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A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DAS TRADIÇÕES JURÍDICAS PARA A COMPREENSÃO DOS MODELOS PROCESSUAIS

Uma vez caracterizado o direito como fenômeno cultural e estando assente que, a despeito da diversidade de culturas existentes, o mundo ocidental pode, em linhas gerais, ser dividido juridicamente em duas tradições basilares, cada uma delas com suas características próprias, pode-se concluir que, sendo o processo um ramo do direito, também ele se mostra suscetível a tais influências, o que ensejará, por conseguinte, a identificação de modelos de processo diferentes em países atrelados à família da civil law ou da common law.

Segundo José Carlos Barbosa Moreira, “o confronto entre civil law e common law tem sido feito por diversos prismas. No campo do processo, é critério recorrente o que se tira da ‘divisão do trabalho’ entre juiz e partes (rectius: entre juiz e advogados das partes) na

instrução probatória”82. Tradicionalmente, afirma-se que a common law adotaria um processo adversarial, em que o juiz seria um fiscal de regras, deixando, em especial, a condução da atividade instrutória a cargo das partes, enquanto que a civil law calcar-se-ia em um processo

inquisitivo ou inquisitorial83, que confere ao seu juiz maiores poderes na condução do

processo que o modelo antes referido, especialmente os poderes instrutórios.

Merryman e Pérez-Perdomo destacam, dentre outras características, que o processo civil da common law, em razão de, em suas origens, ter sido estruturado sob o formato de júri (hoje remanescente apenas nos Estados Unidos da América, embora de fora minoritária), guarda, ainda hoje, as características da concentração de atos, da imediatidade no julgamento e da oralidade, em medidas maiores que aquelas existentes no processo civil dos países de civil law, cujos atos são, em relação aos do processo da common law, menos concentrados, com predomínio maior de forma escrita e com menor imediatidade no julgamento (já que o juiz que colheu as provas pode não ser aquele que irá julgar, uma vez que a decisão nem sempre é proferida no curso de uma audiência de instrução e julgamento)84.

Todavia, segundo afirma Michele Taruffo, as diferenças antes referidas acham-se superadas. Argumenta o autor, por exemplo, que os processos da common law contemplam diversos atos escritos, enquanto que não são desconhecidos os procedimentos forjados no seio da civil law e que se acham calcados na oralidade. Quanto à diferenciação entre processo adversarial e inquisitivo, Taruffo acusa a distinção em tela de puramente ideológica, chegando a duvidar de sua validade para o fim a que se destina (diferenciar modelos processuais). De todo modo, sustenta que dita contraposição, ainda que pudesse ter sido válida no passado, não o é mais atualmente, já que há processos de cunho inquisitivo na common law (a exemplo do

82 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O processo civil contemporâneo: um enfoque comparativo. Revista

brasileira de direito comparado, Rio de Janeiro, n. 25, 2004, p. 68.

83 Barbosa Moreira critica o uso da expressão “modelo inquisitório”, sob o fundamento de que não existe um

modelo processual único comum aos países da família romano-germânica (Ibidem, p. 75-76). A despeito da crítica pertinente, trata-se de expressão já arraigada no âmbito do direito comparado, motivo pelo qual será utilizada neste trabalho, destacando-se que, tal como já salientado quando apresentada a distinção entre as tradições de civil law e de common law, a pretensão perseguida não é a de apresentar modelos de processo que correspondam exatamente aos sistemas processuais vigentes nos distintos países, já que nenhum deles adota um modelo puro. Ao revés, o intuito da investigação a ser realizada é o delineamento de características básicas compositivas de cada um desses modelos, passíveis de serem encontradas, em maior ou em menor grau, nos sistemas reais.

84 MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. A tradição da civil law: uma introdução aos

sistemas jurídicos da Europa e da América Latina. Tradução: Cássio Casagrande. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009, p. 155-159. Saliente-se que o Código de Processo Civil brasileiro prevê, no art.132, o princípio da identidade física do juiz, segundo o qual “o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide...”. Todavia, uma vez que essa sentença não é, de regra, no procedimento comum ordinário, proferida em audiência, diversas situações podem impedir que esse princípio se efetive, como as hipóteses previstas no próprio artigo comentado, de convocação, licenciamento, afastamento, promoção ou aposentadoria do juiz.

processo in equity na Inglaterra) e de cunho adversarial na civil law (exemplificando o autor com o processo liberal clássico)85.

José Carlos Barbosa Moreira, por sua vez, apresenta, ainda, alguns aspectos que diferenciam os modelos processuais civis das tradições de civil law e de common law. Nos ordenamentos anglo-saxônicos, ou de common law, há uma primazia reconhecida às partes, não apenas no que pertine à iniciativa do processo e à definição do objeto (o que também se verifica em países da civil law), mas, igualmente, na condução da marcha do feito, em especial no que concerne às atividades instrutórias. Já nos países que integram a família romano-germânica, a primazia na condução do feito é reconhecida ao juiz. Daí se caracterizar o primeiro como um sistema adversarial e o segundo como um sistema inquisitorial.

Ainda Barbosa Moreira registra que a oralidade, na common law, foi resultado de necessidades práticas (julgamento pelo júri, pessoas leigas, a exigir o predomínio da forma oral sobre a escrita), enquanto que, na civil law, a oralidade é resultado antes de especulações acadêmicas do que da praxe. O autor, no entanto, destaca que tais distinções devem ser temperadas e vistas com parcimônia, uma vez que colocá-las de forma radical e sem esses devidos temperamentos – decorrentes de evoluções dos sistemas e de influências recíprocas por eles sofridas – levaria à apresentação de formas mais caricaturais que reais86.

É dizer: as tradições jurídicas da civil law e da common law guardam especificidades também no âmbito do processo, sendo, pois, o estudo de tais famílias relevante para uma adequada compreensão dos modelos processuais delas extraíveis. De se notar, no entanto, que, da mesma forma que se critica, atualmente, a separação rígida entre as duas tradições, também são relativizadas as distinções básicas entre os seus modelos processuais, não se podendo olvidar da existência de doutrinadores, a exemplo de Michele Taruffo, que propugnam a ideia de superação da diferenciação em comento, defendendo a chamada “circulação dos modelos” como decorrência lógica da globalização, fenômeno que potencializa a tendência a uma certa uniformidade cultural87.

85 TARUFFO, Michele. Observações sobre os modelos processuais de civil law e de common law. Tradução:

José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo, abr./jun.2003, p. 143-145.

86 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Notas sobre alguns aspectos do processo (civil e penal) nos países anglo-

saxônicos. In: ______. Temas de direito processual: sétima série. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 157-165.

87 TARUFFO, Michele. Observações sobre os modelos processuais de civil law e de common law. Tradução:

José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo, abr./jun.2003, p. 152-155. O autor em debate sugere a definição de novos modelos processuais, quais sejam: a) os modelos estruturais, que, como o próprio nome indica, definiriam a estrutura de um processo, segundo aspectos basilares como a atuação das garantias fundamentais, a simplificação processual, as funções e responsabilidades do juiz na condução do processo e a definição das fases procedimentais; b) os modelos funcionais, que analisariam o processo sob o viés da

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