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SOLIDARIEDADE SOCIAL E MODELO PROCESSUAL COOPERATIVO

5 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO MODELO PROCESSUAL COOPERATIVO NO DIREITO BRASILEIRO

5.3 SOLIDARIEDADE SOCIAL E MODELO PROCESSUAL COOPERATIVO

A construção de uma sociedade solidária é posta como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil no art. 3º, I, da CF/88. A solidariedade configura-se como um valor que deve, assim, reger as relações sociais. Impende, no entanto, salientar que o termo “solidariedade” não deve ser compreendido, nesse contexto, em seu sentido vulgar, ligado a tradições cristãs de ajuda ao próximo, a sentimentos de fraternidade434.

De fato, um texto normativo constitucional, por mais efetivo que pretenda ser, jamais seria capaz de impor a alguém que desenvolvesse um sentimento de amor ao próximo ou de solidariedade. A norma que se há de extrair do texto constitucional não pode, pois, dirigir-se à criação de estados psíquicos ou emotivos neste ou naquele indivíduo ou grupo social. Mas pode, sim, compelir este ou aquele indivíduo ou grupo a agir como faria se, de fato, tais sentimentos existissem435.

O alcance do estado de coisas ambicionado pelo princípio da solidariedade pressupõe, assim, o estabelecimento de deveres jurídicos imponíveis aos indivíduos, limitando, em certa medida, seu espaço de liberdade em prol de que seja atingido um objetivo comum. A solidariedade passa a ser um padrão de comportamento, uma forma de agir exigida pelo ordenamento jurídico; pouco importa que esse atuar esteja ou não pautado em sentimentos a ele conformes. A solidariedade desvincula-se, portanto, de sua origem religiosa e laiciza-se, normatiza-se, passa a constituir-se numa obrigação jurídica. Entender a solidariedade do ponto de vista jurídico implica, pois, desvinculá-la de seu significado originário, do qual será apenas pálida expressão, para lhe conferir uma nova e objetiva roupagem. Nas palavras de Calmon de Passos,

a solidariedade jamais será compatível com a coerção, donde a impossibilidade de sua convivência com o jurídico. Por isso mesmo falar-se

434 Sérgio Massaru Takoi enfatiza que a solidariedade é noção que deriva do ideal de fraternidade propugnado

pela Revolução Francesa, o qual perdeu a sua conotação sentimental para adquirir viés mais racional. Por isso que a teoria da solidariedade não exprime “apenas um sentimento de benevolência ou favor, mas verdadeiro dever jurídico em prol do coletivo” (TAKOI, Sérgio Massaru. Breves comentários ao princípio constitucional da solidariedade. Revista de direito constitucional e internaciona,. São Paulo, ano 17, n. 66, jan./ mar. 2009, p. 296- 300).

435 “É óbvio que o Direito não tem como penetrar no psiquismo das pessoas para impor-lhes as virtudes da

generosidade e do altruísmo. Seria terrível, aliás, se o Direito pudesse ditar sentimentos. Entretanto, se ele não pode obrigar ninguém a pensar ou a sentir de determinada forma, ele pode, sim, condicionar o comportamento externo dos agentes, vinculando-os a obrigações jurídicas” (SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e

em direito de solidariedade é tentar associar incompatíveis. A solidariedade somente se revestirá de eficácia social se for instituído um novo paradigma, centrado no dever. Não à semelhança daquele que informou o pensamento da pré-modernidade, caracterizado como renúncia em face de um Todo Poderoso transcendente, metafísico, dominador, mas de um dever alicerçado na projeção para o outro, humano tanto quanto humano eu sou, da dignidade que me atribuo, por força da valia que experimento em mim mesmo, a partir de minha condição humana. Dito melhor, mediante a projeção no outro de tudo quanto tenho como valioso em mim para configurar a minha dignidade.436

A solidariedade objetiva, sem desprezar a individualidade própria de cada ser humano, transformar a sociedade em um “espaço de diálogo, cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais que se reconheçam como tais”, em detrimento da ideia de que o núcleo social seria um espaço para “concorrência entre indivíduos isolados”437. Como afirmado por Calmon de Passos, “a condição humana impõe a cada qual de nós, que nos consideramos integrantes da espécie humana, ser, e de modo inelutável, um dentre os outros, um contra os outros, um com os outros e um para os outros”438. A solidariedade realça a condição do ser humano nas duas últimas vertentes, mitigando, especialmente, a segunda delas (uns contra os outros).

Por isso, o princípio da solidariedade frequentemente entrará em rota de colisão com a autonomia privada e com o direito de liberdade, a exigir uma ponderação de interesses, pautada no postulado da proporcionalidade, a fim de que se defina qual o valor que deve preponderar à luz de um dado caso concreto. Em algumas situações, essa definição é feita já a priori pelo legislador, o que não exime o aplicador da norma de, diante de uma demanda específica, realizar o controle incidental de constitucionalidade daquela escolha legislativa, podendo afastá-la se, naquela hipótese, a sua incidência resultar em solução desproporcional e desarrazoada.

