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3. ESTUDO DO CASO CONCRETO

3.4 Implicações dos Resultados da Pesquisa

Após análise do caso concreto proposto – UHE São Manoel, com o consequente diagnóstico das 4 (quatro) ações judiciais listadas para exame, é detectada clara dicotomia na forma de atuação do Poder Judiciário quando confrontado com questões regulatórias, ambientais e principiológicas referentes à construção de uma grande usina hidrelétrica.

Inicialmente, registre-se a ausência nas ações de agentes importantes na tomada de decisão, seja na fase de planejamento, seja no processo de licenciamento ambiental: a ANEEL, ANA e FUNAI são colocadas de lado pelo Ministério Público, que não lhes argui em qualquer momento explicações técnicas sobre a implantação da UHE São Manoel; ainda que, sem a concordância e emissão de documentos específicos por estes órgãos, a implantação da usina se veria impossibilitada.

Em segundo lugar, ressalta-se que nenhuma das demandas analisadas apresenta questionamentos acerca de temas técnicos de engenharia: a escolha do local e o tamanho do empreendimento ou de sua barragem não são questionados. Não há demandas sobre a escolha do aproveitamento ótimo daquela determinada Bacia. Sobressai-se apenas discordância tênue e genérica sobre a escolha da fonte hidráulica para geração de energia.

Assim, como visto no Capítulo 1, além da ausência da participação do Ministério Público – autor em todas as ações listadas, na fase de planejamento (PDE, PNE, Inventário, EVTE, AAI) do setor, com vistas ao aumento da capacidade de geração de energia elétrica, também como parte no polo ativo de ações judiciais se mantém inerte, deixando de apresentar qualquer questão neste sentido. Cumpre esclarecer que a mera alegação da existência e possibilidade de eleição de outras fontes de geração de energia, como eólicas ou solar, não é capaz de inaugurar uma discussão séria sobre o tema.

A leitura das peças processuais demonstra que o ponto nodal de inconformidade quanto à construção da UHE São Manoel se limita aos aspectos ambientais e principiológicos.

Todas as partes envolvidas indicam, como não poderia deixar de ser, normas legais capazes de sustentar suas alegações. No entanto, deve ser ressaltada a utilização rasa dos princípios como forma de ratificar o discurso, seja contra ou a favor, da construção de empreendimentos hidrelétricos, uma vez que não se procura adentrar em seus conceitos ou real peso para resolução da demanda.

Em relação aos juízes de 1ª instância, pelo fato de, em tese, estes contarem com menos anos de atuação judicante e estarem estabelecidos próximos à localidade de implantação do

empreendimento hidrelétrico, os argumentos apresentados pelo MPF ou MP Estadual são facilmente absorvidos, levando à concessão da medida liminar em 100% dos casos apresentados.

Interessante ressaltar que esse posicionamento, encontrado nas ações judiciais analisadas ao longo do Capítulo 3, vem ao encontro do resultado obtido pela pesquisa realizada no ano de 2003 acerca do pensamento e da crítica dos magistrados sobre várias de questões que lhes foram apresentadas. Dentre elas, cita-se a Questão 22:

As agências reguladoras de serviços públicos (Anatel, Aneel e outras) têm a atribuição de julgar conflitos entre concessionárias e destas com os consumidores. Propõe-se que nesses casos o Judiciário respeite as decisões tomadas pelo colegiado dessas agências, limitando-se a garantir o respeito às normas processuais, e evitando que o conteúdo da disputa seja julgado outra vez. O(a) senhor(a) concorda com essa proposta? 287

Destacam-se 3 (três|) respostas apresentadas ao entrevistador: Entre os juízes que concordavam inteiramente com a proposição, alcançou-se a porcentagem de 4,5% (33 juízes); aqueles que tendiam a discordar chegaram a 23,2% (172 juízes); e entre os outros que discordavam inteiramente da questão, alcançou-se a marca expressiva de 50,6% (375 juízes).

Note-se, então, que a falta de deferência não é problema recente. No ano de 2003, como visto, mais da metade dos magistrados entendiam que poderiam investigar e decidir sobre o conteúdo de questões técnicas.

Para tanto, como visto no caso prático proposto, a fundamentação das decisões que deferem a liminar ou a antecipação dos efeitos da tutela não se limita à citação da legislação vigente; quando necessário, vai além, apoiando-se em princípios, constitucionais ou infraconstitucionais. Além disso, defende-se uma atuação proativa do magistrado e mesmo o papel contramajoritário do Poder Judiciário, como afirmado em algumas decisões.

Neste sentido, se pondera:

[...] a outra face da moeda (do uso desmesurado dos princípios) é o lado do decisionismo e do oba-oba. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem justiça – ou o que entendem por justiça – passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloqüentes e com a sua

287 “A amostra final incluiu 741 magistrados, cobrindo o Distrito Federal e 11 estados: Rio Grande do Sul, Santa

Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Mato Grosso, Pará, Roraima e Goiás, pertencentes às justiças estadual, federal e do Trabalho, indo de juízes de primeiro grau aos ministros dos tribunais superiores”. PINHEIRO, Armando Castelar. Judiciário, Reforma e Economia: A Visão dos Magistrados. Texto para discussão | 966 | jul 2003. Disponível no sítio eletrônico: http://www.ipea.gov.br. Acesso em: 18/12/2016.

retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, convertem-se em verdadeiras varinhas de condão: com eles, o julgador consegue fazer quase tudo o que quiser.288

Nota-se claramente a ausência de qualquer grau de deferência aos aspectos técnicos dos estudos indicados nas ações judiciais, principalmente o EIA / RIMA ou ECI.

