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O Liberalismo e o modelo adversarial nos Estados Unidos da América

2 O MODELO PROCESSUAL ADVERSARIAL

2.3 IDEOLOGIA LIBERAL E MODELO ADVERSARIAL

2.3.2 O Liberalismo e o modelo adversarial nos Estados Unidos da América

Além da Revolução Francesa, um outro marco importante para o advento do Estado liberal – e que precede aquele – é a Revolução Americana, que culminou na declaração de independência das colônias inglesas na América e possibilitou, assim, o surgimento dos Estados Unidos da América.

163 DAMAŠKA, Mirjan. The common law/civil law divide: residual truth of a misleading distinction. In:

CHASE, Oscar et al. (coord.). Common law-civil law: the future of categories of the future. Toronto: International Association of Procedural Law, 2009, p. 03-04.

164 Em tradução livre: “E se procedimentos nos quais as partes mantêm o controle sobre aspectos cruciais do

processo são equacionados com o processo adversarial, pode-se dizer também que os dois sistemas [referindo-se aos sistemas continentais, integrantes da tradição da civil law, e aos sistemas pertencentes à common law] são adversariais – questões de combativos cabos-de-guerra - e que as diferenças mais marcantes entres eles surgiram a partir de características relacionadas à própria organização contrastante da autoridade processual” (Ibidem, p. 05).

Os colonos ingleses da América, após haverem travado uma disputa territorial com os colonos franceses daquele mesmo continente, sagraram-se vitoriosos. Todavia, seus planos de povoamento da área conquistada restaram frustrados pela Inglaterra, que, considerando-se vencedora da Guerra dos Sete Anos, decidiu reservar tais terras aos novos súditos canadenses e a futuros imigrantes, proibindo a ocupação das áreas conquistadas pelos colonos ingleses, a despeito de lhes impor o pagamento dos custos com a guerra.

Ao lado desse primeiro dissabor, os colonos ingleses ainda sofreram a restrição de comerciar (retomando-se a cláusula de comércio exclusivo com a metrópole), bem como o aumento considerável da carga tributária, que lhes foi imposto pelo Parlamento inglês, sem consulta às Assembleias locais. A conjugação de todos esses fatores, bem como a garantia, dada aos canadenses, de preservação de suas língua, religião e instituições, ensejaram a deflagração do movimento pela independência das colônias norte-americanas, conquistada no ano de 1783165.

A Constituição norte-americana de 1787 foi promulgada seguindo uma tendência marcantemente liberal, contendo, como reclamava o movimento constitucionalista por ela inaugurado, uma declaração de direitos (os direitos fundamentais de liberdade) e a separação de poderes. Mas, ao contrário do modelo de separação de poderes implantado posteriormente na França, nos Estados Unidos da América a ideia subjacente ao princípio em tela é a de estabelecimento de um sistema que possibilite às diversas funções do poder um controle e uma fiscalização recíprocos, assim como uma atuação tanto quanto possível coordenada, como forma de melhor salvaguardar os direitos fundamentais e garantir a sua proteção. Trata- se dos checks and balances, sistema de freios e contrapesos, por intermédio do qual o poder deve conter o poder166.

De igual modo, a Constituição americana não se coaduna com o modelo constitucional de caráter organizatório e jurídico-processual proclamado pelo positivismo jurídico, no qual as normas disciplinadoras de direitos fundamentais não vinculavam o legislador, sendo-lhes

165 Análise histórica baseada na obra de GODECHOT, Jacques. As revoluções (1770-1799). Tradução:

Erothildes Millan Barros da Rocha. São Paulo: Pioneira, 1976, p. 15-22.

