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A visão pragmática de Manoel da Nóbrega a fim de manter a atividade educacional

2. CRIAÇÃO E DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL DA COMPANHIA DE

2.11 A visão pragmática de Manoel da Nóbrega a fim de manter a atividade educacional

Companhia de Jesus no Brasil. Homem de espírito empreendedor, criativo e ousado usou dos meios que lhe eram disponíveis para erigir as primeiras instituições de ensino. Uma questão que se colocava para Nóbrega era a de como sustentar as casas de bê-á-bá dos missionários. Esse sustento poderia se fazer por meio de esmolas. No entanto, segundo Bittar e Ferreira Jr. (2007, p. 39),

Para a magnitude da tarefa missionária que a Companhia de Jesus se propunha realizar em terras brasílicas, a manutenção das casas de bê-á-bá com base em esmolas se constituía num grande obstáculo. No tocante à casa de São Paulo de Piratininga, por exemplo, era possível manter, no máximo, três padres jesuítas, tal como descrito na carta citada. Desde o início da experiência pedagógica fundamentada na organização das casas, Nóbrega demonstrou preocupação com a forma de sua sustentação, dado o papel estratégico que ocupavam no projeto catequético jesuítico. Em carta datada de 1552, ao padre Simão Rodrigues, Provincial de Portugal, ele sustentava que “as casas de meninos nestas partes são muito necessárias”, que não se podia tê-las “sem bens temporais”, e que, sendo assim, “há de haver estes e outros escândalos”

Ou seja, era do entendimento do padre Manoel da Nóbrega que a manutenção da obra missionária que ele se propunha fazer não seria possível se ela dependesse das esmolas de terceiros, afinal, essas esmolas eram de valor tão baixo que só permitiam manter poucos missionários. Isso certamente seria um limitador para a expansão do trabalho missionário. Além disso, conforme Leite (1993, p. 9, grifo nosso) registrou:

O subsídio régio que lhes pagam, e era pessoal, Nóbrega aplica-o ao Colégio dos Meninos de Jesus, e os padres remedeiam-se com as roupas que trouxeram do Reino: “porque a mim ainda me serve a roupa com que embarquei, que Vª Rª por especial mandado me mandou trazer, a qual já tinha servido no Colégio; e no comer vivemos de esmolas”

Depender de esmolas para comer no Brasil colonial era algo delicado. Afinal, nem mesmo os mais abastados financeiramente tinham condição confortável no quesito alimentação. Como receber doação alimentícia de alguém que também, praticamente, não a tem para a satisfação das próprias necessidades? Para ficar mais claro isso, os estudos de Freyre (2003, p. 98;100) ajudam-nos a entender como era a alimentação no Brasil Colonial. Vejamos.

Terra de alimentação incerta e vida difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As saúvas, as enchentes, as secas dificultando ao grosso da população o suprimento de víveres. [...]. Os próprios senhores de engenho de Pernambuco e da Bahia alimentavam-se deficientemente: carne de boi má e só uma vez ou outra, os frutos eram bichados, os legumes raros. A abundância ou excelência de víveres que se surpreendesse seria por exceção e não geral.

De acordo com Gilberto Freyre, crítica era a questão de alimentação no Brasil Colonial. Os padres jesuítas também registraram suas preocupações neste sentido. De acordo com Freyre (2003, p. 102, grifo nosso)

As cartas do padre Nóbrega falam-nos da ‘falta de mantimentos’ e Anchieta refere nas suas que em Pernambuco não havia matadouro na vila, precisando os padres do colégio de criar algumas cabeças de bois e vacas para o sustento dos meninos: ‘se assim não o fizessem, não teria o que comer’. E acrescenta: ‘todos sustentam-se mediocramente ainda que com trabalho por as cousas valerem mui caras, e tresdobro do que em Portugal’. Da carne de vaca informa não ser gorda: ‘não muito gorda por não ser a terra fértil de pastos’. E Quanto a legumes: ‘da terra há muito poucos’. É ainda do padre Anchieta a informação: ‘Alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal, maxime em Pernambuco e Bahia, e de Portugal também lhes vem vinho, azeite, vinagre, azeitona, queijo, conserva e outras cousas de comer’.

