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2.8 Imunidades em Espécie

2.8.5 Imunidade Musical

A Emenda Constitucional nº 75 introduziu, no ordenamento jurídico brasileiro, em 16 de outubro de 2013, o inciso VI do art. 150 da Constituição Federal, que até então possuía quatro alíneas, sendo aquela o mecanismo legislativo adequado para modificar o texto constitucional, conforme se extrai do artigo 60 e seus parágrafos, in verbis:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

§ 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

§ 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes;

V - os direitos e garantias individuais.

§ 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa

As modificações na Magna Carta devem obedecer ao procedimento previsto no citado artigo, sob pena de padecerem por vício de inconstitucionalidade material ou formal, que, por conseguinte, estará subordinado ao controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário.

O procedimento de elaboração da emenda constitucional inclui a fase introdutória (proposta da emenda na forma dos incisos I a III do art. 60); e fase constitutiva, sendo esta subdivida em: deliberação parlamentar (proposta discutida nas duas Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada desde que haja três quintos dos votos dos membros de cada uma das casas) e fase complementar (promulgação da emenda será efetivada pelas Mesas do Senado e da Câmara, em conjunto, com o respectivo número de ordem). Como não há participação do Presidente da República na fase constitutiva, não há deliberação executiva no procedimento.

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Utilizando desse instrumento legislativo, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição de nº 98/2007, popularmente conhecida como PEC da Música, com o objetivo de acrescentar a alínea “e” ao inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal, cujo texto final aprovado segue, in verbis:

Art.150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

[...]

VI - instituir impostos sobre: [...]

e) fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser.

Com as alterações, a imunidade tributária passa a alcançar também fonogramas e videogramas musicais produzidos em nosso país, não sendo possível instituir tributos sobre os objetos de proteção constitucional, salvo, conforme é salientado na parte final da alínea, na fase de reprodução das mídias.

Um dos objetivos da EC n° 75 foi garantir a redução dos preços das mídias musicais com o intuito de aquecer o mercado e reduzir a pirataria. Não obstante o dispositivo constitucional contenha a expressão suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, alguns doutrinadores ainda ensejam discussão sobre o alcance da regra imunizatória às músicas comercializadas, em formato digital, pela rede de computadores, o que nos demonstra esta ser uma questão plenamente viável e de acordo com o preceito contido na Lei Maior.

O debate assemelha-se ao posto em relação à imunidade dos livros, jornais e periódicos digitais. Carrazza entende que a expressão livros prevista no texto constitucional não deve ser interpretada restritivamente, mas de forma a imunizar todo o veículo que seja meio de transmissão do pensamento e do conhecimento, independente do arquétipo tecnológico a ser utilizado, demonstrando-se ser essa a intenção do constituinte originário84.

O ordenamento jurídico deve sempre acompanhar os avanços tecnológicos da sociedade, utilizando-se para tanto de uma hermenêutica evolutiva das normas constitucionais e legais, como bem acentua Hugo de Brito Machado, ao tratar dos livros digitais:

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CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 25. ed.. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 262.

60 A melhor interpretação das normas da Constituição é aquela capaz de lhes garantir a máxima efetividade. Toda imunidade tem por fim a realização de um princípio que o constituinte considerou importante para a Nação. A imunidade dos livros, jornais e periódicos tem por fim assegurar a liberdade de expressão do pensamento e disseminação da cultura. Como é inegável que os meios magnéticos, produtos da moderna tecnologia, são hoje de fundamental importância para a realização desse mesmo objetivo, a resposta afirmativa se impõe. O entendimento contrário, por mais respeitáveis que sejam, e são, os seus defensores, leva a norma imunizante a uma forma esclerosada precocemente, inteiramente incompatível com a doutrina do moderno constitucionalismo, especialmente no que concerne à interpretação especificamente constitucional.

É certo que o Constituinte de 1988 teve oportunidade de adotar redação expressamente mais abrangente para a norma imunizante, e não o fez. Isto, porém, não quer dizer que o intérprete da Constituição não possa adotar, para a mesma norma, a interpretação mais adequada, tendo em vista a realidade de hoje. Realidade que já não é aquela vivida pelo Constituinte, pois nos últimos anos a evolução da tecnologia, no setor da informática, tem sido simplesmente impressionante85.

