• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2: DESENVOLVIMENTO LOCAL SUSTENTÁVEL

3.2. AS RAÍZES DO TERCEIRO SETOR

3.2.2. I DENTIFICAÇÃO CIENTÍFICA DO TERCEIRO SETOR

O termo terceiro setor, na conceção de Ferreira (2009b:322), insere-se na esfera do Estado-Providência e do Estado desenvolvimentista, principalmente à sua crítica, às suas crises e às suas mudanças. A autora comenta que foi a partir da crise do Estado- Providência que se proliferam pesquisas no âmbito do terceiro setor, já identificadas como organizações sem fins lucrativos, fora da esfera estatal e de mercado (Ferreira, 2000). Completando o pensamento de Sílvia Ferreira acrescenta-se o excerto infra.

Obviamente, muitas das iniciativas e relações designadas agora de terceiro setor existiam anteriormente, algumas precedendo a intervenção do Estado em muitas áreas, enquanto outras cresceram em consequência de programas do Estado- Providência. Porém, estas iniciativas não eram descritas como setor até à década de 1970 (Ferreira, 2009b:322).

Tese de Doutoramento – Bernadete Bittencourt 163

Explica Carvalho Ferreira (2009)98, que foi a partir do anos setenta que as iniciativas de OTS surgem com maior acuidade socioeconómica e formam espontaneamente um facto novo: as redes de sociabilidades inclinadas ao DLS. Em outro momento, Carvalho Ferreira e Guerra (1994) e Castel e Borja (2001) anotam que a formação de rede sociabilidade decorre impulsada pelo movimento da globalização. Como explicam esses autores, naquilo que seria a sociabilização da informação, da aprendizagem social e da aculturação acionadas pelas redes de Tecnologia Informação e Comunicação (TIC).

Para Carvalho Ferreira (2007d) este movimento de iniciativas de OTS vem a ser reflexo também das incertezas socioeconómicas resultado do progresso do fator produção/trabalho no mundo das empresas, da ciência e da técnica no quadro da racionalidade instrumental do capitalismo. O carácter dos fenómenos promotores de exclusão dos indivíduos nas sociedades hodiernas não é suscetível de socializar e controlar no quadro institucional e formal do Estado e do mercado (2006: 351).

[…] o terceiro setor personifica uma evolução histórica integrada, de princípio e práticas, com uma geografia cultural e humana específica, […] resultado dos dilemas contemporâneos que a sociedade civil é forçada a assumir, perante as contingências da crise do Estado e do mercado, nas suas múltiplas dimensões (Carvalho Ferreira, 2007d:14).

Assim, entende Carvalho Ferreira (2006) que, a aceitabilidade dos excluídos ascenderem para o mundo da outra economia pelas perversões criadas deixa de ser uma

98

Este autor desenvolveu uma brilhante linha de raciocínio sobre a crise do Estado e as suas diferentes dimensões, tanto no campo das políticas sociais, como das políticas económicas (ver com mais acuidade Carvalho Ferreira, 2006:342,343; 2007d). Cabe aqui, também recordar o pensamento de Rosavanllon (1995) quando discute a nova questão social sob a égide do Estado-Providência. Em unanimidade, Carvalho Ferreira e Rosavanllon sublinham que o Estado, no contexto da crise que se instalou após os trinta anos gloriosos de crescimento económico, perde a sua condição socioeconómica que lhe é absolutamente necessária para uma administração política do espaço/território. Além desses autores, Laville (2009: 8-12) anota esse mesmo período como um fio condutor para a sociedade associar-se em busca de melhores condições de trabalho e direitos de cidadania ativa.

164 Tese de Doutoramento – Bernadete Bittencourt

alternativa positiva. Aclara o autor: “não se admira que como processo de adaptação e de reacção a esta realidade, o Terceiro Setor seja uma solução possível e desejável para os seres humanos que se encontram nessa situação” (ipsis litteris Carvalho Ferreira, 2006: 325).

Segundo Laville e Roustang (1999), a expressão terceiro setor sobreleva-se mundialmente com a proliferação de OTS imbuídas de resolver os problemas socioeconómicos no local, um desafio de uma parceria entre o Estado e a sociedade civil. Sobretudo as parcerias no sentido de resolver os problemas causados pela crise do Estado-Providência, desaceleração da economia, o aumento do desemprego e a crise ambiental de norte a sul, explicam os autores. Neste contexto, aduzem Defourny et al. (2000) e Almeida (2005), o manifesto do terceiro setor incitou o universo académico a estudos em que firmou o termo e a investigar o carácter das OTS e a sua força económica, o seu papel central na economia moderna em âmbito de globalização, local e supranacional.

