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Inquisição e Companhia de Jesus: entraves ao pensamento ilustrado

3. JESUÍTAS: DE EDUCADORES DA CORTE À EXPULSÃO

3.3 Inquisição e Companhia de Jesus: entraves ao pensamento ilustrado

Iniciamos esta seção fazendo considerações sobre a situação e desenvolvimento da escola e da pedagogia ao longo da modernidade europeia. Vimos que os métodos de ensino, nas nações mais adiantadas da Europa, caminhavam para a direção da laicização, estatização e incentivo ao empirismo científico, ou seja, concepções que no fundo eram de grande interesse da classe econômica que se desenvolvia e de forma sólida vinha ganhando espaço no cenário econômico e político: a burguesia. Já num segundo momento dessa seção o nosso objetivo foi mostrar, diante de todas as mudanças culturais, políticas e científicas que se processavam na Europa, a posição de Portugal no mundo moderno. Vimos que Portugal, claramente na mão contrária do que se entendia por desenvolvimento, optou permanecer como um país que fosse o sustentáculo da Igreja Católica e das “verdades eternas” do Cristo. Evidentemente que toda atitude tem uma consequência. Os portugueses, que escolheram o caminho da vivência na fé, pagaram por essa decisão e o resultado prático disso foi o atraso mental da sociedade lusitana e uma consequente subserviência aos países que enveredaram pelo desenvolvimento, sobretudo a Inglaterra.

Para concluir esse raciocínio sobre Portugal e o mundo moderno, mostraremos daqui por diantecomo os portugueses construíram esse isolamento que ora estudamos. Entender as razões que levaram Portugal a um atraso abismal será fundamental para os fins deste trabalho, pois quando estudarmos as reformas pombalinas, expulsão dos jesuítas e “Vazio Educacional” na colônia brasileira esse conhecimento histórico será exigido de nós.

Logo na primeira metade do século XVI, Portugal construiu suas duas bases que por todo o período moderno seriam seus sustentáculos, seus fortes, contra as tendências “diabólicas” que o mundo moderno poderia oferecer. Lutar contra os fortes ventos das “heresias” luteranas, contra as teorias “antibíblicas” dos pensadores e cientistas e, por fim, não deixar de modo algum que o velho ranço do judaísmo adentrasse em solo português. A batalha que Portugal travou contra o mundo europeu moderno, nos moldes que essa nação desejara, não traria outra consequência senão um isolamento total daquilo que os portugueses viam como “ameaça à verdadeira fé”. Essas bases às quais estamos nos referindo são o Tribunal da Inquisição e a Companhia de Jesus, ambas requeridas pelo rei Dom João III (1502 – 1557).

Comecemos pela Inquisição, que cronologicamente se estabeleceu em Portugal antes da Companhia de Jesus.

De acordo com Saraiva (1989), Dom João III, em 1531, pediu ao papa Clemente VII a licença para que se instalasse em Portugal o Tribunal da Inquisição. Não se pode perder de vista que por essa época a Reforma Religiosa estava fervilhando na Europa. Com efeito, solicitar a Inquisição era uma forma de fazer com que os reformadores não tivessem espaço em Portugal. Em 1534 já havia um inquisidor em Portugal, mas a Inquisição só foi autorizada por meio de bula pontifícia em 1536. Gil Vicente (1465 – 1536), um dos grandes nomes da literatura portuguesa, foi alvo da Inquisição e no fim de sua vida teve que viver em silêncio a fim de preservar a vida. Esse episódio era apenas o introito de tudo o que estava por vir nos séculos seguintes.

