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O PROCESSO HISTÓRICO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INFÂNCIA

No documento Saúde mental: saberes e fazeres (páginas 79-86)

DESLOCAMENTOS E INVENÇÕES NO TRABALHO EM SAÚDE MENTAL

O PROCESSO HISTÓRICO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INFÂNCIA

A institucionalização da infância tem sido descrita como um fenômeno da modernidade. O historiador Phillippe Ariès (1981) localiza, neste período histórico, também a emergência do modelo 5 Esta parte do artigo integra a dissertação de mestrado de Carla Bertuol “A criança e o Estatuto de criança e do adolescente. Um estudo sobre a polissemia da criança nos espaços públicos”, PUC, São Paulo, 2003.

nuclear de família e a concepção de infância tal como a vemos na at- ualidade. Ele nos alerta quanto a um produto: a institucionalização em espaços especialmente reservados para as crianças e o afasta- mento da criança do mundo da sociabilidade e das relações sociais importantes, tais como o trabalho, a sexualidade e a vida política. Ele compara o processo das crianças ao que aconteceu com os po- bres, as prostitutas e os loucos, enfatizando a sua retirada de cena.

O afastamento das crianças da vida social que vivemos hoje deve ser entendido, no conjunto de modifi cações que aconteceram no tempo que se estende do século XV ao século XVIII, como pro- duto de um longo processo que também engendrou outros afasta- mentos. Essa lenta separação produziu a diferenciação entre adul- tos e crianças, que foi tomando as mais diferentes formas sociais. Embora essa diferenciação, por si só, não seja uma resposta para entendermos os relacionamentos das crianças com o mundo tal como o vemos na atualidade, ela pode ser vista como uma teori- zação histórica que abriu caminho para uma série de formulações no campo teórico sobre a infância e para o questionamento básico de que essa diferenciação entre adultos e crianças não pertenceria à ordem natural das coisas. As crianças não são apenas diferentes dos adultos; nós também construímos diferenças entre elas.

Partindo da iconografi a, de documentos, manuais e estilos de vestimenta, o autor aponta um processo de lento afastamento das crianças da plena sociabilidade e do mundo do trabalho. Estabelece, assim, alguns limites dentro dos quais é possível ser criança nas sociedades modernas: na escola, na família e nos espaços e tempos regulamentados no conjunto dos ambientes sociais.

O historiador fala da ausência do “sentimento de infância” até o fi nal do século XVII.

[...] o sentimento de infância não existia — o que não quer dizer que as crianças fossem negligencia- das, abandonadas ou desprezadas. O sentimento da infância não signifi ca o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particulari- dade infantil, essa particularidade que distingue

essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem (ARIÈS, 1981, p.48).

À total indiferenciação entre adultos e crianças que existia na Idade Média, segue-se um período de pequena diferenciação, em que se reconhece uma peculiaridade para esse tempo da vida. Assim, nesse período, as crianças passaram a ser alvo de todas as atenções quando pequenas, mas, assim que adquiriam alguma desenvoltura física, eram enviadas a alguma outra família, a outra casa, para que pudessem aprender ajudando os outros nas tarefas da casa.

Esse sentimento construído no meio familiar não era, contudo, o único em relação à criança. Os moralistas da época censuravam a excessiva atenção para com as crianças. Mesclando certa vontade de domesticação das crianças e certa preocupação com o seu bem -estar, os moralistas propunham uma defi nição ética do relaciona-

mento entre crianças e adultos.

Mudanças sociais levaram a escola a substituir a aprendizagem em atividades práticas como forma de educação. Assim, isoladas na escola, na condição de alunos, as crianças foram separadas dos adultos ou, ao menos, deixaram de se misturar com eles e de apren- der diretamente da vida. Uma mudança acontece nesse período:

Duas idéias novas surgem ao mesmo tempo, a noção de fraqueza da criança e o sentimento da responsabilidade moral dos mestres. O sistema disciplinar que elas postulam não se podia enrai- zar na antiga escola medieval, onde o mestre não se interessava pelo comportamento de seus alunos fora da sala de aula (ARIÈS, 1981, p.180).

A saída das crianças dos ambientes de plena sociabilidade para viver a escolarização é parte de uma transformação em várias rela- ções decorrentes da urbanização.

