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Importância do elemento subjetivo na base da tutela possessória

A posse, permitindo uma generalização apropriativa, desempenhando uma função social autónoma, tende, assim, a ser chamada à ordem do dia

2.2.3 Importância do elemento subjetivo na base da tutela possessória

Das duas teses antes referidas, que procuraram explicar o fenôm eno possessório, aquela que através de seus elem entos prepondera na fundam entação da definição dos lim ites e das possibilidades de tutela possessória do p ro m iten te com prador é a teoria subjetiva de Savigny.

Se, em Ihering, a posse se apresenta m uito m ais voltada para a perspectiva do proprietário-possuidor na obstinação da luta pela defesa do d o m ín io , em Savign y, a posse se revela com o o gozo e a utilização dos bens com significação e validade ju ríd ica fora dos quadros do direito de propriedade.

O poder do possuidor prom itente com prador se exerce sobre a coisa para rev elar um significado “extrad o m in ial”, um estado de fato protegido p o r razões de paz social, sem cogitar de qualquer titularid ad e da propriedade, em que o anim us desem penha o papel de elem ento estrutural. O anim us, com o base da proteção e da tu tela possessória do com prom issário, é circunstância fundam ental no deslinde da definição dos seus lim ites e possibilidades, po r isso será objeto de considerações adiante.

O elem ento subjetivo da teo ria de Savign y acabou p o r fru strar a concepção autônom a de posse em relação à propriedade, especialm ente ao reconhecer a existência da posse derivada, que se apoiaria na posse o rig in ária de outro possuidor, qual seja, na posse do pro p rietário . Essa p articularid ad e da teo ria subjetiva não explica satisfatoriam ente a qualidade de possuidor de quem não tem o a nim us de pro p rietário , com o, po r exem plo, o locatário. O desdobram ento da relação possessória foi, então, o argum ento u tilizad o algum as vezes para ju stificar a negação da sua proteção ao prom itente com prador.52

52 Essa assertiva pode ser comprovada pela análise dos votos do Ministro Moreira ALVES, proferidos em casos relativos à matéria, especialmente no julgamento do Recurso Extraordinário 9L793-MG (v. Anexo p. 142), assim como na sua obra Posse : estudo dogmático (2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1991. v. 2, t. 1, p. 426-427).

Em bora tenha o C ódigo C iv il B rasileiro consagrado prep onderantem ente5' a teoria objetiva, no seu artigo 485,54 ao estabelecer que possuidor é todo aquele que tem , de fato, o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao dom ínio ou propriedade, a base, o fundam ento da tutela possessória55 do com prom issário é, ainda assim, o elem ento subjetivo da teoria de Savigny.

A orientação de que a posse deve ser entendida com o a exteriorização da propriedade é questionável pelas razões anteriorm ente expostas, um a vez que, como m anifestação da propriedade, som ente seria possível se o d ireito de propriedade lhe fosse anterior, pois prim eiram ente o hom em se apossou dos bens para, posteriorm ente, através de um processo lógico de abstração, in stitu ir a noção de propriedade.

A assertiva “a posse é a exteriorização do direito de propriedade” deve ser analisada nos term os de com o a posse é concebida. Nesse sentido, R enan Falcão de AZEVEDO subdivide três possíveis m odos de se apresentar a relação possessória.56 Segundo ele, a p rim eira das concepções possíveis de posse é a que se m anifesta juntam ente com o direito de propriedade, com o no caso do possuidor p ro p rietário . A segunda é aquela em que a posse aparece paralelam ente ao direito de propriedade, com o na posse direta do usufrutuário e o dom ínio ú til do nu p ro p rietário — possuidor in d ireto . A terceira e ú ltim a m odalidade é encenada pela posse que se

53 Tem esse sentido a consideração de Luiz Edson FACHIN, ao referir-se ao Código Civil em vigor:

“Conferiu o Código posição proeminente à posse, cuja inspiração ao projetista foi confessadamente a teoria objetiva de Ihering, situando-a, destarte, antes da propriedade, mas configurando-a como o exercício de alguns dos poderes inerentes ao domínio, fiel à idéia desta (a posse) enquanto visibilidade daquele (o domínio)” (O regime jurídico da propriedade no Brasil contemporâneo e o desenvolvimento econômico-social. Separata de: Revista do Instituto dos Advogados do Paraná, Curitiba, n° 21, p. 2, 1993).

54 “Art. 485. Considera-se possuidor todo aquele, que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade.”

55 Para GONDIM NETO, rigorosamente não há unidade doutrinária acerca de qual teoria (de Ihering ou de Savigny) foi adotada pelo nosso Código Civil, muito embora o próprio autor do projeto, Clóvis Beviláqua, afirme a consagração da doutrina de Ihering (p. 149).

56 AZEVEDO, Renan Falcão de. Posse : efeitos e proteção. 3. ed. Caxias do S u l: EDUCS, 1993. p. 35.

opõe ao dom ín io do proprietário, como ocorre na usucapião, em que o titu la r do dom ínio o perde face ao reconhecim ento da posse continuada de outrem .