166 “Porque a natureza da lei é política mas também jurídica, porque a sua componente política pode sobrepor-se

à sua componente jurídica e pode postergar os valores jurídico-constitucionais fundamentais, ela convoca ipso

facto no Estado de Direito – em que, pela disposição das coisas o poder limita o poder – um freio e um

contrapeso, ou seja, um poder destinado a garantir na lei esses valores. Ora, o poder mais adequado e idôneo para isso é o poder judicial, cuja função se caracteriza e deve caracterizar-se, justamente, pela sua natureza exclusivamente jurídica, despida de qualquer compromisso ou intenção política conjuntural, visando apenas a salvaguarda e a actualização daqueles valores” (PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e

princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989, p.

reconhecido caráter meramente programático. Nos Estados Unidos da América, cristaliza-se o modelo do “Estado de jurisdição executor de constituição”167, fincado na ideia de supremacia da Carta Magna. Aqui, não há o endeusamento da figura do legislador, nem a subordinação do magistrado ao legislativo, como ocorre no direito francês. Tampouco se há de falar de impossibilidade de controle judicial de constitucionalidade das leis, seguindo a configuração inglesa. Nesse sentido, bem demonstrando a realidade norte-americana, no particular, afirma Nuno Piçarra, referindo-se ao texto de Hamilton, inserido na obra O Federalista:

O que este texto de Hamilton deixa claro, quanto ao que ao princípio da separação dos poderes diz respeito, é que as concepções da constituição, de lei e de poder judicial aqui pressupostas são muito diferentes daquelas que serviram de base ao modelo de Estado de legislação parlamentar. Não só são aqui claramente concebíveis leis «injustas e parciais» e «maus legisladores» eleitos, como à função judicial é reconhecido um carácter claramente constitutivo e criador de Direito. Desde logo, reconhece-se como inerente à função judicial um poder de interpretação – que em França se chegou a pretender proibir aos tribunais – e, explicitamente, um poder de ponderação entre normas de diferente força jurídica. Ora, o juiz está longe, nesta óptica, de poder ser identificado com a viva vox legis ou boca que profere as palavras da lei, sobretudo quando não é evidente ou automática a desconformidade de uma lei com a constituição – o que, aliás, sucede na grande maioria dos casos. De tal forma lhe são precisos mais do que «olhos» para o exercício da sua função, que «são poucas as pessoas que, por suficientemente familiarizadas com a legislação, podem ser nomeadas para as funções de juiz»168.

Mauro Cappelletti, examinando as origens do controle de constitucionalidade norte- americano, preconiza que a tradição inglesa de supremacia do parlamento e de impossibilidade de controle judicial de seus atos irá, paradoxalmente, conduzir ao desenvolvimento de ideia inversa nos Estados Unidos da América. Antes da Revolução de 1688, houve o predomínio, na Inglaterra, com reflexos em suas colônias, da doutrina de Edward Coke, que atribuía aos juízes o papel de defesa da common law contra o absolutismo, fosse ele proveniente do Rei ou do Parlamento. Após aquele episódio revolucionário, com a conclamação da supremacia do parlamento, essa ideia regrediu na Inglaterra, sendo vedado o controle judicial de constitucionalidade das leis169.

167 Ibidem, p. 151.

168 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o

estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989, p. 203-204.

169 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed.

Todavia, as ideias de Edward Coke germinadas nas colônias inglesas na América e, ademais, os abusos cometidos pelo Parlamento inglês ao impor às referidas colônias sérias restrições mercantis e uma elevada carga tributária contribuíram sobremodo para que o constitucionalismo norte-americano fosse estruturado em bases distintas daquelas típicas do direito inglês. E uma dessas diferenciações reside, justamente, na supremacia da Constituição, cabendo ao judiciário velar por tal preeminência, inclusive podendo, para tanto, negar aplicabilidade a normas infraconstitucionais que estejam em dissonância formal ou material com a Carta Magna. Assim, esse sistema norte-americano, intitulado de judicial review, contempla antes uma “supremacia do judiciário”, um “governo dos juízes” do que uma “supremacia do parlamento”, tal como ocorre no sistema inglês170.