O padre Manoel da Nóbrega afirma que a situação era de tamanha preocupação que se os padres não tomassem alguma iniciativa o risco de passarem fome era grande. Assim, diante dessa desafiadora necessidade é que ele decidiu que o sustento das casas de bê-á-bá deveria ser de encargo dos próprios padres. Assim, Nóbrega

[...] apela para el-rei em casos de economia prática. Tendo o colégio necessidade de leite para os meninos, tomara a crédito, do gado de el-rei, doze vacas, para começo também da criação de gados; da mesma forma, tomou dois ou três escravos da Guiné para o mesmo fim de ajudar a manter os meninos: espera que el-rei perdoe as dívidas (el-rei perdoou-a) (LEITE, 1993, p. 8, grifo nosso).

Esse pedido de Nóbrega ao rei de Portugal, Dom João III, deve assustar quando se lê que um dos “itens” requeridos era dois ou três escravos. Como pode a Igreja, que pregava o Evangelho e a “libertação” para todas as pessoas, aceitar que um tipo de ser humano pudesse ser rebaixado ao nível de escravo? Isso não é uma contradição? De fato, é paradoxal e esse “pecado” pode ser debitado na conta da Igreja Católica. Aqui no Brasil, por exemplo, ela sempre foi a religião oficial (até a Proclamação da República, em 1889) e nunca rompeu suas relações com os monarcas pelo fato de eles sujeitarem pessoas à escravidão dentro do seu processo legal constitucional. A aceitação foi passiva, até porque os benefícios que o Padroado lhe oferecia eram vantajosos demais; se colocada na balança a escravidão negra e as regalias materiais, essas últimas pesavam mais. Lutar pela liberdade dos negros, de certo, não era um bom negócio. Era melhor deixar como estava.

Fizemos uma crítica à Igreja aqui. Ela precisa ter espaço para se defender. Que dois de seus advogados então a defendam. Chamemos primeiramente o padre Serafim Leite. Eis o primeiro argumento:

A escravidão, com milhares de séculos de existência, não era instituição que por então se pudesse eliminar, por ser lei civil, herdada do direito romano, ensinada nas Universidades e em vigor nos códigos das nações em determinadas circunstâncias. Ela hoje não existe, felizmente. Reprova-a a nossa mentalidade do século XX. Mas a história ensina que a abolição da escravatura foi conquista lenta, cujos últimos actos só tardiamente, já no século XIX, se executaram em diversas nações, incluindo o Brasil (LEITE, 1993, p. 79).

O segundo a ter o direito de falar e assim defender a Igreja e a Companhia de Jesus será o intelectual brasileiro, Fernando de Azevedo, que se destaca por ser um defensor ferrenho dos padres jesuítas. Eis o seu argumento:

Os missionários, tão ardentes na defesa da liberdade dos aborígines, eram obrigados a tolerar o cativeiro negro, estabelecido pelo saque ungido em instituição legal, como, nas Índias, foram eles constrangidos a transigir com a separação das castas, tão enraizada se achava no sangue (sobretudo no sul da Índia), atacando a evangelização pela conversão, mais fácil, dos sem casta (párias), que viam no missionário um protetor contra seus exploradores. Não lhes sendo possível destruir a escravidão negra (e sabemos todos a campanha que foi necessária, durante quase um século, para a sua abolição), procuraram tornar menos dura a condição servil e prestar tôda a assistência possível, moral e religiosa, às vítimas do cativeiro. Mas, onde os religiosos e, especialmente, os jesuítas estabeleceram os seus mais sólidos pontos de apoio a essa vigorosa expansão missionária, foi nas escolas e colégios que fundaram e com que, no Brasil, durante cêrca de três séculos, a história da

cultura se ligou intimamente à história das missões (AZEVEDO, 1944, p. 130).

