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2 O MODELO PROCESSUAL ADVERSARIAL

2.2 AS CARACTERÍSTICAS DO MODELO PROCESSUAL ADVERSARIAL

2.2.2 Posição do juiz no modelo adversarial

Em contraposição ao papel ativo reservado às partes, do juiz, no modelo adversarial, espera-se, tão-somente, que adote uma postura de neutralidade e passividade diante do litígio que lhe é posto a julgamento. Acredita-se que a postura passiva do magistrado é a garantia de sua imparcialidade, que restaria comprometida acaso o julgador, por exemplo, assumisse uma conduta ativa na instrução do feito, promovendo iniciativas em busca da descoberta da verdade dos fatos, que deve ser apresentada pelas partes.

Essa premissa que norteia o modelo adversarial – a da passividade e neutralidade do juiz – objetiva reduzir o magistrado à condição de um verdadeiro “convidado de pedra”133, sendo função sua apenas a de garantir uma disputa justa, esta, que, por sua vez, estaria configurada desde que respeitadas as regras do jogo adversarial, calcadas, sobretudo, na garantia de igualdade formal entre os litigantes. Ao final do procedimento, a vitória pertenceria àquele que melhor combatesse.

A passividade judicial implica, assim, que o juiz se torne dependente das partes para colher os dados de que necessita para tomada de sua decisão, especialmente no que tange às questões fáticas. A instauração do processo, a delimitação do seu objeto, a seleção e produção das provas tendentes à demonstração dos fatos subjacentes à demanda e, mesmo, em grande medida, a definição do material jurídico que embasará a decisão ficam a critério das partes, sendo o juiz um receptáculo de tais informações, das quais se valerá para produzir o seu

132 DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2010, v. 1, p. 75-

76.

133 TARUFFO, Michele. Il processo civile “adversary” nell’esperienza americana. Cedam: Padova, 1979, p.

veredicto. Essa visão tradicional, tributária da ideologia liberal, funda-se na noção de processo como “coisa das partes”, que resulta na restrição dos poderes do juiz no processo134.

Uma vez que o modelo adversarial busca garantir a igualdade formal entre as partes e que o juiz, devendo abster-se de interferir na livre disputa dialética processual, não pode promover medidas tendentes à redução da desigualdade real, que, na maioria das vezes, se constata existir entre os litigantes, não faltam críticas de que essa postura passiva do magistrado, longe de garantir a sua imparcialidade, implica evidente parcialidade, tendente a garantir, como regra, a vitória do mais forte sobre o mais fraco.

Em suma, assim como o liberalismo econômico, ao propugnar pela igualdade formal entre as pessoas, contribuiu para acirrar diferenças sociais e perpetuar o status quo de dominação do economicamente mais forte (burguesia) sobre o mais fraco (proletariado), o modelo adversarial (que corporifica um verdadeiro liberalismo processual135) estrutura-se de modo a garantir um “livre” jogo de interesses, no qual o lado mais fraco tende a sucumbir ante a parte econômica e tecnicamente mais forte, mais bem aparelhada para fazer valer seus direitos em juízo.

Segundo Michele Taruffo, o juiz do modelo adversarial não é neutro, porque haverá de escolher, como regra, uma dentre as duas posições contrapostas, tampouco se podendo defender a sua independência, já que depende, em grande medida, da atitude das partes, especialmente daquela mais forte, que estará normalmente assessorada pelo melhor advogado136. Rui Portanova, por sua vez, nega a possibilidade de garantir a imparcialidade judicial quando há a preocupação de resguardar apenas a igualdade formal no processo: “com desigualdade entre as partes não há imparcialidade judicial, mas conivência na opressão pela via judicial do mais forte sobre o mais fraco”, circunstância que, para o autor em comento, torna o contraditório uma farsa137. José Carlos Barbosa Moreira acentua, igualmente, que a concessão de poderes instrutórios ao juiz não se revela incompatível com a imparcialidade do