A Inquisição encontrou em solo português terreno fértil para se instalar e criar profundas raízes. Vejamos o que Saraiva (1989, p. 211, tradução nossa) tem a nos dizer sobre isso:

Denunciar un delito contra la fe se consideraba como um deber religioso, y esa em una época de profunda religiosidad: el deber religioso sobrepasaba a qualquier otro. El criente estaba, en conciencia, obligado a denunciar cualquier hecho o apariencia de hecho que, en su opinión, revelase judaísmo o falta de respeto a la fe. [...] Todo el país era religioso, y por eso durante dos siglos todo el país servió de policía de sí mismo. Fu la operación policial de mayor duración y envergadura que registra la historia de Portugal, y durante toda ella la gente vivió entre el deber de denunciar y el terror de ser denunciado. Esto explica el número extraordinariamente alto de processos que se conservan: más de veinte mil, sabiéndose que muchos otros se perdieron14.

Com uma Inquisição dessa envergadura, em que todos, pelo dever da fé, atuavam como “inquisidores”, podemos imaginar que na sociedade portuguesa moderna não havia espaço para que as transgressões acontecessem. Qualquer censura contra um livro ou um pensamento científico emanada dos Tribunais logo era acatada pelo povo e todo o país vivia num clima de constante vigilância contra tudo o que representasse “ameaça” à fé católica. Nesse sentido, Falcon (1993, p. 152) diz o seguinte sobre a sociedade lusa:

A passagem da transcendência à imanência simplesmente não ocorreu, tais os obstáculos políticos e ideológicos existentes. Para comprovar essa afirmação, nada melhor talvez do que a própria fixação da escola

14 Relatar uma ofensa contra a fé era considerado um dever religioso, e isso em um tempo de profunda religiosidade: o dever religioso superava qualquer outro. O crente estava, em consciência, obrigado a denunciar qualquer fato ou aparência de fato que, em sua opinião, revelava judaísmo ou falta de respeito pela fé. [...] Todo o país era religioso e, por isso, durante dois séculos, o país inteiro serviu como polícia de si mesmo. Foi a mais longa e extensa operação policial registrada na história de Portugal, e durante todo esse tempo as pessoas viviam entre o dever de denunciar e o terror de ser denunciado. Isso explica o número extraordinariamente alto de processos que são preservados: mais de vinte mil, sabendo que muitos outros foram perdidos

conimbricense na perspectiva exclusiva da teologia, o completo repúdio a tudo que se associasse ao avanço do espírito matemático e natural, isto é, a uma verdade distinta, não subordinada à revelada. [...] A secularização foi adiada e, por toda a parte, fez-se sentir, como nunca, a posição da Igreja como aparelho ideológico dominante, permeando e controlando os demais de acordo com os princípios e interesses aristocráticos, assumindo um papel decisivo nos negócios do Estado. O racionalismo moderno foi rejeitado, quer em suas manifestações empiristas, indutivas: são proscritos Descartes, Spinoza, da mesma forma que Locke e Newton.

Uma sociedade que se fechou para a modernidade tal como Portugal o fez era de se esperar que todo o ensino praticado nesse território estivesse sob o domínio da Igreja. A Inquisição tinha o papel de avaliar os livros que podiam ou não ser lidos, restava depois aos colégios ensinar para a mocidade lusa aquilo que de antemão já tinha sido analisado. De acordo com Laerte Ramos de Carvalho, “sucessivas vantagens foram concedidas aos colégios mantidos pela Companhia de Jesus de tal forma que, nas reais condições que se encontrava a cultura portuguesa, as escolas jesuítas exerceram até o governo pombalino, um autêntico monopólio da instrução” (CARVALHO, 1952, p. 20).

