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O PROCESSO DE ENLOUQUECIMENTO

No documento Saúde mental: saberes e fazeres (páginas 184-187)

OS SABERES SOBRE A LOUCURA PRODUZIDOS NO MEIO RURAL

O PROCESSO DE ENLOUQUECIMENTO

Nesta categoria, estão reunidas as RS (ver Figura 2) acerca das hi- póteses prováveis para o aparecimento da doença mental. A nossa análise permitiu sintetizar um grupo composto de três hipóteses que foram descritas, de forma recorrente, por todos os atores, as quais serão comentadas a seguir, obedecendo à ordem de evocação. A primeira conjuga os aspectos metafísicos e morais guiados pela ideia da fé como suporte para a obtenção da saúde/doen- ça mental. É nessa hipótese que está situada a representação da

loucura espiritual. Os agricultores relatam que não acreditar na existência divina, não ter muita fé em Deus, e se afastar Dele são os responsáveis diretos pela causa e emergência da doença mental. Nesse caso, a doença é representada como algo mandado por Deus, em forma de punição, para pessoas que tiveram a sua fé abalada. Queiroz (1991) argumenta que as ideias fatalistas relacionadas ao destino e a Deus possuem um peso considerável tanto para a com- preensão das causas das doenças, quanto para o seu tratamento. Figura 2 - Árvore de associação: o processo de enlouquecer

Fonte: Dados da pesquisa.

A segunda hipótese insere-se nos aspectos existenciais e signi- fi ca que a doença não é congênita, mas resulta da existência social. É nessa hipótese que a loucura originária da fraqueza de nervos é ancorada. Trata-se das difi culdades que uma pessoa desenvolve para enfrentar os problemas existenciais, em sua interface social.

A fraqueza dos nervos, além de ser o primeiro passo para a pes- soa enlouquecer, é também um elemento facilitador da ocorrência de outras doenças. Quando se é nervoso, é mais difícil enfrentar outros problemas da vida. A fraqueza faz aumentar a ansiedade e a depressão e faz a pessoa pensar em suicídio.

Seguindo essa ideia, o enlouquecimento atrela-se a pouca con- dição que teria uma pessoa para resolver problemas do tipo: sobre- carga de trabalho, trabalho muito estressante, problemas afetivos familiares, perda dos bens materiais, excesso de pensamento, so- brecarga nos estudos, situação social e fi nanceira precária da fa- mília, perda do emprego, dentre outros. Este grupo de problemas

foi representado como potencialmente capaz de fazer uma pessoa “enfraquecer dos nervos” e depois enlouquecer. De acordo com essa perspectiva, a loucura seria adquirida a partir das condições exis- tenciais e sociais a que estaria submetida uma pessoa qualquer.

Herzlich (1986) afi rma que as RS da saúde e da doença, sejam quais forem os processos psicológicos que as sustentam, são en- raizadas na realidade social e histórica. Ainda que metafórica, a doença é, portanto, um signifi cante, cujo signifi cado está na rela- ção do indivíduo com a ordem social. Herzlich afi rma ainda que a representação da saúde e da doença se esquematiza numa dupla oposição: indivíduo e sociedade, saúde e doença.

A terceira hipótese remete a causa da doença mental à perspec- tiva organicista. Nela, aspectos orgânicos são representados como herança familiar. Apesar dos agricultores não terem usado o termo loucura hereditária, fi zeram referências à presença de diversos lou- cos numa mesma família, indicando a ideia de doença adquirida através de hereditariedade. A loucura herdada é considerada difícil de tratar, porque é representada como “doença verdadeiramente grave”, por vir com a pessoa desde o nascimento.

Apesar da captação das três hipóteses representadas como pos- sibilidades explicativas para o enlouquecimento, observamos que a explicação metafísica-espiritual é preponderante em relação às outras (existencial e organicista). Na busca de justifi cativas para tal fenômeno, levantamos algumas suposições, na tentativa de aproxi- mar uma resposta.

Segundo Moscovici (1978), uma das funções das RS é tornar o não familiar, familiar. Baseados nisso, perguntamos: em relação à loucura, o que é o não familiar para os nossos interlocutores? Na nossa interpretação, o não familiar é a explicação das causas da lou- cura. Vimos que os sintomas são facilmente reconhecidos, mas a origem, a causa da loucura, não.

Para responder a essa pergunta, defendemos que o saber sobre as causas da loucura não migrou, com facilidade, dos universos rei- fi cados para os consensuais, em função do domínio do componente espiritual na composição das RS sobre a loucura. Isso nos faz pen- sar sobre a difi culdade de acesso às informações e o predomínio das

ideologias religiosas, como fenômenos que afetam a elaboração das RS sobre a loucura, garantindo-lhe a hegemonia do componente espiritual no meio pesquisado, pois os agricultores no Cariri parai- bano compartilham valores menos globalizados.

Tal compreensão nos lançou a buscar, na TRS, subsídios para essa predominância. Constatamos, de acordo com Moscovici (1988), que as representações hegemônicas perpassam as religiões, os mitos e os grupos monolíticos. Moscovici (1978) afi rma que as RS, apesar de modifi cáveis, fl utuantes, passíveis de ser constante- mente transformadas no cotidiano, apresentam, também, aspectos permanentes e mais duradouros. Guareschi (2000) afi rma que as RS, ainda que não sejam estáticas, possuem em seus subterrâneos lastros duradouros e mais permanentes.

Os posicionamentos de Moscovici e Guareschi nos levam a con- cluir que o componente consensual das RS da loucura é o lastro duradouro, no qual se apoiam os outros elementos desta RS, o que garante a este componente a hegemonia sobre os demais. Outra possibilidade de explicação pode estar associada ao caráter incu- rável da loucura. Sendo a loucura um fenômeno para o qual não se encontrou a cura, mesmo que se considerem todos os avanços, tanto da medicina psiquiátrica, quanto das outras ciências.

Ainda outra possibilidade explicativa refl ete a evidência do cará- ter ambíguo da formação das RS. Morant e Rose (1998) argumen- tam que as RS da loucura são elaboradas num contexto de ambigui- dade. Esta ambiguidade atinge não apenas a formação de RS dos grupos consensuais, mas também a elaboração de RS nos universos reifi cados.

No documento Saúde mental: saberes e fazeres (páginas 184-187)