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Capítulo II – O curso de Capoeira para os professores

2.2. O mestre convidado

Com relação à participação do Mestre Tulé como o responsável em ministrar as aulas e não de outro Mestre, sua escolha deu-se devido à sua vivência no mundo capoeirístico e no mundo acadêmico. Esse tipo de formação não é convencional entre os Mestres que conheço. Além disso, reconhecidamente, ele tem uma experiência com o ensino-aprendizado da Capoeira mais vasto do que o meu. Apesar de eu já ter ministrado aulas dessa manifestação, minha experiência comparada com a dele é muito menor, pois ele ministra aulas há mais de vinte anos e durante quinze anos de sua vida ele fez a regência de aulas todos os dias, mais de uma aula por dia e ensinou a centenas de alunos.

Sua vivência no meio acadêmico iniciou-se através da militância política, na década de 1980, época na qual houve a abertura democrática no país e ele filiou-se a um partido de esquerda76. Nessa ocasião, militando no partido e sentindo a necessidade de compreender as obras marxistas – pois trabalhava na biblioteca e com vendas de livro para arrecadação de fundos para as campanhas políticas desse partido – começou a freqüentar algumas disciplinas sobre política, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da UNICAMP.

No ano de 1980, iniciou a construção de sua academia de Capoeira que ficava no quintal dos fundos de sua residência, no bairro do Jardim São José, em Campinas/SP.

75 Tenho conhecimento da polêmica acerca do ensino da Dança pelo professor de educação física ou pelo professor de dança, ambos egressos dos cursos de licenciatura, porém cada um formado em sua área específica. Não entrarei no mérito dessa discussão por pensar que não é pertinente nessa pesquisa.

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Durante quinze anos, ele ministrou aulas nesse espaço, primeiro como professor e, posteriormente, como mestre. Por ter optado pela profissão de mestre de Capoeira, dava aulas durante todo o dia, para todas as faixas etárias, entretanto as dificuldades eram muitas, pois atendia um público desfavorecido economicamente, moradores da ocupação localizada do outro lado da rua de sua casa, e que não pagavam regularmente as mensalidades das aulas. Entretanto, apesar das dificuldades, ele manteve seu trabalho, porém começou a fazer “bicos” para terminar a academia e manter as despesas, dentre os trabalhos que fez estão: o de garçom de churrascaria, pandeirista e capoeirista em casa de show folclóricos, bailarino e ator profissional. Estes dois últimos ofícios influenciaram o seu modo de jogar Capoeira acrescentando elementos estéticos da dança (giros com influência do ballet clássico, golpes com bastante alongamento das pernas e braços, ginga malemolente) e gestos teatralizados que tornaram seu jogo marcante.

Em 1988, após anos de envolvimento com o meio capoeirístico, fez uma viagem à Salvador/BA, que mudou bastante seu ponto de vista acerca da Capoeira. Uma das mudanças foi devido ao fato de ter visto o sofrimento de vários mestres antigos de Capoeira, sem o devido reconhecimento das instâncias públicas e de seus alunos para terem condições dignas de vida na velhice. À frente dessa realidade em Salvador/BA e comparando com o contexto em que vivia em Campinas/SP, optou pela volta aos estudos, para garantir uma velhice digna, através do supletivo do ensino fundamental, oferecido gratuitamente, no programa “Telecurso 1º. Grau”, com o apoio do Centro de Ensino Escolar, localizado no Ciclo Básico da UNICAMP.

Em meio à sua volta aos estudos e com a convivência com pessoas da área de lazer, ele começou a repensar sua forma de ensino da Capoeira. Essa convivência ocorreu porque o mestre trabalhou, paralelamente ao ensino da Capoeira, de 1991 a 2000, como coordenador de recreação e lazer em hotéis e convivia com vários estudantes e egressos do curso de educação física, como também, de outras áreas ligadas ao campo do lazer.

A mudança efetuada no modo dele ensinar a Capoeira deveu-se ao fato de que sua formação capoeirística deu-se em um grupo no qual a abordagem de ensino era bastante militarizada e durante boa parte de sua vida, como professor e mestre de Capoeira, ele reproduziu a metodologia de ensino no qual se formou, de acordo com seus depoimentos no trabalho de campo.

