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Em sua formação acadêmica, a maioria dos estudiosos do direito no Brasil certamente será instruída no sentido de que tal país integra a tradição da civil law. Quando tal afirmação não se revele explícita em livros de doutrina88, chegar-se-á a essa conclusão examinando-se as características basilares do sistema jurídico brasileiro em comparação com aquelas que norteiam a família jurídica em comento. A influência do direito romano, a lei vista, classicamente, como fonte primordial do direito, em que estão pautados os ideais de certeza e previsibilidade, a existência de codificações (hoje mitigadas pelo crescimento dos microssistemas jurídicos e das leis extravagantes, movimento assente em diversos países da tradição de civil law), o predomínio do raciocínio teórico-dedutivo, dentre outras, são marcas que evidenciam uma estreita relação do Brasil com a tradição romano-germânica.

É cediço, aliás, que uma das principais causas de expansão das tradições jurídicas foi a colonização. De fato, existe uma tendência natural de as colônias seguirem a família jurídica adotada por suas metrópoles, das quais recebem as influências culturais de um modo geral, aí não escapando o direito, também fenômeno da cultura. Com o Brasil não se passou de forma diferente.

Não há, pois, como negar que o direito português exerceu decisiva influência na formação do direito brasileiro, mesmo após a sua independência (ainda o influenciando, inclusive, nos tempos hodiernos). José Fábio Rodrigues Maciel e Renan Aguiar testificam que o sistema jurídico português (país que se vincula à tradição da civil law) foi imposto ao povo nativo, desprezando-se os antigos costumes indígenas89.

A inserção do Brasil na família da civil law, porém, é tema que merece reflexão. É que o direito brasileiro, embora, em suas origens, inegavelmente encartado na família romano- germânica, apresenta hoje significativa influência também da tradição anglo-saxônica, o que

instrumentalidade, tomando por base aspectos como a efetividade da tutela jurisdicional, a celeridade e a adequação procedimental às finalidades perquiridas; c) os modelos supranacionais, que extravasam os limites dos ordenamentos nacionais, podendo ser estruturais ou funcionais (Ibidem, p. 155-157).

88 “É a este sistema [referindo-se ao romano-germânico] que pertence o direito brasileiro, bem como se filiam

todos os direitos que tomaram por base o Direito Romano” (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 77). Também Guido Soares sustenta pertencer o Brasil à tradição da civil

law (SOARES, Guido Fernando Silva. Common law: introdução ao direitos dos EUA. 2. ed. São Paulo: RT,

2000, p. 31).

89 AGUIAR, Renan; MACIEL, José Fábio Rodrigues. História do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008,

se pode vislumbrar, por exemplo, pela adoção, no ordenamento jurídico pátrio, do chamado controle difuso de constitucionalidade, desenvolvido nos Estados Unidos da América, tendo como marco a decisão proferida pelo Chief-Justice Marshall no caso Marbury x Madison, em 1803. Trata-se, por conseguinte, de instituto surgido e desenvolvido no seio da common law e transplantado ao direito brasileiro, desde a Constituição Republicana de 1891.

Também a preocupação com a tutela de direitos supra-individuais, a noção de devido processo legal e a ideia de supremacia da Constituição tal como talhada pelo direito norte- americano são notáveis influências da common law no direito brasileiro. Recentemente, vem ganhando importância, ainda, o sistema de precedentes (súmulas vinculantes, julgamento de causas repetitivas etc.), a demonstrar que, de fato, os sistemas vêm se aproximando e sofrendo recíprocas e importantes influências90.

De mais a mais, deve-se levar em consideração a advertência feita por Daniel Francisco Mitidiero, tratando especificamente do processo civil brasileiro – mas em lição que se pode estender a outros ramos do direito –, no sentido de que, malgrado a inequívoca influência lusitana no direito pátrio, este também é dotado de identidade e características próprias, que não podem ser olvidadas no estudo das instituições do país91.

Quer se afirme que o sistema brasileiro pertence à tradição da civil law com profunda mitigação das características específicas daquela família, quer se diga que ele não se enquadra em qualquer das tradições estudadas, sendo um ordenamento jurídico sui generis92, é fato que não se pode perder de vista a dimensão dessas peculiaridades que se inserem no contexto do sistema jurídico pátrio, sob pena de impossibilitar a compreensão do direito brasileiro, âmbito no qual serão perquiridos os fundamentos constitucionais do modelo processual cooperativo, escopo deste trabalho.

Assim, para o que interessa ao presente estudo, impende deixar assente que o sistema jurídico brasileiro convive, também do ponto de vista processual, com um verdadeiro paradoxo metodológico: a necessidade de compatibilizar uma tradição constitucional extremamente influenciada pelo direito norte-americano (common law) e uma tradição

90 DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2010, v. 1, p. 38-40. 91 MITIDIERO, Daniel Francisco. Processo e cultura: praxismo, processualismo e formalismo em direito

processual civil. Revista de direito processual civil, Curitiba, n. 33, jul./set.2004, p. 498.

92 Para Fredie Didier Junior, o pensamento jurídico brasileiro compatibiliza-se com institutos provenientes de

distintas tradições (a exemplo do princípio do devido processo legal, oriundo da common law, e do princípio da boa-fé objetiva, de raiz romano-germânica). Defende o autor, por conseguinte, que o Brasil possui um modelo próprio de sistema jurídico, irredutível a qualquer das duas tradições examinadas. Trata-se de uma tradição jurídica peculiar (DIDIER JUNIOR, op. cit., p. 39-40).

infraconstitucional sustentada em influências oriundas da Europa continental (civil law), a exemplo do que ocorre com o Código de Processo Civil de 1973, tal como originariamente talhado93. É dentro desse contexto e à luz dessa especificidade que o tema objeto deste trabalho será tratado.

93 ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 17. O autor afirma que a tradição brasileira é híbrida, misturando-se aspectos das tradições romano-germânica e de common law.

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