Dessas três concepções, som ente pode ser aceita com o exterio rização do d ireito de propriedade aquela em que o possuidor é sim ultaneam ente o p ro p rietário do bem . A posse do proprietário pode ser considerada um sinal exterio r do d ireito de propriedade, porque representa um dos m odos pelos quais se exerce o dom ín io.

N as dem ais hipóteses, não há como sustentar que a proteção possessória se ju stifica com o exteriorização e com plem ento necessário da proteção da propriedade, porque posse e propriedade se encontram em sujeitos de d ireito distintos.

Dessa m aneira, é perfeitam ente adm issível que o in q u ilin o , ao ocupar um im óvel na qualidade de possuidor direto, pode in d u zir outros sujeitos de d ireito a considerarem -no pro p rietário do bem , quando isso não corresponde à realidade. Em verdade, não há exteriorização da propriedade através da posse. O que pode oco rrer é que o in q u ilin o , ou o possuidor, tenha a aparência de p ro p rietário , m esm o que reconheça em outrem , no locador, a titularid ad e do dom ín io.57

Essa circunstância tam bém ocorre nas hipóteses de ocupação, ao acontecer que alguém com a intenção de dono, sem reconhecer a titularid ad e do dom ín io em outrem e sem a sua oposição ou im pedim ento, instala-se em um im óvel com o objetivo de ali perm anecer por um período indeterm inado, fixando m o radia, a tal ponto de se poder configurar a aquisição da propriedade pela usucapião.

57 Conforme Luiz Fabiano CORRÊA, na sua tese de doutoramento Aparência de direito em matéria patrimonial... (São Paulo, 1989. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. p. 2 e ss.), aparência “é a imagem que apresentam as coisas a quem externamente as contempla. As vezes corresponde à realidade; outras, é irreal, ilusória.

Aparência de direito enuncia a aparência de titularidade de um direito subjetivo, em que, na verdade, não é sujeito quem parece ser. A aparência seria nada mais do que a legitimação ao titular aparente. Seria a ostentação de um direito que de fato não se tem, como o do credor e o do falso proprietário. Essa mesma aparência decorre, por vezes, de investidura formal, correspondente à forma de publicidade de um direito, sem que exista, contudo, esse mesmo direito na sua realidade material. Portanto, embora a aparência seja uma distorção da realidade jurídica que leva à falsa idéia de um direito ou de um poder jurídico, a sua causa não pode ser simples quimera, fantasia de quem a invoca para buscar a proteção da ordem jurídica”. Cita o autor o exemplo do registro imobiliário, do qual resulta a presunção de titularidade do direito registrado, que pode não exprimir a verdade, conforme prevê o art. 860 do Código Civil c/c art. 212 da Lei de Registros Públicos. Nesse caso, haverá manifestação externa do direito, destoante do seu real conteúdo, que produz a aparência do direito.

N a perspectiva do prom itente com prador, há um a posse — a qual conform e o caso m erecerá proteção — que não exterioriza a propriedade do p ro m iten te vendedor, porque aquele que está a possuí-la não é titu la r do d om ínio.

Se é verdade que a posse do com prom issário não exterioriza a propriedade, ela se revela, entretanto , com o sua aparência.

Procede, p o r conseguinte, a ponderação de R enan Falcão de A ZEVED O , ao afirm ar que a posse é exteriorização da propriedade, quando com ela coexista o dom ín io; isso não ocorrendo, o que se tem é m era aparência.58 E o caso do p ro m iten te com prador, em que essa aparência é ainda m ais realçada pela qualificação do anim us com que possui.

E nquanto aparência do direito de propriedade, é possível afirm ar que a posse pode p ro p o rcio n ar em relação a terceiros um a distorção da realidade ju ríd ica.

Pode levá-los a ter a falsa idéia de efetiva existência do dom ínio po r parte daquele que possui, hipótese em que é responsável po r essa ilusão um fato real, objetivo e concreto: o fato de possuir, que pode haver ou não intenção de dono.

N ão há como negar que a aparência da titularidade do d ireito de propriedade pode ser um a m anifestação da realidade possessória, circun stância que se apresenta na posse do prom itente com prador, realçada em função do an im u s com que ele possui, p articularidade que pode propo rcion ar em terceiros a ilusão de que já é o p ro p rietário .

2 .3 Ca r a c t e r í s t i c a s d a p o s s e d o p r o m it e n t e

COMPRADOR COMO FATO E DIREITO

C onform e José de O liveira A SC E N SÃ O , o exercício de fato de poderes sobre a coisa pode até não se verificar na posse, eis que pode haver posse desacom panhada de um a situação de fato, o que faz ceder a teoria subjetiva de Sav ign y. P ara u tiliz a r as palavras do referido autor, “a situação ju ríd ica posse,

58 AZEVEDO, Renan Falcão de. p. 35.

quaisquer que sejam as vicissitudes que posteriorm ente atravesse, tem sempre na sua origem um a relação de facto de um a pessoa e de um a coisa. Pode subsistir, nos term os indicados, sem essa situação; mas não se constitui sem ela””. D iante disso, segundo o m esm o autor, o corpus e o anim us não podem ser considerados elem entos da posse, mas pressupostos dela, essenciais num a fase in icial que podem não m anifestar-se conform e a situação.