134 LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 72.

135 “Si tratta, in sostanza, della traduzione sul piano processuale dell’ideologia liberale dello stato: il giudice,

come lo stato liberale classico, deve anzitutto garantire la propria non-interferenza nel gioco del libero mercato dei rapporti individuali; deve quindi garantire che ogni individuo abbia le stesse possibilità formali di parteciparvi, ed intervenire soltanto per impedire che il ‘gioco’ venga turbato da scorrettezze nella aplicazione delle sue regole. Queste, d’altronde, sono direttamente inspirate al modello ideologico dell’individualismo competitivo che ha la sua matrice nelle dottrine del liberismo sociale ed economico; la funzione del giudice è allora quella di assicurare l’aderenza del processo a tale modello ideologico, il quale implica appunto che il giudice si limiti a controllare la fairness dello scontro, senza intervenire ad influenzare l’andamento e tanto meno a determinarne l’esito. Non a caso, si è parlato al riguardo di un Battle Model di processo, fondato sulla concezione per cui questo è un longo di scontro, fra stato e individuo se si trata del processo penale, tra individui se si trata del processo civile”. (TARUFFO, Michele. Il processo civile “adversary” nell’esperienza americana. Cedam: Padova, 1979, p. 179).

136 Ibidem, p. 169.

julgador, tendo em vista que, adotando ou não essa iniciativa, uma parte sempre acabará sendo, necessariamente, beneficiada (com a atuação ou com a omissão do magistrado)138.

Conclui-se, pois, que a correlação empreendida pelo modelo adversarial entre passividade do juiz e imparcialidade não passa de um dogma por ele firmado, sem qualquer comprovação empírica. Todavia, esse não é o único ponto em que se verifica a erosão do citado modelo quando examinado sob a ótica do órgão julgador. O processo adversarial não se coaduna, por exemplo, com a postura que se exige do julgador na tutela de direitos transindividuais, em que o magistrado decidirá o conflito sopesando outros interesses e exigências distintos daqueles apresentados pelas partes (fato comum quando uma demanda individual é transformada, pelo juiz, em class action nos Estados Unidos da América, que adota o modelo sob análise).

O exame do papel ocupado pelo juiz no modelo adversarial não pode prescindir da perquirição acerca da sua atuação na busca da verdade, bem como da definição do escopo primordial perseguido pelo processo civil em tal modelo. Assim, o processo adversarial tem como principal objetivo a solução do conflito submetido à apreciação do magistrado. Vista a jurisdição como um consectário lógico da institucionalização do poder – ou seja, do seu desgarramento do núcleo social (quando menos no que tange ao seu exercício) e sua concentração na figura estatal –, tem-se que a atividade jurisdicional objetivou, em um primeiro momento, preencher a lacuna decorrente da proibição, imposta pelo Estado ao indivíduo, de que este venha a “fazer justiça com as próprias mãos”. Fincado o modelo adversarial nesta premissa, o processo civil por ele representado desenvolve-se à maneira de um duelo, um jogo, uma competição, uma guerra civilizada.

Por outro lado, é, provavelmente, na contraposição entre os conceitos de justiça substantiva e de justiça processual que mais bem se consegue observar a função do juiz no que diz respeito à busca da verdade no modelo adversarial. A justiça substantiva é obtida quando a decisão proferida pelo juiz ao cabo do procedimento decorra de uma atuação honesta, desprovida de erro grosseiro, que tome em conta as questões de relevo para o deslinde da demanda e que se harmonize com o ordenamento jurídico a ser aplicado. A seu turno, a justiça processual leva em consideração não o conteúdo do que foi decidido, mas,

138 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os poderes do juiz na direção e na instrução do processo. In: ______.

sim, que esse julgamento se estribe em um procedimento regular, em que as regras processuais sejam respeitadas e cumpridas pelos sujeitos do processo139.

Uma decisão verdadeiramente justa deve reunir essas duas vertentes de justiça: a substantiva e a processual. Não por outra razão, aliás, uma decisão substantivamente justa pode ser anulada se acometida de grave vício processual (ex.: um determinado magistrado que profere uma sentença de procedência prima facie, lastreado em provas que evidenciam este direito, desrespeitando a garantia do contraditório), assim como um julgado proferido com o respeito de todas as regras procedimentais pode, ao final, ser substantivamente injusto (o que ocorre, por exemplo, quando a premissa fática na qual ele se assenta é equivocada).

