma que, no século XIX, a ideia de internamento é sofi sticada, pois a internação visa à reprogramação do louco, me- diante o ensino da disciplina e a retifi cação do pensar e do sentir. Na metade do referido século, procedeu-se a constatação de que os loucos não estavam obtendo a cura. Ao invés dela, muitas outras formas de loucura foram descobertas e registradas. Assim, à estru- tura asilar, foi atribuída a fabricação da loucura. Uma nova mudan- ça, então, se opera na ideia asilar: os asilos passam a ser usados como depósitos de loucos incuráveis.

O século XX surge trazendo consigo as incertezas do passado quanto à elucidação da loucura. Demonstra que não existem signi- fi cados científi cos hegemônicos e nem representações sociais fi xas. Esta instabilidade resulta de múltiplos fatores decorrentes da cul- tura, das ideologias, das representações sociais. A loucura conserva

o seu enigma, que impede a solução do problema da divisão entre teorias psicológicas e somáticas (PORTER, 1991). O conhecimento da doença mental ainda não é o sufi ciente para deslindá-la.

O momento atual mostra que os aparatos discursivos sobre a loucura se confi guram como linguagem de poder do médico e do psicólogo sobre o louco. Entretanto, por suas características de ruptura e pulverização dos discursos científi cos, pelo despontar das práticas interdisciplinares, pelo questionamento de tudo o que predominou até agora acerca da forma de ver o mundo dos fenôme- nos humanos e sociais, o desenvolvimento da ciência sinaliza para uma tomada de decisão cada vez mais sensível, exigente e atuante nas causas humanas e sociais.

No documento Saúde mental: saberes e fazeres (páginas 172-175)