C om o condição ou m eio de utilização econôm ica da coisa, a posse apresenta relevância na tu tela da posição ju ríd ica do prom itente com prador com o relação de fato e de direito. H á interesse por parte do p ro m iten te com prador em possuir antecipadam ente o im óvel, de modo que se beneficie da u tilização econôm ica p o r ele proporcionada. Esse seu “interesse” confere à posse um com ponente form al que envolve a sua proteção ju ríd ica e, conseqüentem ente, todas as características de um d ireito.

Se não estivesse jurid icam ente tutelada, a posse do pro m iten te com prador não seria m ais do que m era relação de fato, um poder sobre a coisa. A p a rtir do instante em que é tu telada, reveste-se do caráter de juridicidade e, com isso, deve ser reconhecida com o um d ireito.

T al situação ocorre em relação a todos os outros fatos ao apresentarem conseqüências para o d ireito, em que a lei, ao discipliná-los, garante ao interessado determ inada tu tela instrum entalizada po r m eio de um a ação.

N a posse, a continuidade, a perm anência e a m anutenção da relação de poder de fato sobre a coisa são condições necessárias, indispensáveis e perm anentes para o exercício do direito à sua proteção, daí o seu caráter dinâm ico antes referido.

É perfeitam ente possível o fato e o direito se com plem entarem na posse. E esta, um a vez reconhecida pela lei com o um interesse que exige e m erece proteção, não pode ter com o negativa a sua natureza de direito.

59 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito c iv il: reais. 5. ed. Coimbra : Coimbra. 1993. p. 104-105.

Se a causa determ inante da posse é um fato — o exercício de um po der — que não se fundam enta necessariam ente em um direito, mas no m ero reconhecim ento pela ordem juríd ica, em atenção à paz social, da necessidade de protegê-la com o um poder independente do direito de propriedade ou de outros direitos reais, não há como negar-lhe, pelos fundam entos da teo ria subjetiva, a natureza dúplice de fato e de direito, sim ultânea e concom itantem ente.

Se, de acordo com a teoria objetiva de Ihering, a posse representa o m odo pelo qual a propriedade se realiza, porque em geral o possuidor da coisa é sim ultaneam ente seu proprietário e vice-versa, parece in ú til estabelecer um a distinção entre ambas.

Q uando a posse se encontra integrada como um a faculdade no âm bito do poder de dom ínio ou de outro direito real, ela é designada pelo term o ius possidendi, que exprim e um a situação de poder como parte integrante do conteúdo do d ireito de propriedade ou de outros direitos reais.

O ius possessionis, po r sua vez, com o direito fundado no fato da posse, caracteriza-se pela ausência da titularidade da propriedade ou de q u alq u er outro direito real pelo possuidor.

V erifica-se, então, um a diferença entre posse com o parte in tegran te de um d ireito, ius possidendi, e posse com o fato ou relação ju ríd ica d istin ta da relação d o m in ial, ius possessionis.

-Desse m odo, nas relações possessórias, o poder de dom inação dos bens não im p lica necessariam ente a existência de um títu lo ou de d ireito a favor do sujeito. O ordenam ento ju ríd ico protege a situação do poder de fato, que consiste na relação de posse com independência, exista ou não um títu lo a legitim ar o exercício desse poder.

N as relações de propriedade, a situação de poder sobre os bens supõe a existência de um títu lo ou direito que legitim a o exercício do poder. Se o d ireito é de propriedade em sentido estrito, propriedade plena, ele confere ao titu la r todo o conteúdo de poder, que perm ite a natureza da coisa sobre a qual recai. A o co n trário ,

se se trata de um direito em coisa alheia, o titu la r terá o seu poder lim itad o naquilo em que se red uziu o poder pleno do titu la r do dom ínio.

Q uando posse e propriedade se encontram no m esmo sujeito de direito, aquela carece de um significado especial e autônom o. A posse pode ser considerada com o expressão ou conseqüência de um d ireito que a contém ou a legitim a, especialm ente quando o possuidor é titu la r desse direito, seja ele de natureza real ou ob rigacion al, com o o do usufrutuário e o do locatário, respectivam ente.

R esum idam ente expostas as teorias objetiva e subjetiva, e estabelecida a natureza ju ríd ica da posse do prom itente com prador com o fato e d ireito , é indispensável fazer-se um a breve análise dos seus dem ais elem entos característicos e qualificadores. A través desses com ponentes será possível defin ir os lim ites e possibilidades de sua proteção, em face da pretensão de terceiros, que buscam a satisfação de seus créditos na propriedade do prom itente vendedor, com o sacrifício da posse do prom itente com prador.