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O paradoxo da common law (a origem continental do direito inglês) e a sobrevivência dessa tradição à expansão da família romano-germânica

Uma questão que desperta o interesse dos estudiosos da common law consiste em identificar o porquê de essa tradição, nascida de modo solitário e convivendo tão proximamente com outra que se expandia pela Europa continental – a civil law, haver-se não apenas quedado intacta, mas se expandido por outros países do mundo.

Em verdade, a tradição da common law é paradoxal em seu nascimento, uma vez que o que se convencionou chamar de common law, em seus primórdios, é consequência da atuação de um direito continental feudal desenvolvido em terreno inglês por reis e juristas continentais, especialmente franceses, a exemplo de Henrique II. Trata-se de um paradoxo porque esse sistema, criado por influência de franceses, baseando-se em uma estruturação feudal particularmente desenhada por monarcas continentais, não vingou em seu país de origem53.

Mais do que a particularidade de se transformar em um modelo de direito diferenciado, porém, o mais interessante a se vislumbrar na common law é a sua permanência através dos séculos, não sendo a Inglaterra sugada pela tradição romano-germânica, que arrebatou, de forma avassaladora, a Europa continental. Qual a razão, pois, para essa persistência em um modelo diferente? Por que o direito romano não penetrou também a senda do direito inglês, desestruturando a common law?

53 CAENEGEM, R. C. Van. The birth of the english common law. 2. ed. New York/USA: Cambridge University

Press, 1988, p. 109-110. Nas palavras do autor: “This seems to be feudalism at its Best and it is one of the paradoxes of history that kings and lords of French extraction built in England a better feudal system than at home: this feudal law, the stone which the continental builders disallowed, when they turned to Roman law, became the cornerstone of the Common Law” (p. 109). E prossegue: “I […] will only submit the paradox that the Common Law, which became a real hallmark of English life, was originally not English at all. It was a species of continental feudal law developed into an English system by kings and justices of continental extraction.” (p. 110)

Concluir que o direito inglês é tão fundamentalmente diferente do direito continental apenas porque o povo daquele país também é diferente dos povos que habitam os países continentais é, para R. C. Van. Caenegem, uma solução por demais simplista e óbvia, não devendo afastar a perquirição, em profundidade, do cerne da questão posta. Salienta o autor que uma resposta como a acima formulada talvez se revelasse satisfatória a estudiosos alemães do Século XI, sequiosos de identificar, em toda e em cada uma das manifestações culturais, o “espírito do povo” (Volksgeist). Não o é, porém, nos tempos atuais, em que tal explanação facilmente seria vista como mero joguete de palavras (o que é, afinal, o espírito do povo?)54.

Tampouco residiria essa justificativa no clima inglês ou, mesmo, no fator econômico, já que, nas origens do common law, a economia inglesa não diferia substancialmente daquela existente na Europa continental. Na verdade, a Inglaterra experimentou avanços importantes mais cedo do que qualquer outro país da Europa: no Século XII, era o único país que tinha, por exemplo, uma corte central à disposição de qualquer homem livre. Foi em território inglês onde primeiro se estruturou, ademais, um sistema legal capaz de banir os métodos arcaicos de prova então vigentes55. Essa a razão de a common law ter sobrevivido ao avanço da tradição romano-germânica: a precedência no tempo. Houvesse a civil law se desenvolvido antes do direito inglês e provavelmente a common law não teria existido. O fato é que, quando se deu a expansão da tradição romano-germânica, não havia mais espaço para que esta afetasse o direito inglês56.

O fato é que, a despeito dos percalços vivenciados pela common law no decorrer dos séculos, bem como dos variados períodos de crise pelos quais o direito inglês passou, sua continuidade é marcante e única na história dos sistemas legais europeus57. A tradição em comento superou períodos como a Guerra das Rosas, no Século XV, que desestruturou o poder central e nocauteou a justiça com golpes diversos (a exemplo da atemorização de juízes por homens ricos, do controle dos xerifes, dentre outras atrocidades), a recepção do direito

54 CAENEGEM, R. C. Van. The birth of the english common law. 2. ed. New York/USA: Cambridge University

Press, 1988, p. 86-87.