A exigência de atuações leais dos particulares, em conformidade com a boa-fé objetiva, pode ser extraída do princípio da solidariedade, como arquétipo de conduta capaz de dar concreção ao ideal de uma sociedade solidária. No campo processual, a solidariedade confere fundamento à adoção do modelo processual cooperativo, haja vista que o princípio da cooperação realiza, no processo, o objetivo delineado em sentido mais amplo pela solidariedade: a transformação da sociedade em um espaço dialético e colaborativo, em lugar

436 PASSOS, J. J. Calmon de. Direito à solidariedade. In: LEÃO, Adroaldo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo

(coord.). Direitos constitucionalizados. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 236.

437 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.

296.

de um campo de lutas egoísticas.

Estabelecidas as premissas de que a solidariedade social confere a cada indivíduo um papel na sociedade e de que, portanto, todos devem contribuir para a realização de interesses comuns439, pode-se concluir que o modelo processual cooperativo concretiza tais ideias ao propiciar a conversão do processo em uma comunidade de trabalho, na qual todos envidarão esforços na busca da solução justa do litígio, em tempo razoável.

O modo como se estrutura o formalismo processual no modelo processual cooperativo, imerso em um contraditório não apenas formal, mas, sobretudo, substancial, de que é sujeito inclusive o juiz, implica a definição de um “trabalho em conjunto ordenado em função da construção da tutela jurisdicional aplicável a um caso proposto”440. Nesse arcabouço, “a atuação dos sujeitos do processo é regulada em função da consecução de objetivos comuns consagrados pelo ordenamento jurídico, o que, por sua vez, exige, o respeito à noção de solidariedade social”441-442.

Em outras palavras, não dispõem as partes, no modelo processual cooperativo, de ampla liberdade na condução material e formal do processo, como ocorre no modelo adversarial, sofrendo elas restrição em sua liberdade em prol da perseguição de fins comuns. Por outro lado, também não podem ter a sua liberdade de ação comprometida pela desmedida atuação estatal, sendo intolerável o exercício de uma função do poder democrático sem que se permita a ampla participação dos indivíduos no processo formativo da decisão a ser ao final proferida. Desse modo, o modelo processual adversarial não se coaduna com o estado de coisas propugnado pelo princípio da solidariedade social. O modelo inquisitivo, a seu turno, embora conceba o processo como uma instituição social, restringe excessivamente a liberdade individual, sem conferir às partes o espaço de influência e de participação necessário ao exercício de sua cidadania no processo. Além disso, em nenhum deles o juiz se insere como sujeito processual concretizador dessa solidariedade. É o modelo processual cooperativo aquele que mais bem equilibra a liberdade individual e a solidariedade social; é ele, ainda,

439 REICHELT, Luis Alberto. A repercussão geral do recurso extraordinário e a construção do processo civil na

era da solidariedade social. Revista de processo, São Paulo, ano 35, n. 189, nov./2010, p. 93-94.

440 Ibidem, p. 95. 441 Ibidem, p. 95.

442 Daniel Mitidiero também enquadra o dever de solidariedade previsto constitucionalmente como um

fundamento do modelo processual cooperativo ao afirmar que “o processo cooperativo parte da idéia de que o Estado tem como dever primordial propiciar condições para a organização de uma sociedade livre, justa e solidária, fundado que está na dignidade da pessoa humana. Individuo, sociedade civil e Estado acabam por ocupar, assim, posições coordenadas” (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: RT, 2009, p.102).

forjado para ser a expressão de uma atuação solidária, colaborativa, no processo.

A previsão de deveres de cooperação para as partes e para o juiz reforça a noção de que o processo não serve a fins egoísticos, antes sendo um palco em que os sujeitos processuais devem, sem perder as suas individualidades e sem desprezar os interesses particulares das partes, atuar para alcançar o objetivo comum, a que todos almejam (ou deveriam almejar): a justa solução do litígio. Assim, por exemplo, os deveres de auxílio e de prevenção impostos ao magistrado são deveres de solidariedade; o dever de atuação conforme a boa-fé e de modo leal, afeto a todos os que participam do processo, é dever de solidariedade; o dever de veracidade da parte é dever de solidariedade.

Cuidando especificamente do tema da repercussão geral do recurso extraordinário (art. 102, §3º, da CF/88), Luis Alberto Reichelt examina como o modelo cooperativo é capaz de, no particular, conferir concreção ao princípio da solidariedade. Afirma o autor que o princípio da colaboração confere nova roupagem à garantia de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF/88), para adaptar os procedimentos a fim de que estes não apenas sejam capazes de resolver adequadamente os conflitos individuais, mas, também, estejam aptos a conferir resposta célere e justa a questões sociais típicas de uma sociedade massificada. A participação, nesse caso, há de ser ampla, não apenas das partes envolvidas em um determinado litígio específico, mas, também, de outros interessados que poderão ser afetados pela decisão a ser proferida naquele caso particular, tal como ocorre no exame da repercussão geral por ele tratado, em que dita análise é feita a partir da eleição de casos paradigmas. A ampliação do debate satisfaz os objetivos defendidos pelo princípio de solidariedade e se coaduna, ao mesmo tempo, com o modelo processual cooperativo443.

Conclui-se, assim, que há um elo de profunda identificação entre o modelo processual cooperativo e o princípio da solidariedade, de modo que é possível extrair do art. 3º, I, da CF/88 um dos fundamentos constitucionais desse modelo processual civil no direito brasileiro.

443 REICHELT, Luis Alberto. A repercussão geral do recurso extraordinário e a construção do processo civil na

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