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Identificação do imperativo de proteção do consumidor

1 DIREITO, INTERNET, CIBERESPAÇO E MENSAGENS

3.1 Identificação do imperativo de proteção do consumidor

A tutela jurídica consumerista, tal qual se apresenta nos tempos hodiernos, é fruto, dentre outras razões, das profundas alterações socioeconômicas advindas das revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX, que romperam com o regime feudalista. Com a transição do capitalismo mercantil para o modelo industrial é inaugurada a fase de produção em série que tinha o objetivo de minimizar os custos e maximizar os lucros das empresas.

Corroborando a ideia formulada acima, afirma Fachin que foi a partir das alterações no cenário econômico desencadeadas pelas revoluções industriais que se vislumbrou crescente desigualdade nas relações de consumo, fenômeno acentuado, sobretudo, pela grande concentração de capital nas mãos de poucos grupos econômicos122.

Nesse período houve ampla migração da população residente na área rural para os grandes centros urbanos. Este novo contingente populacional passou, paulatinamente, a manifestar ávido interesse pelo consumo de novos produtos e serviços no intuito de satisfazer suas necessidades materiais. A partir daí começa a se consolidar o fenômeno da massificação da produção, da oferta e do consumo, assunto abordado no segundo capítulo.

Foi nessa conjuntura histórica que os desequilíbrios sociais se acentuaram. O tão sonhado mundo de uma igualdade material para todos desmoronou diante da entrada em cena do capitalismo que primava pela ideia de maximização do lucro. A esse respeito assevera Bauman que a globalização deixou de ter aquele significado esperançoso de igualdade, para tornar-se sinônimo de coisas fugindo ao controle e terra de ninguém123.

Os fabricantes, produtores e fornecedores tornaram-se influentes economicamente. O comércio desenvolveu-se e o setor de serviços foi expandido em escala global. O total domínio dos bens de produção e do conhecimento dos dados técnicos e das informações de mercado fizeram dos consumidores verdadeiros fantoches nas mãos dos grandes conglomerados industriais. Assistiu-se à perda da liberdade de escolha do consumidor diante das ardilosas técnicas de persuasão utilizadas pelas empresas124.

122 FACHIN, Luiz Edson. Novo Código Civil Brasileiro e o Código de Defesa do Consumidor: um approach de

suas relações jurídicas. Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra: n. 07, p. 111-135, 2005, p. 112.

123 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, passim.

124 MONTEIRO, António Pinto. Do Direito do Consumo ao Código do Consumidor. Estudos de Direito do

A publicidade teve papel preponderante de catalisador de demandas inovadoras, assumindo a responsabilidade pela divulgação em massa de produtos e pela atração de novos consumidores para o mercado, dando os primeiros passos para consolidação da era do consumismo, temática debatida no capítulo anterior.

Dessarte, foi no século XX que surgiram os grandes estabelecimentos comerciais e industriais. Com a mecanização da agricultura, a população rural migrou para a periferia das grandes cidades, causando o inchaço populacional e a deterioração dos serviços públicos essenciais. A produção passou a ser em massa, o consumo perdeu seu caráter subjetivo e o comércio mundial ganhou proporções despersonalizadas.

O Direito, em sua tentativa permanente de acompanhar os fenômenos sociais e tutelá- los na medida em que se tornam relevantes, reagiu à falta de proteção dos consumidores. Estes deixaram de ser encarados como pessoas singulares e tornaram-se um mero número. Diante do descompasso entre o fato social e a ciência jurídica surgiu a concepção de tutela de uma relação entre sujeitos inequivocamente desiguais. Nesse sentido salientou Grinover:

Toda e qualquer legislação de proteção ao consumidor tem, portanto, a mesma ratio, vale dizer, reequilibrar a relação de consumo, seja reforçando, quando possível, a

posição do consumidor, seja proibindo ou limitando certas práticas do mercado125.

Destarte, a ordem jurídica vigente, sob a égide de valores até então consagrados, quedou-se insuficiente perante a nova realidade das relações de consumo, caracterizada pela extrema desigualdade existente entre as partes: fornecedores e consumidores, sujeitos de direito mencionados no tópico 2.2. O reconhecimento da vulnerabilidade – e também da hipervulnerabilidade em casos especiais, como se verá adiante – e o direito a uma proteção especial do Estado foram responsáveis pela mitigação do dogma da autonomia da vontade nos contratos consumeristas.

Os avanços tecnológicos da indústria e do comércio aliados ao poder de influência da publicidade exigiram uma resposta do Direito no sentido de alterar o modelo contratual constante nas codificações do século XX. O Direito Civil, concebido para tutelar relações paritárias, passou a não mais dar conta desse distinto modelo de relação jurídica. A legislação aplicável no Brasil da época era o Código Civil de 1916, que foi elaborado para disciplinar

125 GRINOVER, Ada Pellegrini, et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores

relações individualizadas, e não pera regular aquelas oriundas da demanda coletiva, como ocorre nas relações consumeristas.

A novel sociedade de consumo substitui a característica da bilateralidade de produção – em que as partes negociavam cláusulas contratuais e eventual matéria-prima que seria utilizada na confecção de determinado produto – pela unilateralidade de produção – na qual um dos polos, o fornecedor, seria o responsável exclusivo por ditar as regras da relação de consumo, sem a participação efetiva, em regra, da parte mais frágil.