A escolarização foi um dos principais veículos na produção histórica da infância e, à medida que as

escolas foram ganhando terreno e importância, co- meçou um longo processo de segregação, de isola- mento e de entrega das crianças, um processo que continua até os dias de hoje. (QVORTRUP, 1994, p.27, tradução livre das autoras)6

A socialização da criança, junto aos seus pais, passou a ser um período necessário para a entrada no mundo adulto. Os pais ti- nham a tarefa moral de educar seus fi lhos para prepará-los para as demandas da sociedade. Para tanto, contavam com a participação de outras pessoas autorizadas fora do espaço de casa. A partir de 1870, a educação escolar tornou-se compulsória na Inglaterra.

As hipóteses propostas por Ariès em seu livro podem ser apre- sentadas da seguinte maneira:

A infância como categoria social é um construto histórico, não somente pelas diferentes conota- ções que lhe possam ser atribuídas pelas diver- sas sociedades e comunidades, mas porque nem sequer sua própria individuação e seu reconheci- mento são universalmente adquiridos [...] a ‘des- coberta’ moderna da infância que se traduziu em maior cuidado e atenção específi ca para as crianças comportou por isso mesmo o seu fechamento no âmbito totalizante da família e a segregação em vários sistemas educativos que implicam sempre controle. (BARALDI; MAGGIONI, 1997, p.48, tra- dução livre das autoras).7

6 “Scholarization was one of the main vehicles in producing childhood histori- cally and – as schools gained ground – a long process of segregation, of isola- tion and of delivering children to racionality began, which has continueed into our own day” (Qvortrup, 1994, p.27).

7 “L’infanzia come categoria sociale è uno costrutto storico, non soltanto per le diff erenti connotazione che le possono essere attribuite da diverse socie- tà e comunità, ma perché, nemmeno la sua stessa individuazione ed il suo

As práticas sociais exercidas com as crianças nos espaços insti- tucionalizados contribuíram para a construção da ideia de criança/ infância universal. Embora ideias e práticas não sejam dissociadas nem devam ser vistas como causa/efeito, a institucionalização das crianças tem sido apontada como uma característica das socie- dades ocidentais modernas.

Pode-se compreender a institucionalização da infância a partir das práticas sociais trazidas pela modernização, decorrentes das di- versas formas de viver a vida inscritas em lógicas diferentes. Ken- nedy (1999) fala-nos das produções do ambiente escolar a partir de 1450, quando foram introduzidas as carteiras escolares. A partir do século XVI, os manuais descrevem um “novo recato e comedimento à mesa durante as refeições, nos hábitos de sono e no desempenho das funções corporais, que enfatize a discrição e a privacidade”. A atividade de ler em silêncio mostrava a crescente refl exividade e o modo diferente de usar a linguagem como um domínio e descrição do mundo: “promoveu um relacionamento silencioso entre o leitor e seu livro, foi uma mudança fundamental, que redesenhou a fron- teira entre a vida interior e a vida em comunidade” (CHARTIER, 1989).

Esse afastamento acontece ao mesmo tempo em que se dá o processo de personalização:

Personalização é a conseqüência de uma mudança estrutural importante na sociedade ocidental que começou no século XVI-XVII: com o crescimento de uma diferenciação funcional dentro da socieda- de, indivíduos tornaram-se pessoas. Não podiam mais ser pensados como membros de grupos e famílias: eles deviam ser eles mesmos, construir riconoscimento sono universalmente acquisiti [...] la “scoperta” moderna dell’infanzia, che si é tradotta in maggiore cure ed attenzioni specifi che per i bambini, ha comportato per ció stesso la loro chiusura entro l’ambito totaliz- zante della famiglia e la segregazione in vari sistemi educativi che implicano sempre e comunque controllo”. (BARALDI; MAGGIONI, 1997, p. 48)

autoconfi ança e auto-identidade. Nas diferentes formas e contextos de comunicação societária, eles eram relatados como autônomos, isto é, como seres humanos únicos e específi cos, inteiramente respon- sáveis por suas escolhas. O resultado paradoxal da moderna construção social das pessoas na comuni- cação é a socialização de uma mente individualizada, conferindo crescente importância ao sentido da au- tonomia e autodeterminação (MAGGIONI; BARAL- DI, 1999, p.9, tradução livre das autoras).8

Ivar Frones (1994) e Elisabeth Nasman (1994) consideram os conceitos de individualização, individuação e institucionalização amplamente relacionados às mudanças sociais ocorridas na tran- sição das sociedades tradicionais para as sociedades capitalistas. A entrada das crianças nas escolas signifi cou uma regulamentação maciça sobre as crianças por parte da educação e dos profi ssionais envolvidos, um controle social crescente.

