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Capítulo III – As aulas de Capoeira na escola

3.1. A inserção da Capoeira nas escolas

Quando é pensada a inserção de algum conhecimento, seja no interior de uma disciplina ou como parte do currículo escolar, deve-se ter me mente quais os critérios de

escolha de cada unidade escolar para acatar as mudanças ou manter o que já foi estabelecido. Há algumas escolas que elegem em seu Projeto Político Pedagógico as disciplinas que farão parte do currículo cabendo aos professores de cada área a escolha dos conhecimentos a serem abordados. Em outros casos, no Projeto Político Pedagógico constam-se determinadas disciplinas, como também os conhecimentos a serem abordados em cada uma delas, de acordo com as séries. Essa opção, por vezes, é um reflexo das políticas públicas de educação que cobram, através de avaliações anuais aplicadas aos alunos, determinados conhecimentos. Nesse sentido:

O currículo escolar não pode ser considerado algo dado, natural, como se sempre existisse da mesma forma. Currículo escolar é sempre fruto de escolha e de silenciamentos, ou seja, fruto de uma intenção. É impossível a qualquer escola dar conta da totalidade dos conhecimentos e dos saberes construídos pela humanidade. O tratamento de qualquer saber na escola é um processo de seleção cultural, de um recorte de quais aspectos da cultura trataremos junto com os alunos, o que vai ser explicitado ou não nos nossos processos de formação.

Esse processo de escolha/seleção nunca foi simples. É intencional e político e, como tal, é sempre resultado de conflitos e lutas de poder realizados pelos atores dentro e fora da escola. Longe de um simples consenso, currículo é campo de luta: luta por quais saberes, valores e formas de socialização que farão parte da vida dos alunos.

Um exemplo emblemático dessas escolhas e desses silenciamentos ocorre no campo das relações étnico e raciais. A forma de tratar ou de ocultar temas como a escravatura, o racismo e as desigualdades que ainda persistem nas relações étnicos e raciais espelha o posicionamento político que a escola tem dessas questões. (BRASIL, 2006, p.225-226)

Com relação aos conhecimentos abordados na educação física tradicionalmente vê-se o ensino-aprendizado das modalidades esportivas, havendo pouca variação do que é estudado na maioria das escolas brasileiras. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio traduzem de forma esclarecedora essa situação:

No caso específico da Educação Física, não são poucos os casos de um currículo escolar que privilegie apenas as práticas corporais de origem européia ou norte-americana, notadamente os esportes. Ao escolher abordar ou não práticas corporais oriundas da cultura afro-brasileira (como a capoeira, os maracatus, etc.), bem como a forma como elas aparecem na escola, aponta-se para um conjunto de escolhas curriculares e políticas de como essas relações são tratadas no meio escolar. (BRASIL, 2006, p.225-226)

Portanto, considero que os professores que participaram do curso de Capoeira e, em especial, as professoras que aceitaram participar do trabalho de campo têm um outro olhar sobre os conhecimentos a serem estudados na educação física escolar . Os motivos que as levaram a escolher esse tema, os modos de ensinar, a receptividade da escola, todos esses elementos são importantes para se compreender o trabalho desenvolvido por elas.

Uma das professoras identificada como Profa. Estrela-do-mar iniciou o trabalho com Capoeira nas aulas a partir de meu estágio supervisionado nas aulas de educação física, no qual ela era minha supervisora. Em depoimento já transcrito no capítulo II, ela afirma que não tinha a confiança necessária para desenvolver esse conhecimento sozinha em suas aulas e foi estimulada pela minha presença.

Já a professora identificada como Profa. Girassol iniciou a abordagem da Capoeira nas aulas de educação física, em 2006, portanto já tinha dois anos de experiência com esse tema quando participou do trabalho de campo. Contou-me que já tinha enfrentado dificuldades no primeiro ano de ensino desse conhecimento, devido à não adesão às aulas por alunos evangélicos, pois os pais proibiam seus filhos de fazer Capoeira por considerá-la algo demoníaco. Essa situação, por vezes, ocorria à revelia do aluno que demonstrava desejo em participar das aulas. Por isso, no ano seguinte, já sabendo desse problema, ela não revelou nas primeiras aulas o assunto que estava sendo estudado. Isso porque ela aproveitou o estudo do tema Dança e continuou a abordagem com o ensino da ginga e de outros gestos da Capoeira, simplesmente dizendo tratar-se da Dança da África. Somente após algumas aulas de Capoeira ela revelou o que de fato estava ensinando. Ela disse-me que vários alunos que conheciam essa prática corporal desconfiavam e perguntavam- lhe: “Professora, isso

não é Capoeira?” Mas, ela disfarçava o máximo que podia e, por vezes, contava ao aluno

curioso em segredo que era mesmo Capoeira e fazia um pacto de cumplicidade.

Assim, nota-se a diferença na inclusão do tema Capoeira nas aulas das duas professoras. Percebo como é enunciado no documento citado, que a inclusão de temas relativos à cultura afro-descendente não é simples, pois ainda existem preconceitos. Na escola da Profa. Estrela-do-mar, houve uma aluna, cujos pais eram evangélicos, que a proibiram de participar das aulas de Capoeira, como também a proibiam de participar da festa junina da escola. Nesse caso, vale lembrar que foi apenas uma aluna dentro de um

universo de aproximadamente 200 alunos que participaram do trabalho de campo envolvendo a Capoeira.

Fico pensando como será que os pais evangélicos, digo os pais, pois as crianças, geralmente, não têm muito claro o que é proibido e porque é proibido, irão receber a Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que “Altera a Lei no. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’, e dá outras providências.” (BRASIL, 2003,)

Esta lei prevê a inclusão, no currículo escolar, de todas as escolas de ensino fundamental e médio da rede de ensino pública e particular, temas afetos à cultura afro- descendente e à luta dos negros no Brasil, bem como, suas produções artísticas, sociais, econômicas e políticas, a serem abordadas, preferencialmente, mas não exclusivamente, nas aulas de Educação Artística, Literatura e História.

Nesse sentido, podemos indagar como serão abordadas as religiões de matriz africana e suas diferentes manifestações artísticas ligadas a essas religiões como: o Maracatu, Afoxé, Dança Afro e até a Capoeira. Gostaria de imaginar como será a receptividade desse público e quais serão os argumentos para alegar a não participação de seus filhos nestas atividades. Não vejo outros argumentos que senão os racistas, pois se fosse somente uma questão religiosa, penso que os alunos não poderiam aprender nada sobre Reforma Religiosa Protestante na Europa, afinal de contas, porque um católico irá se interessar em aprender sobre uma reforma que diminuiu os fiéis dessa religião e colocou em xeque vários de seus dogmas?

Infelizmente, o preconceito é o único argumento usado para não se aceitar o estudo da Capoeira e de outros temas ligados às produções dos negros e de seus descendentes na escola brasileira. Entretanto, espero que isso seja superado e que os educadores não cruzem os braços nessa luta.

Passo, então, a abordar algumas experiências que foram desenvolvidas nas escolas, com a esperança de que possam ter colaborado na quebra de preconceitos com relação à Capoeira e na reflexão sobre os modos de ensinar essa manifestação cultural nas aulas de educação física.