Diante de tal contexto, relativizou-se o conceito de que os contratos fazem lei entre as partes. A obrigatoriedade dos termos pactuados, antes encarada como um postulado praticamente absoluto, restou incompatível com as relações de consumo. Em outras palavras, a chamada força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) deu lugar ao intervencionismo estatal. Uma das principais características das normas de ordem pública e de interesse social é justamente a impossibilidade de as partes derrogarem seus comandos.

Pode-se mesmo afirmar que a proteção do consumidor é consequência direta das modificações havidas nos últimos tempos nas relações privadas, representando reação ao avanço rápido do fenômeno de massa e da globalização, que deixou o consumidor desprotegido ante as novas situações decorrentes do desenvolvimento tecnológico. Nesse entender é o pensamento de Ferraz:

O surgimento dos grandes conglomerados urbanos, das metrópoles, a explosão demográfica, a revolução industrial, o desmesurado desenvolvimento das relações econômicas, com a produção e consumo de massa, o nascimento dos cartéis, holdings, multinacionais e atividades monopolísticas, a hipertrofia da intervenção do Estado na esfera social e econômica, o aparecimento dos meios de comunicação de massa e, com eles, o fenômeno da publicidade maciça, entre outras coisas, por terem escapado do controle do homem, muitas vezes voltaram-se contra ele próprio, repercutindo de forma negativa sobre a qualidade de vida e atingindo inevitavelmente os interesses difusos. Todos esses fenômenos que se precipitaram num espaço de tempo relativamente pequeno, trouxeram a lume a própria realidade dos interesses coletivos,

até então existentes de forma latente, despercebidos126.

Foi nesse momento que identificou-se aquilo se convencionou denominar de direitos ou interesses transindividuais (que se subdividem em direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos) que nada mais são do que aqueles direitos que pertencem muito mais a uma coletividade ou a um grupo social específico do que a um de seus membros individualmente. A

126 FERRAZ, Camargo et.al apud ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor. São Paulo:

tutela consumerista ganhou força a partir desse entendimento, visto que o consumidor passou a ter proteção individual, difusa e coletivamente considerada.

Cabe ressaltar, desde já, que a proteção do consumidor em face da veiculação de publicidade subliminar na internet, tema central desta pesquisa, deve ser estudada sob o aspecto individual mas, sobretudo, coletivamente, em razão da gama de indivíduos vítimas de tal conduta antijurídica.

Acerca do tema, é preciso compreender que a enorme dimensão dada ao imperativo cogente de proteção do consumidor, a ponto de impor-se como tema de segurança do Estado, é fruto do extraordinário desenvolvimento do comércio e da consequente ampliação da publicidade, do que igualmente resultou o fenômeno conhecido como a sociedade de consumo de massa. Perante essa nova filosofia de mercado, caracterizada pela produção em série, o fornecedor passou a prezar pela quantidade em detrimento da qualidade, ocasionando ao consumidor problemas como produtos e serviços viciados ou portadores de defeitos, além de prejuízos à sua saúde, segurança e bem-estar.

Importante ressaltar, a seu turno, que o consenso internacional em relação à vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo representou fator importante para o surgimento da tutela em cada país. O reconhecimento de que o consumidor estava desprotegido em termos educacionais, informativos, materiais e legislativos determinou maior atenção para o problema e o aparecimento de legislação protetiva em várias nações.

Cumpre observar que o mercado de consumo deve ser entendido como o espaço ideal e não institucional, onde se desenvolvem as atividades de troca de produtos e serviços avaliáveis economicamente. Trata-se de espaço não institucional em razão de seu caráter não formal e que se caracteriza pela ausência de estrutura pré-determinada127. É nesse espaço que o consumidor encontra-se desamparado.

É função do direito atuar no mercado de consumo regulando-o, fixando objetivos, restringindo ações ilegítimas como a veiculação de publicidade ilícita e responsabilizando o infrator por eventuais danos causados ao consumidor.

Muito mais do que uma política pública, ou do que um conjunto de normas infraconstitucionais reunidas em uma legislação específica, qual seja, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a proteção do consumidor no Brasil constitui uma orientação de origem constitucional128.

127 MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 138.

128 MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São

Afirma-se, em síntese, que as profundas modificações nas relações de consumo, a identificação dos interesses difusos e coletivos, a nova postura em relação à legitimação ativa e o reconhecimento da vulnerabilidade e da hipossuficiência do consumidor conduziram, no conjunto, ao surgimento da tutela respectiva. Nesse contexto, afirma Teixeira:

A sistematização do Direito do Consumidor surgiu como resposta da ciência jurídica ao abismo entre as poderosas redes de fornecedores e os milhões de consumidores, que se viam afastados da efetiva proteção de seus direitos. Percebeu-se, enfim, a insuficiência da concepção liberal individualista pra satisfazer essa nova realidade da

sociedade de consumo129.

Com fundamento no raciocínio do autor e no exposto acima nasceu a necessidade da criação de um sistema normativo de tutela do consumidor com o afã de dar guarida à relação jurídica que faz parte do cotidiano da sociedade contemporânea