Embora possa parecer que a temática está ultrapassada, alguns juristas demonstram-se atrelados a acepções obsoletas sobre a matéria. Na decisão do Supremo Tribunal Federal no RE nº 749448, o Ministro Relator Luiz Fux entendeu por sobrestar o julgamento do recurso excepcional até ulterior decisão no RE nº 330817, ao qual foi reconhecida a repercussão geral da matéria.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. LIVROS E PERIÓDICOS. KINDLE – LEITOR DE LIVRO ELETRÔNICO. CONCEITO DE IMUNIDADE. EXTENSÃO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PELO PLENÁRIO VIRTUAL NO RE Nº 330817. DEVOLUÇÃO DO PROCESSO AO TRIBUNAL DE ORIGEM (ART. 328, PARÁGRAFO ÚNICO, DO RISTF). Decisão: Trata-se de recurso extraordinário da União, com fundamento no artigo 102, III, a, da Constituição Federal, interposto contra acordão proferido pela 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região mediante o qual foi desprovido o recurso de apelação, ante os seguintes fundamentos: “TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. IMUNIDADE DE IMPOSTOS PARA LIVROS. ART. 150, VI, 'D' DA CARTA MAGNA. EXTENSÃO AO 'KINDLE'. 1. Se a finalidade precípua da imunidade de impostos conferida aos livros (art. 150, VI, 'd' da Carta Magna) é incentivar a divulgação do conhecimento, não é menos verdade que se imaginava a sua divulgação pela forma escrita, pois, se a lei não emprega palavras inúteis, esta é a conclusão a que se chega com a leitura da parte final do dispositivo transcrito. Isto se deve ao fato de que o Constituinte de 88 legislou a partir do conceito tradicional de livro, a de objeto escrito, impresso. 2. Desde então novas tecnologias surgiram, a informática popularizou-se, tornando-se poderosa ferramenta para a divulgação de idéias e de cultura. CD-ROMs, livros virtuais etc, eram desconhecidos ou incomuns há 15 anos, mas agora, são de uso frequente. Se a sociedade e a técnica evoluem, ocasionando novas demandas, é função do operador do direito interpretar as normas a fim de adequá-las à nova realidade social, emprestando feição conforme as novas exigências que se apresentam. Destarte, o leitor digital 'Kindle', ainda que não incluído no conceito tradicional de livro, se presta ao mesmo objetivo, pelo que entendo estar abrangido na imunidade do art. 150, IV, 'd', da Lei Maior. 3. Dessa forma privilegia-se o fim objetivado (divulgação do conhecimento), não o meio utilizado (livro impresso em papel).” Nas razões recursais, a União sustenta, em

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61 síntese, tratar-se de situação diversa, porquanto o Kindle não seria considerado livro propriamente e sim equipamento eletrônico, não coberto pela imunidade prevista pelo Constituinte. Esta controvérsia está sob análise desta Corte.

O Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário nº 330.817, Relator Ministro Dias Toffoli, reconheceu a repercussão geral da controvérsia, nos seguintes termos:

EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. PRETENDIDA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA A RECAIR SOBRE LIVRO ELETRÔNICO. NECESSIDADE DE CORRETA INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL QUE CUIDA DO TEMA (ART. 150, INCISO IV, ALÍNEA D). MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A REPERCUTIR NA ESFERA DE INTERESSE DE TODA A SOCIEDADE. TEMA COM REPERCUSSÃO GERAL. Este paradigma aguarda julgamento de mérito pelo Plenário. (RE 749448, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 12/06/2013, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 14/06/2013 PUBLIC 17/06/2013).

Apesar de o legislador constituinte tenha sido silente no que se refere aos livros em formato digital, a maior parte da doutrina assentou o entendimento no sentido de garantir imunização ampla, sendo uma das finalidades da norma constitucional a preservação da transmissão do conhecimento, independente de sua forma, garantindo-se a máxima efetividade do dispositivo constitucional, matéria esta que ainda será analisada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 330817.

Interpretação diversa não pode ser aplicada à música digital. Verifica-se da leitura da nova alínea “e” que o legislador se preocupou com tal problemática, e a fim de evitar exegese contrária ou de se falar em silêncio legislativo, dispôs que a imunidade sobre os fonogramas e videogramas é estendida aos suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, em outras palavras, a imunidade não incide apenas sobre CD ou DVD físicos disponíveis na fase de revenda, mas também sobre todo o acervo digital, o que apenas ratifica o posicionamento declinado e a necessidade de adotar o mesmo entendimento quanto aos livros digitais.

Diverso não poderia ser a interpretação da nova alínea, pois pensar de forma diversa será o mesmo que atestar que o legislador não acompanhou a evolução social, sendo a norma constitucional defasada para o tempo em que foi posta em vigência, uma vez que o mercado musical já apresenta atualmente as referidas tendências tecnológicas.

Além da impossibilidade de tributação pelo Fisco, quanto às músicas em formato digital, importa levantar alguns outros aspectos para debates acadêmicos sobre a nova

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temática posta no ordenamento jurídico pátrio, como aplicação da imunidade aos produtos musicais envolvendo nacionais e estrangeiros.

Contudo, deve-se sempre atentar para a finalidade da norma imunizante em garantir a valorização da música nacional, devendo a interpretação ser realizada de forma ampla e visando a máxima efetividade do dispositivo constitucional, caso contrário, não poderá atingir o fim para o qual foi instituído.