A vida institucional é feita a partir de uma medida individual. Para os sistemas burocráticos, o indivíduo é a unidade a que cor- respondem os direitos e o controle social. Isso signifi ca que a prá- tica institucional se dirige para a criança e não para os pais. A or- ganização tende à individualização, pois as práticas psicológicas e pedagógicas tendem a acentuar a individualização e revelam um 8 “Personalization is a consequence of an important structural change in Wes- tern society, which began to take place in the sixteenth-seventeenth century: with the growth of a functional diff erentiation inside society, individuals beco- me persons. Th ey can no more primarily be thought of as members of groups and families: they must rely on themselves, constructing self-confi dence and self-identity. In the diff erent forms and contexts of societal communication, they are related as autonomous, i.e., as unique and specifi c human beings, full responsible for their choices. Th e paradoxical result of the modern construc- tion of persons in communication is the socialization of a individualized mind, giving an increasing importance to the sense of autonomy and self-rooting.” (MAGGIONI; BARALDI, 1999, p. 9).

paradoxo: de um lado, um controle social através das autoridades burocráticas e, de outro, a promoção da individualização. Para Fro- nes (1994) e Nasman (1994), a individualidade assim reconhecida aos indivíduos serve ao seu controle burocrático.

As instituições favorecem identifi cações cada vez mais preci- sas de seus integrantes e das tarefas que eles devem ali executar. Foucault (1979) fala da regulamentação do espaço e da busca de disciplinamento dos corpos. A entrada das crianças para a escola signifi cou uma regulamentação maciça sobre as crianças, por parte de educação e dos profi ssionais envolvidos e favoreceu a individu- alização. Medidas de inteligência e de comportamento, entre ou- tras somadas à regulamentação, especialização e controle fi zeram a emergência de normais e anormais.

Os processos de institucionalização da infância usam um jogo sagaz de controle ao lidarem com as crianças a partir de sua inser- ção familiar, ao mesmo tempo em que as particularizam para as relações cotidianas e disciplinares (FRONES,1994; NASMAN,1994).

Apesar de acontecer para todas as crianças em nossa sociedade, a institucionalização é distribuída de maneira desigual. As crianças podem ser facilmente rotuladas nos processos que tendem a mas- sifi cação e a assunção de uma identidade institucional que, muitas vezes, naturalizamos. Neste sentido, basta nos aproximarmos do recreio e de um momento de sala de aula para percebermos a dife- rença e as possibilidades de liberdade.

Embora o conceito de institucionalização da infância venha sendo usado na literatura sociológica, o conceito de instituição também pode ser tomado de uma maneira mais restrita do que o conceito sociológico, que supõe entidades societais básicas e vê a família como uma instituição. Ao falar de instituições, podemo- nos “referir a organizações com objetivos, a uma organização de trabalho, a uma estrutura de tomada de decisão, a uma equipe etc. orientadas para o trabalho com crianças” (NASMAN, 1994, p.167).

Goff man (1974, p. 11) defi ne a instituição “um local de residência e trabalho onde grande número de indivíduos com situação seme- lhante, separados da sociedade mais ampla por considerável perío- do de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”.

Esta defi nição destaca tanto o afastamento da vida social quanto a criação de um espaço único e com caráter totalizador da experiência pessoal. Ele também nos alerta que as características da organiza- ção atuam sobre a experiência pessoal e o sentimento de si mesmo, podem ser encontradas em diferentes graus em outras instituições.

Atualmente, sabemos que as crianças e os adolescentes vivem nas instituições processos engendrados em seus interiores que nem sempre chegam aos seus exteriores da mesma forma que são vivenciados pelos pupilos ou que se justifi cam frente a seus man- datos sociais. Processos identitários de empobrecimento e mortifi - cação do eu (GOFFMAN, 1974) não se aplicam apenas aos manicô- mios, mas são passíveis de acontecer em qualquer instituição onde os interesses ou demandas dos internos não sejam os mesmos dos seus dirigentes. É preciso ir além da retórica para perceber como as instituições trabalham muito mais no sentido de sua manutenção do que no seu mandato social.

Neste contexto amplo, emergem as demandas para o aten- dimento em saúde mental como as inúmeras queixas escolares que chegam aos serviços, com as diferentes formas de violência e diagnósticos que operam a normalidade e a anormalidade nestes espaços.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO E A POLÍTICA DE

No documento Saúde mental: saberes e fazeres (páginas 79-86)