A todo momento são postos em dúvida pelos autores, com o aval do Poder Judiciário de 1ª instância, os métodos utilizados para realização desses estudos e a isenção do julgamento dos resultados que indicam a viabilidade ambiental do empreendimento pelos órgãos públicos ou pela empresa pública.

Curiosamente, não são exigidas, do autor das ações civis públicas, contraprovas técnicas capazes de sustentar a afirmação de que os estudos são incompletos ou não se prestam a comprovar a viabilidade ambiental do empreendimento. Limitam-se as peças iniciais a questionar a validade dos estudos e apontar princípios que, por si sós, seriam capazes de proteger o meio ambiente e as minorias defendidas pelo Ministério Público.

Entre os princípios mais citados, encontra-se o princípio da precaução, que se presta a justificar a necessidade de paralisação do processo de licenciamento do empreendimento em razão de qualquer tipo de dúvida posta pelos autores das ações judiciais. Sob o argumento de que, se constatadas dúvidas sobre os estudos técnicos, seja quanto à sua fundamentação, seja quanto às conclusões, por precaução, em prol do direito ao meio ambiente sadio, toda e qualquer atividade referente ao processo de licenciamento da construção do empreendimento deve ser imediatamente paralisada.

Ainda que de fato se considerasse a precaução como princípio, e não como regra destinada apenas a orientar a tomada de decisão, ressalta-se que há muito se conhecem os impactos causados pela instalação de grandes usinas hidrelétricas no Brasil, o que poderia justificar o afastamento deste princípio como principal argumento para o pedido e deferimento da paralisação do processo de licenciamento ou das obras já iniciadas do empreendimento.

Ressalte-se que, diferentemente do que as decisões monocráticas de 1ª instância levam a crer, a literatura estrangeira não apresenta, para o Princípio da Precaução, um conceito pacificado:

Atividades suscetíveis de apresentar significante risco para natureza devem ser precedidas de exame exaustivo; seus proponentes devem demonstrar que os benefícios esperados superam os potenciais riscos para a natureza, e onde os

288 SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

potenciais efeitos adversos não são inteiramente compreendidos, as atividades não devem prosseguir. (UN, World Charter for Nature, 1982 – o termo Pp não é explicitamente usado);

O princípio da precaução informa que, em respeito ao meio ambiente, devemos errar para o lado da prudência; devemos resolver incertezas em favor do meio ambiente. (Bodansky, 1994);

Quando atividade provoca ameaças ao meio ambiente e à saúde humana, medidas de precaução devem ser tomadas, ainda que a relação de causa e efeito não esteja inteiramente estabelecida de forma científica. Nesse contexto, os proponentes da atividade, ao invés da população, devem enfrentar o fardo do ônus da prova (sobre a segurança da atividade) (Wingspread Conference, 1998);

Para organizações como o Greenpeace, o que vem primeiro são as necessidades do meio ambiente... O modus operandi que gostaríamos de ver é: “Não admita uma substância a não ser que você tenha prova de que ela não causará dano ao meio ambiente [...] (Jeremy Leggett, 1990).

Como exceção à má utilização do Princípio da Precaução, que atualmente se apresenta como um jargão facilmente encontrado em sede do Direito Ambiental, abriu-se a hipótese, para a ação judicial que versa sobre a existência, ou não, de índios isolados próximos à região, de implantação do empreendimento, uma vez que não há, no Brasil, registro de impactos conhecidos em uma população que evita contato até mesmo com outros povos indígenas, o que levaria à situação de ignorância sobre os prováveis impactos da construção da UHE São Manoel.289

Por outro lado, registra-se o posicionamento dos Desembargadores Federais que ocuparam a Presidência do TRF da 1ª Região, entre os anos de 2011 e 2014. Novamente alcançando a marca de 100% do universo examinado, as decisões emanadas da Presidência optaram por respeitar as conclusões dos estudos técnicos apresentados, além de considerar os problemas de ordem econômica e de segurança jurídica, se mantidas as decisões de 1° grau.

Nessas decisões, observa-se não só a deferência pelo resultado alcançado pelos estudos técnicos, até prova em contrário, como também uma defesa incisiva aos limites da competência do Poder Judiciário, principalmente quando em jogo decisões que se encontram no âmbito de competência de órgãos públicos, formalmente concedida pela legislação vigente. Sob suspense, ainda, o posicionamento das Turmas de 2° grau sobre tais questões, uma vez que nenhuma das ações envolvendo a UHE São Manoel foi julgada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região em sede de recurso de apelação.

289 Inicialmente, tal como indicado por David Resnik, importa registrar os três cenários em que decisões são

tomadas, envolvendo os conceitos de certeza / risco / ignorância: sob certeza: identificando-se os resultados de diferentes escolhas; sob risco: onde vislumbram-se os prováveis resultados de uma decisão; sob ignorância: quando impossível identificar a probabilidade de vários resultados. RESNIK, David. Is the precautionary principle unscientific? Stud. Hist. Phil. Biol. & Biomed. Sci. 34 (2003).