A instrução que era oferecida nos recintos da Companhia de Jesus, evidentemente, tinha que seguir os ditames do Tribunal da Inquisição. Esse alinhamento entre Inquisição e o ensino da Companhia de Jesus se comprova pelo teor do edital de 7 de maio de 1746, expedido pelo reitor do Colégio das Artes de Coimbra:

Nos exames, ou Lições, Conclusões públicas, ou particulares não se ensine defensão ou opiniõesnovas ou pouco recebidas, ou inúteis para o estudo das Ciências maiores como são as de Renato Descartes, Gassendo, Newton, e outros, e nomeadamente qualquer Ciência, que defenda os átomos de Epicuro, ou negue as realidades dos acidentes Eucarísticos, ou quaisquer outras conclusões opostas ao sistema de Aristóteles, o qual nestas escolas se deve seguir, como repetidas vezes se recomenda nos estatutos deste Colégio das Artes (CARVALHO, 1950 apud CARVALHO, 1952, p. 24-25).

Esse trecho do edital é para os nossos propósitos tão rico em informações que não podemos mensurá-lo. Ele foi publicado numa época em que o Iluminismo estava fervilhando na Europa. Nos países mais adiantados, a noção de que a Bíblia não era uma fonte de autoridade científica já estava consolidada. O conhecimento científico tinha tomado um caminho diferente do da fé, não se misturavam mais. A razão, por meio do método científico, deveria perscrutar os enigmas desse mundo, a fim de o ser humano dominar a natureza. À fé cabia apenas a crença em coisas que estavam no campo da pura metafísica. Contudo, o que se verifica na mentalidade acadêmica oficial de Portugal é que, para os portugueses, a Ciência, para ser a verdadeira Ciência, deveria a priori estar em sintonia com as “verdades reveladas”

da Bíblia. Qualquer conhecimento científico que colocasse em dúvida as noções teológicas contidas no “Livro Sagrado” era uma afronta ao “verdadeiro” conhecimento científico dos portugueses. Em outras palavras, na modernidade, Portugal se pautou cientificamente naquilo que primeiramente a Bíblia ensinava. Todo sistema educacional deveria estar alinhado com esse tipo de raciocínio. Não nos surpreende, quando olhamos o passado, perceber que Portugal sequer figura entre países que revelaram grandes cérebros para a ciência moderna. Portugal ainda vivia de forma prolongada na Idade Média, ou melhor, na “Idade das Trevas”.

Laerte Ramos de Carvalho está coberto de razão, acerca da finalidade do ensino em Portugal, quando afirma: “Os estudos menores, como de resto os cursos superiores, destinavam-se até a promulgação das reformas pombalinas, a favorecer muito mais aos interesses do estado eclesiástico do que os do estado civil” (CARVALHO, 1952, p. 91).

Como podemos ver de forma clara e distinta, a sociedade portuguesa na época moderna foi solidamente arquitetada para que a Igreja Católica tivesse em seu seio um lugar de proeminência. De acordo com Falcon (1993), 1/3 das terras de Portugal eram propriedades da Igreja e o clero era, nesse Antigo Regime Português, o primeiro braço, seguido pela nobreza e na camada de baixo o terceiro estado, que vivia para cultivar as terras clericais e pagar para a Igreja os tributos do seu trabalho; em troca, o clero lhe fornecia a comida essencial para o seu sustento. Não é de assustar que numa sociedade em que o clero, com tanto prestígio assim, “crescia sem cessar até terceiro quartel do século XVIII” (CARVALHO, 1952, p. 181). Segundo Falcon (1993), em 1730 Portugal contava com 477 conventos, o que somava um contingente religioso de 250.000 religiosos, para uma população de aproximadamente 7.500.000 habitantes. Pode parecer inverossímil, mas essa é a sociedade lusa em pleno século XVIII.

Enfim, por todas essas razões que elencamos é que em Portugal o pensamento filosófico-científico ilustrado não encontrou terra boa. O terreno luso era extremamente hostil a tudo o que não se identificasse ou se enquadrasse com as verdades da fé cristã. Esse Portugal, enredomado na fé católica, só se construiu com a presença da Inquisição, enquanto meio de censura e amedrontamento, e com a atuação da Companhia de Jesus, que usou de seus estabelecimentos de ensino para ser a defensora daquilo que era tão sagrado à Inquisição e à Coroa: a fé.

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