Pode-se afirmar que o acelerado progresso tecnológico, a partir século XX, conduziu o homo faber a viver em um sistema de vida globalizado, incitando-o a buscar formas diversificadas de trabalho em equilíbrio ecossocioeconómico. Assim, na moderna sociedade, o homo faber reaviva outros modos de organizações que revelam uma economia plural, criativa, geradora de inovação social e compromissada com o desenvolvimento local sustentável. Como já mencionado no Capítulo 2, o berço desses factos deu-se, por um lado, pela estagnação do crescimento económico e pela crise económica que começou a se instalar a partir da década de setenta; por outro, pelas consequências do crescimento industrial e os danos provocados no meio ambiente, tudo isso aliada a transformação do papel do Estado.99 Na esfera desses acontecimentos, no local, o homo faber aglutinou-se em movimentos sociais, i.e., criou-se assim, um ambiente de procriação das organizações de gestão coletiva por todo o mundo, circunstância sem precedentes para ignorar a sua realidade (Santos, 2002b). Em comum

99

Sobre a transformação do papel do Estado pode-se analisar com maior profundidade os estudos de Sílvia Ferreira, nomeadamente – “O papel das organizações do terceiro setor na reforma das políticas

públicas de protecção social. Uma abordagem teórico-histórica” –, tese de mestrado registada na

Tese de Doutoramento – Bernadete Bittencourt 165

acordo Ferreira (2009b) e Almeida (2010) ratificam que é nesse cenário que o terceiro setor se desenvolve progressivamente…

As primeiras análises económicas contemporâneas do terceiro setor surgem nos anos 1970 e, a partir daí, desenvolvem-se a um ritmo bastante rápido novas teorias constantemente sujeitas a revisões, desenvolvimentos e reformulações. Fortemente inspiradas na tradição neoclássica e concebidas a pensar na realidade norte-americana, desde muito cedo esbarraram com a complexidade de um setor que nunca coube na elegância formal dos modelos neoclássicos (Almeida, 2010: 36).

Fora da “elegância formal dos modelos neoclássicos”, o terceiro setor possui uma identidade singular em um contexto de economia plural (Laville e Eme, 2000) com a sua gestão democrática e de participação cidadã.100 Assim, o terceiro setor aparece sob outras formas de ação coletiva e de associativismo, sendo que essas organizações surgem imbuídas em reduzir as assimetrias socioeconómicas e conseguem propulsar outras configurações de trabalho e emprego para satisfazer as necessidades da população local (Corry, 2010, Lorentzen, 2010). Como observa Coraggio (2009) são organizações que formam uma autoprodução coletiva, redes de sociabilidade para a troca de conhecimento, sistemas de troca mercantil com a finalidade de reabilitar a economia local e, em especial, para a inclusão social. São organizações cujas raízes fixam-se no imo da história social, económica e ambiental do lugar, e esta é uma das suas características, seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento (Coraggio, 2002). A sua expressão demográfica e geográfica aponta uma tendência no sentido de sustentabilidade e de uma efetiva estruturação histórica de associações, cooperativismos

100

Sílvia Ferreira explica-nos pessoalmente, quando do nosso encontro em entrevista para esta tese que os primeiros estudos sobre o terceiro setor ampararam-se em conteúdos teóricos da economia neoclássica, pondo em prática as teorias relativas a oferta e a procura para traçar o perfil, o carácter e o comportamento das OTS. O primordial entendimento dessa teoria foi a divisão da sociedade em setores. Essa divisão se dava conforme as finalidades económicas dos agentes sociais, sendo estes compreendidos como agentes de natureza jurídica pública ou privada. Portanto, o terceiro setor é diversas vezes concebido como um espaço institucional entre o Estado e o mercado. Na ideia que aqui se manifesta, entende-se o termo como uma expressão generalista que serve para englobar um universo organizacional, entre essas duas esferas, que emerge no espaço societal.

166 Tese de Doutoramento – Bernadete Bittencourt

e mutualidades que não se pode negligenciar (Carvalho Ferreira, 2006: 325)101. Mas, é o recente despontar do terceiro setor e a sua atual dimensão ecossocioeconómica nas sociedades modernas que o destaca como um fenómeno ímpar, apontando o seu equilíbrio seja para a economia, como para o social, tanto de forma direta como indireta (Nunes, 2004).

