• Nenhum resultado encontrado

OS PROTOCOLOS E O ESTADO DE NECESSIDADE

No documento Saúde mental: saberes e fazeres (páginas 42-45)

SAÚDE MENTAL E DIREITO: A CONTENÇÃO

OS PROTOCOLOS E O ESTADO DE NECESSIDADE

A retenção forçada, frequentemente, causa severos danos aos pa- cientes e, principalmente, é expressão evidente de um abuso. São os paramédicos ou assistentes que, durante as noites, decidem au- tonomamente amarrar ao leito alguns pacientes psiquiátricos ou alguns idosos dementes, por acreditar que o movimento deles pode provocar danos a si mesmos ou aos outros. Trata-se de uma prática absolutamente criticável, mas que corresponde ao estado de difi - culdade ao qual são expostos tais profi ssionais, porquanto, em mui- tas situações, esses profi ssionais são numericamente insufi cientes, tecnicamente não formados e indicados como bodes expiatórios para cada acidente que ocorra com os pacientes. Nesses casos, cria- se uma implícita cumplicidade entre os médicos e os paramédicos. Estes últimos evitarão que alguns problemas sejam expostos à equipe médica, especialmente durante a noite, e, em troca, terão “carta branca” para administrar toda situação difícil.

Alguns pensam, então, que o problema da retenção consista uni- camente em estabelecer uma lista de regras para torná-la a mais segura possível. Para tal fi m, nos blocos hospitalares de internação, preenchem-se protocolos e procedimentos de contenção, nos quais se evidencia a necessidade de que a retenção seja “prescrita” por um médico e, de modo especial, que seja prescrita através de um documento escrito; defi nem-se as técnicas para imobilizar um pa- ciente agitado, a prioridade das partes do corpo que serão bloque- adas e amarradas, o tipo de meios de contenção a ser empregado, a duração da contenção, as características da cela de isolamento e elenca-se tudo o que pode constituir um potencial perigo, entre

outras ações. Também se sublinha a exigência de monitorar a res- piração, os batimentos cardíacos e a pressão do sangue do paciente, defi ne-se o número de enfermeiros que devem estar presentes nas situações de emergência e se recomenda o uso da contenção o me- nos possível e só em caso de necessidade.

A defi nição de tais procedimentos é, sem dúvida, um passo à frente, se comparada com as situações de abuso que são mantidas escondidas, e pode ajudar indiretamente a fazer emergir a existên- cia de um grave problema institucional. Mas, quando isso acontece, a razão permanece, sobretudo, na intenção da equipe de saúde de querer se tutelar contra toda causa legal que poderia ser movida pe- los familiares, em caso de eventuais acidentes (quedas, ferimentos e mortes de pacientes). É um exemplo, entre tantos, a famosa “me- dicina defensiva” que, mais do que defender os interesses dos pa- cientes, procura defender, prioritariamente, os interesses do pes- soal de saúde. Nesses protocolos, entre as razões da intervenção, quase sempre, preveem-se, ameaçadoramente, as consequências negativas que podem trazer o uso da “camisa de força farmacológi- ca” que, em alternativa, poderia ser adaptada.

Acredito, todavia, que, apesar de toda a boa intenção, tais pro- tocolos são completamente mistifi cadores e inúteis. Por quê? Sim- plesmente, por causa dos princípios que deveriam regular cada tratamento médico e, de modo especial, o psiquiátrico. Esses prin- cípios são resumíveis nas seguintes defi nições:

• Amarrar nunca é um ato terapêutico;

• A coerção física é admissível somente na presença de perigo de vida (condição de urgência e estado de necessidade);

• Não é admissível uma coerção programada, em via preventiva (através de uma coerção mecânica).

Já contestei, neste capítulo, a mistifi cação da utilização do ter- mo psicanalítico “holding” e de evidenciar como a violação de uma norma jurídica não pode encontrar nenhum espaço no âmbito do conceito de terapia ou de ciência. Sem exagerar, fi nalizando o argumento, gostaria de relembrar como os médicos do III Reich

justifi cavam, em nome da Ciência, todos os experimentos deliran- tes nos campos de extermínio.