55 Ibidem, p. 87-90.

56 “In other words, when at the turn of the twelfth century Romano-canonical learning began to conquer the

practice of Europe´s ecclesiastical courts and, in the course of the thirteenth century, to influence its lay courts and writers on customary law, it was too late for the Common Law to be affected in any substantial way”.

Ibidem, p. 92.

57 Como destaca Arthur R. Hogue: “The history of English law and politics is much more than a slow broadening

down from precedent to precedent. England has known periods of terrible violence and disorder. More than once the common-law system has been in peril of its life. Its continuity through almost eight centuries is unique in the history of European legal systems” (HOGUE, Arthur R. Origins of the common law. Indianápolis/USA: Indiana University Press, 1966, p. 241-242).

romano apoiada por Henrique VIII, no Século XVI, a tentativa de imposição, no Século XVII, da teoria da origem divina do poder real (que estaria, pois, acima da common law), frustrada pela Revolução de 1688, o risco de se operar uma drástica mudança no sistema inglês em decorrência do advento da supremacia do parlamento, sobretudo no Século XVIII e, mesmo, as reformas implementadas no Século XIX58.

Para Arthur R. Hogue, os fatores que atuaram em prol da manutenção da common law foram variados, destacando-se, em especial, dois: a precoce maturidade da common law, que criou um modelo perpetuado pela comunidade profissional que o aprendeu e o praticou e o fato de a common law ser um direito da terra, da propriedade59.

Acercando-se mais da ideia de common law não propriamente como aquele direito desenvolvido na Inglaterra, mas, sim, como uma tradição jurídica, composta de diversos países, a coesão dessa família de direito é potencializada, na atualidade, não apenas pela identidade linguística (geral – o inglês – e jurídica), mas, também e sobretudo, pela natureza jurisprudencial dos sistemas que a integram, o que possibilita que o juiz de um dado país, valendo-se de sua discricionariedade na busca da solução de um caso novo ou duvidoso, possa levar em consideração, como precedente com força persuasiva, decisões proferidas sobre o mesmo assunto por cortes superiores de outros países integrantes da common law60-61.

Em suma, por distintas razões, a common law, nascida em berço inglês, não apenas se desenvolveu antes da expansão da civil law na Europa continental como, também, difundiu-se e conservou peculiaridades no decorrer de mais de oito séculos de história. As características subjacentes à common law devem, assim, ser pontuadas, fazendo-se a devida distinção entre dita família e a romano-germânica.

58 HOGUE, Arthur R. Origins of the common law. Indianápolis/USA: Indiana University Press, 1966, p. 242-

244.

59 Ibidem, p. 245-247.

60 Este é o ensinamento ministrado por Luigi Moccia: “Ma la maggiore coesione tra i sistema giuridici di

common law, oltre ad essere favorita – naturalmente – dalla comunanza di lingua (e di linguaggio giuridico), si

spiega pure sul piano della natura giurisprudenziale di questi sistemi, con specifico riguardo alla ‘discrezionalità’ concessa al giudice di common law nella ricerca del diritto (regula juris) concretamente applicabile in presenza di casi nuovi o dubbi; là dove – cioè – il giudice può tener conto, come ‘autorità persuasiva’, di precedenti decisioni in pari materia pronunciate dalle corti (di grado superiore) di altri Stati facenti parte del

Commonwealth e, in genere, dell´orbe di common law” (MOCCIA, Luigi. Glossario per uno studio della “common law”. Milano/Italia: Edizioni Unicopli, 1983, p.39).

61 Deve-se enfatizar, no entanto, que essa realidade de intercâmbio de precedentes, que permite, nos dias atuais,

uma maior coesão dos sistemas de common law, nem sempre existiu. A doutrina dos precedentes é elemento recente daquela tradição, datando do século XIX. No final do mesmo século, surge a ideia de vinculação dos precedentes (stare decisis). Logo, não se pode confudir a tradição da common law com a teoria dos precedentes ou com sua eficácia vinculante, tendo em vista que esses não são da natureza daquela, sendo um traço da moderna concepção da common law (MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de

civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista brasileira de direito processual, Belo Horizonte, n. 68, out./dez.2009, p. 17-18).

1.3 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS E DIFERENÇAS QUE MARCAM AS

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