Considerando que o juiz, no modelo adversarial, limitar-se-á, em sua tarefa de apuração dos fatos subjacentes à pretensão formulada, à análise do material probatório que lhe for apresentado pelas partes, por certo que o processo civil calcado em tal modelo tenderá a privilegiar a justiça processual (respeito ao procedimento estabelecido para o desenvolvimento do debate judicial entre os litigantes) em detrimento da justiça substantiva. Isso porque não se pode olvidar a circunstância de que, garantindo o modelo adversarial apenas a igualdade formal entre as partes, é natural que as desigualdades reais havidas entre elas ensejem discrepâncias importantes nas forças probatórias de cada uma delas, sobretudo em decorrência dos custos que advêm dessa atividade instrutória. Estando vedada ao juiz a adoção de medidas probatórias de ofício, cabe-lhe, por conseguinte, cingir a sua missão de busca da verdade aos elementos que lhe sejam postos à disposição, o que, inegavelmente, pode gerar – como, não raro, gera – a formação de juízos equivocados acerca da matéria de fato que lastreia o pedido a ser examinado.

De relação às questões de direito, por certo que o modelo adversarial não obsta, teoricamente, a que o juiz aplique ao caso concreto o regramento jurídico que entender adequado e pertinente à demanda, não estando, no particular, adstrito ao que lhe foi trazido pelas partes.

Na prática, porém, a adoção de um procedimento predominantemente oral (com concentração de atos no trial, o que inclui o proferimento da decisão final) subtrai do magistrado a possibilidade de empreender uma pesquisa adequada quanto ao material jurídico de que se valerá em seu julgamento. Soma-se a tal circunstância o fato de que, em sua concepção clássica, o modelo adversarial preconizava que o juiz deveria, como garantia de sua imparcialidade, acorrer ao julgamento sem ter tido prévio conhecimento do que iria julgar.

139 JOLOWICZ, J. A. Justiça substantiva e processual no processo civil: uma avaliação do processo civil.

Servir-se do material jurídico já apresentado pelas partes aparece-lhe, pois, como solução conveniente.

Do quanto afirmado se conclui que o modelo adversarial serve mais ao propósito de resolver conflitos e menos ao de produzir decisões corretas, consideradas estas como as que se pautam em toda a informação que se pode obter acerca de um caso, mesmo que não se trate da

verdade absoluta140, até porque o alcance dessa verdade real e absoluta acerca de um

acontecimento é objetivo inatingível, mera utopia141.

De todo modo, o modelo adversarial, adotado primordialmente em países da tradição da common law (dos quais são utilizados como paradigmas os sistemas norte-americano e inglês), revelou-se custoso, demorado e complexo, tendo os críticos atribuído esse quadro desfavorável justamente à característica lapidar do processo adversarial: o controle das partes

sobre o procedimento142. Diversas reformas processuais foram e têm sido, assim,

implementadas, na tentativa de conferir ao juiz papel mais ativo na condução do processo.Nos Estados Unidos da América, pontuam-se mudanças como o California Evidence Code, de 1965, que confere ao magistrado poderes instrutórios tais como o de interrogar testemunhas e de convocá-las de ofício para depor, ou, ainda, as Federal Rules of Evidence, de 1975, que, além dos poderes supramencionados, ainda autoriza o magistrado a nomear de ofício peritos para atuação no feito. Sucede que, na prática, a cultura da passividade judicial impede, em boa medida, a implementação dessas novas posturas judiciais, às quais se confere, não raro, interpretação restritiva143.

É na Inglaterra, todavia, que se observam as modificações mais importantes no papel assumido pelo juiz no processo civil, a ponto de se pôr em questão se o modelo adversarial ainda seria o adotado pelo direito inglês após a incorporação dessas mudanças. Costuma-se apresentar como episódio paradigmático naquele ordenamento, caracterizador da típica passividade judicial e, pois, do afastamento que haveria de ser mantido pelo magistrado das

140 JOLOWICZ, J.A. Modelos adversarial e inquisitorial de processo civil. Tradução: José Carlos Barbosa

Moreira. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 372, mar./abr. 2004, p. 141.

141 Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart sustentam a inatingibilidade da verdade real, absoluta,

objetiva, salientando que toda investigação acerca de um fato é influenciada por aspectos subjetivos de seus espectadores e do juiz, este no momento de valorar a prova produzida. Assim, toda análise de um fato será sempre uma interpretação sua (a exemplo do que ocorre com a alegação), não correspondendo ao fato examinado em sua plenitude (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova. São Paulo: RT, 2009, p. 33- 34).

142 JOLOWICZ, J. A. Justiça substantiva e processual no processo civil: uma avaliação do processo civil.

Tradução: José Carlos Barbosa Moreira. Revista de processo, São Paulo, ano 31, n. 135, maio/2006, p. 174.

143 TARUFFO, Michele. Il processo civile “adversary” nell’esperienza americana. Cedam: Padova, 1979, p. 24-

iniciativas instrutórias, a cargo exclusivamente das partes, o julgamento do caso Air Canada v. Secretary of State for Trade (1983).