O leading case do controle difuso de constitucionalidade das leis é o caso Marbury x Madison, julgado em 1803, em que o Chief Justice John Marshall reconheceu a inaplicabilidade, ao referido caso, de uma norma infraconstitucional que contrariava a Constituição americana, calcando-se na regra segundo a qual “lex superior derrogat legi inferiori”.

Ou seja, o papel destinado ao poder judiciário no âmbito do constitucionalismo norte- americano é, sem dúvida, mais expressivo do que aquele que lhe é reservado pelo direito francês ou, mesmo, pelo inglês. Tendo por base uma Constituição escrita à qual se reconhece o caráter supremo, não se lhe conferindo apenas a qualidade de carta política, o direito norte- americano liberal, estribado em base jurisprudencial, estrutura-se em um meticuloso sistema de freios e contrapesos, o qual tem por escopo o respeito aos direitos fundamentais e às liberdades individuais, com a limitação do poder, inclusive pela submissão das leis – produto típico da atividade legislativa – ao controle judicial de constitucionalidade. Como os demais Estados liberais, também o norte-americano é marcado pelo não-intervencionismo estatal e pela consagração de direitos de liberdade.

Assim, muito embora seja assente que um direito fundado em base predominantemente jurisprudencial calca-se em alta dose de criatividade judicial, o fato é que a doutrina liberal não se coaduna com uma tal concessão de poderes ao órgão judicial, haja vista que a sua premissa fundamental é a de primazia da liberdade, com a consequente limitação do poder estatal. Logo, apesar de o controle de constitucionalidade ser, de fato, uma ferramenta de limitação dos poderes legislativo e executivo, o reconhecimento de amplos poderes criativos

170 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed.

ao órgão jurisdicional seria uma contradição no seio daquela ideologia. A solução foi o reconhecimento de que o direito preexiste à decisão judicial (esta, pois, não criaria o direito), que se limita a revelá-lo. Prevalece a teoria declarativa do precedente judicial, como veículo harmonizador do papel exercido pela magistratura norte-americana com o liberalismo.

Segundo tal teoria, inclusive, quando há mudança no precedente (a exemplo do que ocorre quando se utiliza a técnica de overruling, de superação do precedente anterior), tal não significa, em absoluto, que tenha havido criação judicial do direito, mas, sim, que o anterior precedente consistia em equívoco da corte na revelação do direito preexistente.

Hoje, porém, prevalece nos Estados Unidos da América a teoria constitutiva, que reconhece a criação judicial do direito (judge make law)171.

De todo modo, deve-se destacar que o juiz norte-americano, quando não chamado a resolver demandas que extrapolam os limites do modelo adversarial (a exemplo do que ocorre com as class actions) e a despeito das reformas legislativas que lhe conferem certos poderes instrutórios, ainda goza de uma mentalidade voltada à passividade e à neutralidade, sendo notórios os poderes de discovery das partes (poderes investigativos e de busca de provas na fase pre-trial), destacando-se a primazia dessas (e de seus advogados) em detrimento do juiz, de quem se espera uma postura passiva, como forma, inclusive, de resguardo de sua imparcialidade.

Diante do exposto, pode-se concluir que o sistema norte-americano, no que concerne à solução de conflitos individuais, pauta-se no modelo adversarial. Não se há de esperar, no entanto, que as características desse sistema concreto – ou de qualquer outro examinado – sejam integralmente coincidentes com o modelo estudado, haja vista que o enquadramento de um determinado sistema processual a um modelo abstratamente construído é feito por aproximação, por prevalência de características, e não por identidade entre o concreto e o abstrato. De mais a mais, a demonstração de que também em países de civil law podem ser detectadas, no decurso histórico, manifestações do modelo processual adversarial deixa assente que é equivocado identificar referido modelo como típico dos países de common law e exclusivamente destes, como se fora um aspecto distintivo entre essa tradição e a romano- germânica.

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