De outro lado, querendo permanecer no real, não é possível ne- gar que existam situações em que o médico tem que intervir, com uma coerção física sobre um paciente agitado. Como exemplo, te- mos os casos de “agitação psicomotora” ou de “agressividade con- tra si e os outros”, que acontecem nos blocos psiquiátricos e para os quais precisa encontrar soluções. Como corretamente apontam Grassi e Ramacciotti (Fogli di Informazione, 2004):

Existem situações nas quais é permitido, ou melhor, é necessário intervir sobre uma pessoa usando uma força física, naturalmente limitada. A coerção físi- ca pode ser usada em um confronto direto com o paciente, com a intenção de superar a crise psiqui- átrica, mas – é preciso evidenciar – reconhecendo a subjetividade dele, os seus direitos e necessidades, embora expressados com modalidade violenta e espasmódica. Essa contenção deve ser temporária, no tratamento terapêutico, e não, um fi m em si mesmo, ao contrário, deve ser uma premissa para verdadeiras intervenções médicas imediatamente sucessivas (GRASSI; RAMACCIOTTI, 2004, p.59). A partir de uma visão legalista, essa coerção, teoricamente sus- ceptível de ser considerada um crime, entra em uma exigência de comportamento mais geral, que prescinde de todo o contexto espe- cífi co (a disciplina psiquiátrica) e é claramente ligada “ao estado de necessidade”. Essa condição é prevista pelo Código Penal Italiano e regulamentada pelo art. 54. Sem considerar que, se o paciente tem um comportamento agressivo contra a equipe de saúde, pode-se apelar, sem dúvida, para a norma que regulamenta a legítima defe- sa. De outro lado, os profi ssionais de saúde não poderiam prescin- dir da necessidade de uma intervenção, senão cairiam na omissão de socorro.

força no tratamento coercitivo para alcançar a cura, que é legitima- do pela instância do tratamento sanitário obrigatório. Todavia são muitos os magistrados que contestam a possibilidade de qualquer modalidade de coerção com a recusa do paciente: na opinião deles, no imediato, na impossibilidade de uma subministração farmaco- lógica, já se faz necessário a exigência de tratamento com a simples permanência do paciente no hospital.

Enfi m, é evidente a relevante diferença entre uma limitação física, durante uma sedação farmacológica (que, em alguns casos, pode acontecer em colaboração com a polícia) e uma limitação pro- gramada pelo psiquiatra e que utilize um instrumento mecânico: nesse caso, provoca-se uma imobilização forçada da pessoa por um período de tempo que vai além do tempo limitado em que se con- fi gura um estado de necessidade (infelizmente os costumes teste- munham dias, meses de contenção). Essa consideração evidencia a ilegalidade de todas “as contenções mecânicas” – sejam as obtidas por meios especiais como a camisa de força, sejam aquelas em que se usam cintos para amarrar no leito as articulações ou o corpo dos pacientes, sejam aquelas obtidas através de dosagem “não terapêu- ticas” dos fármacos. Nessas condições – é óbvio – a violência contra o paciente não é de breve duração e não pode ser comparada com a que é necessária para deixar o paciente mais tranquilo e poder administrar um fármaco.

Todas essas considerações demonstram que, racionalmente, o tema da contenção não comporta - sensu stricto - a necessidade de protocolos ou de procedimentos. A normativa existente, que se re- fere aos “sãos”, pode e deve, simplesmente, aplicar-se também aos loucos. Não estamos diante de um “vacuum normativo”, que deve ser preenchido com novos procedimentos. Naturalmente, os protoco- los, em respeito às normativas existentes, podem detalhar melhor as ações a serem empreendidas e terem uma justifi cativa própria, se permitem abrir refl exões críticas sobre o argumento e se querem alcançar um consentimento pelo paciente.

No documento Saúde mental: saberes e fazeres (páginas 42-45)