Nesse processo, grandes companhias aéreas discutiam o aumento de tarifas que lhes eram cobradas no aeroporto de Heathrow. Para a prova de suas alegações, requereram a exibição de documentos que o governo se negou a apresentar, por reputá-los secretos. Uma vez que desconheciam o seu teor, as empresas autoras não tinham como demonstrar ao juiz da causa que dita exibição lhes seria necessária. Entendendo que tais documentos poderiam ser úteis à elucidação do caso, o magistrado de primeiro grau decidiu, ainda assim, determinar tal exibição, sendo sua decisão reformada pela Court of Appeal e pela House of Lords, que tomaram por equivocada esta iniciativa judicial, na medida em que tal providência seria contrária ao processo adversarial, por malferir a imparcialidade do julgador, a quem caberia fazer justiça à luz das provas disponíveis e do direito, privilegiando-se, pois, a justiça processual em detrimento da substantiva144.

Paulatinamente, o direito inglês foi sofrendo alterações relevantes, que vão desde o declínio do júri civil, passando por um aumento de importância da prova escrita (que normalmente não era admitida para a prova dos fatos), até a concessão de poderes instrutórios ao juiz. Nessa seara, tem-se a possibilidade de o julgador limitar o número de testemunhas- perito (já que as questões técnicas eram elucidadas desse modo, uma vez que o juiz não poderia indicar um perito para resolvê-las). A partir de 1974, o depoimento de técnicos como testemunhas passou a depender de acordo entre as partes ou de anuência do juiz, neste último caso desde que a parte dê conhecimento prévio à outra do teor do que será dito pelo perito em audiência. Leis de 1986 e de 1988 conferiram ao juiz o poder de determinar que uma parte informe à outra, ainda, a substância do depoimento da testemunha que levará ao trial. Em 1989, os arrazoados esquemáticos tornaram-se obrigatórios, como regra, no julgamento de recursos (as partes expõem suas razões e os juízes podem ter acesso ao teor da decisão recorrida antes do trial)145. Essas reformas ruíram com a visão de que o juiz imparcial deve desconhecer previamente o conteúdo da demanda objeto do trial. O juiz desinformado cede espaço ao juiz conhecedor da causa.

Mas, se tais reformas já empreenderam uma significativa mudança no sistema processual civil inglês, por certo que as de maior impacto decorreram da entrada em vigor, em 1999, das Rules of Civil Procedure, ou seja, do Código de Processo Civil inglês. Referido

144 JOLOWICZ, J. A. Justiça substantiva e processual no processo civil: uma avaliação do processo civil.

Tradução: José Carlos Barbosa Moreira. Revista de processo, São Paulo, ano 31, n. 135, maio/2006, p. 172-173.

diploma normativo, se bem que formalmente muito diferente das estruturas codificadas dos países que integram a tradição da civil law, confere ao magistrado maiores poderes de instrução probatória (muito embora ainda não lhe concedam, expressamente, poderes de determinação da realização de provas de ofício) e de condução do feito, inclusive na fase pre- trial, a exemplo da possibilidade de definir que questões devem ser objeto do trial, da faculdade de indicar como as provas devem ser produzidas em juízo ou do poder de zelar pela rápida e eficiente solução do litígio, fixando cronogramas ou outros meios para controlar o curso do processo146.

Em suma, a posição ocupada pelo juiz no modelo adversarial clássico em grande medida já não corresponde àquela que se lhe reservam os sistemas processuais tradicionalmente encartados como seguidores daquele modelo. De um lado, a necessidade de tutela de direitos que extrapolam a esfera puramente individual e, de outro, os clamores pela redução dos custos e da demora dos processos são fatores que têm ensejado um evidente incremento da atuação judicial nos procedimentos cíveis, pondo em dúvida a própria sobrevivência deste modelo na realidade circundante.

No particular, pertinente se revela a observação feita por José Carlos Barbosa Moreira, quando identifica, sobretudo na Inglaterra e com menor intensidade nos Estados Unidos da América, um “um deslocamento da ênfase posta de hábito no papel dos litigantes, ou de seus advogados, para o do órgão judicial”, enquanto que o caminho inverso vem sendo traçado por países da Europa Continental. Para o aludido autor, este pode ser “um sintoma de certa propensão à convergência das duas famílias tradicionais no universo processual do ocidente”147.

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