Segundo Delors (2004:206-207), as pesquisas europeias aludindo a expressão terceiro setor, pela primeira vez foi em 1978, e isto ocorreu em França. Sobre esta referência de Delors, esclarece Ferreira (2009:323), que as alusões ao termo foram apontadas com o desassossego social na área do emprego e a crítica da relação salarial fordista, sugeridas pelas iniciativas de autonomia no trabalho. Por conseguinte, Delors (2004: 207) explica que no final dos anos 1970 ele, o autor, realizou um estudo para a Comissão Europeia intitulado – La création d’emplois dans le secteur tertiaire: le troisième secteur en France – em que analisou um grande número de organizações de natureza cooperativa e voluntária. Porém, somente em 1979 que Jacques Delors, em coautoria com Jocelyne Gaudin, publicou – Pour la création d’un troisième secteur (Delors, 1979). Nesse artigo, os autores discutem a criação de um terceiro setor coexistindo com o setor de economia de mercado e do governo na Europa. Mais ainda, o estabelecimento de um quadro jurídico e financeiro europeu que pudesse promover o desenvolvimento de iniciativas de organizações do terceiro setor.

A ideia de se ter um terceiro setor apoiado, atuando ao lado do setor capitalista, também foi sugerido por Alain Lipietz em 1984 à Comissão Europeia – entre l’entreprise capitaliste et la fonction publique. Na perceção de Laville (2000b), a importância da contribuição de Lipietz foi por um terceiro setor europeu ainda mais abrangente, ou seja, como uma estratégia de ampliação dos postos de trabalho e emprego. Mas esse também foi o posicionamento de Eme e Laville (1999) quando defenderam a ideia de apoio e promoção das OTS como novas práticas sociais numa abordagem pluralista do terceiro setor. Para Lipietz (2001), bem como Lallement e Laville (2000), o problema não consentia em expressar só os anseios da sociedade em

101

Também é importante lembrarmos que vários são os fatores que estão na origem do terceiro setor, em especial, segundo Carvalho Ferreira (2006), a sua história secular enquanto corpos sociais permeio na sociedade civil.

Tese de Doutoramento – Bernadete Bittencourt 167

relação ao terceiro setor, mas das práticas dos atores que o compõem, além do ensejo do homo faber na construção socioeconómica perante a sociedade civil.

Para Defourny (2001) o trabalho de Delors e de Gaudin pode ser considerado como pioneiro. Todavia, Delors (2004: 208) sublinha que a invenção da expressão, e mesmo do conceito – terceiro setor –, deve ser visto em seu contexto histórico. Isto porquê, muitos foram os factos que marcaram o final da década de 1960 e o período de 1970 – 1980 na Europa. Em particular, o renascimento dos conceitos de associativismo e cooperativismo, sob a palavra de ordem – trabalho diferente –, nomeadamente em França, Itália, Suécia, principalmente entre os países nórdicos, afirma o autor. Com efeito, o renascimento dos conceitos de associativismo e de cooperativismo em contexto de trabalho diferente propiciou um maior volume de estudos que tiveram por objetivo o crivo do terceiro setor sob o estatuto de uma outra economia.

Na aceção de Quintão (2004:2) a expressão terceiro setor “tem tido uma utilização crescente desde o final da década de 90”. Todavia essa utilização do termo, de modo generalizado, na assunção de Defourny et al., (2000:15) e de Carvalho Ferreira (2009:322) tem sido usado como “fórmula genérica para uma realidade mais complexa”. O que Carlota Quintão sublinha em conformidade com os autores aqui citados conforme excerto a seguir:

Este termo é utilizado genericamente para designar um conjunto de organizações muito diversificadas entre si, que representam formas de organizações de actividades de produção e distribuição de bens e prestação de serviços, distintas dos dois agentes económicos dominantes – os poderes públicos e as empresas privadas com fins lucrativos –, designados frequentemente e de forma simplificada, por Estado e Mercado (ipsis litteris Quintão, 2004:2).

Para Quintão o uso da expressão terceiro setor, em Portugal, apresenta vantagens principalmente por dois motivos: primeiro porque o grau de desenvolvimento de estudos nesta área é ainda incipiente. Segundo porque as características da realidade

168 Tese de Doutoramento – Bernadete Bittencourt

empírica das OTS “são híbridas em relação aos critérios de delimitação conceptual proposto pelas referidas tradições” (Quintão, 2006: 9).