Tanto Leite (1993) como Azevedo (1944) falam que os missionários não tinham como lutar contra o instituto da escravidão. Esse costume era tão arraigado, dizem, que a Igreja simplesmente não tinha forças para combater e mudar essa prática perversa. É plausível questionar o raio de ação da Igreja diante do fim da escravidão negra. Teria ela poder para transformar isso? Seria um bom problema para análise. No entanto, ela não só permitiu que pessoas fossem tornadas escravas umas das outras como usou largamente de relações escravistas. Segundo Assunção (2009), os jesuítas foram de longe os maiores proprietários de escravos do Brasil colonial. Só um exemplo de suas “posses” é que no início do século XVIII, os colégios da Bahia, Espírito Santo, Olinda, Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, Santos e o seminário de Belém do Pará possuíam 2238 escravos, sendo que no Rio de Janeiro estavam 950 e no colégio da Bahia 738. E os colégios da Companhia de Jesus seguiram por esse caminho, isto é, o da exploração de um ser humano por outro.

De qualquer forma, foi através da criação de gado e administração de fazendas, com o concurso da mão de obra escrava, que o padre Manoel da Nóbrega fincou as bases de sustento para os seus colégios. Essa prática empreendedora funcionou, mas nem todos concordavam com os atos de Nóbrega. O padre Luis da Grã foi um forte opositor desse projeto. Segundo Bittar e Ferreira Jr. (2007, p. 43),

Luis da Grã, que chegara em 1553, tornar-se-ia o segundo Provincial do Brasil (1559 – 1571), em substituição a Nóbrega e, nessa condição, passou a exercer objeção explícita ao seu projeto missionário. Em 1556, Grã notificou o Geral da Companhia, Inácio de Loyola, sobre a sua contrariedade com o fato de os padres jesuítas estarem adquirindo bens materiais para dar suporte ao processo de conversão dos “infiéis”. Ele considerava incorreto que o Rei desse “um ducado cada mês”, pois isto lhe parecia “soldo” e contrariava os preceitos da ordem.

Luis da Grã tinha embasamento para discordar de Nóbrega, afinal, as Constituições, aprovadas em 1558, proibiam que igrejas e casas de terem bens materiais ou renda própria. Somente os colégios e estabelecimentos de noviciado é que poderiam ter bens e renda própria, tudo evidentemente para fins escolares.

The Society will take possession of the colleges with the temporal goods which pertain to them, appointing as rector one whose talents are more suited for this. He will take charge of maintaining and administering their temporal goods, providing for the necessities both of the material building and of the scholastics who are dwelling in the colleges [...]. The rector should keep account of everything so that he can render it when and to whomever the general may order him. The general, inasmuch as he may not

apply the temporal goods of the colleges to his own use or that of his relatives or of the Professed Society, will proceed with all the more rectitude in his superintendence of these goods, for the greater glory and service of God our Lord9 (THE CONSTITUTIONS..., 1996, p. 138, tradução nossa). Nóbrega, como não fazia distinção entre casas de bê-á-bá e colégios, angariava bens para a manutenção das suas casas de bê-á-bá, o que claramente contrariava as leis dos jesuítas. Essa situação, segundo Bittar e Ferreira Jr. (2007, p. 45)

[...] forjou a criação de colégios, uma vez que, pelas Constituições, eles poderiam dispor de bens materiais [...]. Não fosse isto, provavelmente os jesuítas teriam prosseguido com a expansão das casas, as quais, como mostramos, foram criadas principalmente nos aldeamentos, destinadas às crianças indígenas e mamelucas, ao mesmo tempo em que nelas também coabitavam os órfãos vindos de Portugal.

A partir desse ponto, segundo Bittar e Ferreira Jr. (2007), isto é, de 1570 adiante, os jesuítas passarão a se dedicar mais aos colégios e à educação dos filhos dos colonos. Isso se cristalizará com o transcorrer dos anos. Para Saviani (2011), os colégios tornaram-se elitistas, pois somente os mais abastados podiam frequentá-los, excluindo os indígenas, e os estágios iniciais pensados por Nóbrega foram gradualmente suprimidos. Esse processo de transformação na orientação pedagógica brasileira ganhará contornos ainda mais claros depois da publicação do Ratio Studiorum, em 1599, que passou a disciplinar os colégios do Brasil também.

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