De um modo resumido, posso descrever que as aulas que ele freqüentava e ministrava tinham seu início com corridas na sala da academia, polichinelos, flexões de braço e abdominais. Depois desse “aquecimento” é que ocorria o ensino dos golpes, contragolpes e defesas da Capoeira, com base na seqüência de Bimba (mencionada no capítulo I deste estudo). Para finalizar a aula era realizada uma roda de Capoeira na qual havia disputas entre os alunos, muitas vezes com combates corporais. A musicalidade era ensinada somente para aqueles que se interessassem e tivessem um tempo, fora da aula, para aprender com os mestres. Geralmente, esse aprendizado ocorria em viagens e passeios para batizados de outros grupos de Capoeira.

Essa forma de ensinar começou a inquietá-lo à medida que passou a ver outras formas de se jogar Capoeira, através do contato com os mestres de Capoeira Angola, na viagem que fez a Salvador/BA, em 1988.

Mais um fator que influenciou a mudança no modo dele ministrar as aulas foi o acesso que teve às novas produções sobre o ensino da educação física. O mestre conheceu e conversou com muitos autores da área da educação física, na Faculdade de Educação Física da UNICAMP, na década de 1990, e freqüentou alguns congressos de estudos do lazer, enfim, travou contato com o meio acadêmico da educação física que estava em ebulição naquela época e pôs-se a pensar outra forma de ensinar Capoeira aos seus alunos.

Então, começou a experimentar uma abordagem na qual o ensino da Capoeira não deveria ter um caráter militarizado. De acordo com suas colocações:“- A própria Capoeira

deveria servir de aquecimento.” (Mestre Tulé)

E passou a organizar suas aulas de forma diferente daquela que seus mestres faziam, iniciando com uma roda de cantos da Capoeira e ensinando os alunos a tocarem os instrumentos musicais. Ele passou a destinar o mesmo tempo de ensino-aprendizado da musicalidade para o ensino-aprendizado da gestualidade, fato que não ocorria na academia onde treinou e se formou. O ensino dos golpes, contragolpes e defesas da Capoeira começavam com movimentos lentos, geralmente com os alunos sentados no chão, com música de Capoeira (tocada em aparelho de som), também lenta, geralmente ladainhas, o que propiciava a memorização desses cânticos. Gradualmente, passava-se a executar movimentos em pé e mais rápidos, com um ritmo de música mais acelerado. Esse tipo de Capoeira que é

um misto do jogo da Capoeira Angola com o da Regional é denominado no meio capoeirístico como Capoeira Contemporânea.

Nesse sentido, penso ser importante esclarecer o que foi a reinvenção da Capoeira na capital paulista, para apresentar como surgiu a Capoeira Contemporânea e a influência que exerceu na formação do mestre convidado e, conseqüentemente, na minha formação como capoeirista. Este tema foi alvo do estudo de Reis (1997) que refez a história da ida para São Paulo de alguns capoeiristas baianos, na década de 1960, que procuravam condições de vida melhores no sudeste. Chegando na capital paulistana, começaram a trabalhar em diversos ofícios, uma vez que a Capoeira naquela época não era vista com bons olhos pela sociedade. À medida que eles se estabeleceram nessa cidade passaram a criar laços de solidariedade, já que sofriam discriminações pelo fato de serem nordestinos, migrantes e, em geral, trabalhadores braçais. Além disso, o modo de vida do sudeste diferia-se bastante da vida no nordeste do país o que lhes causava certa nostalgia da terra natal. Em conseqüência disso, as manifestações culturais presentes na Bahia foram fatores que congregaram esses baianos em São Paulo e a Capoeira, nesse contexto, foi um dos laços que uniu capoeiristas de diferentes linhagens77. Por isso, Reis (1997) pode constatar que: “Dessa forma, com a abertura da

Cordão de Ouro em terras paulistanas, assistimos ao impensável na Bahia: dois mestres, um

formado na Angola e outro na Regional, abrirem juntos uma academia que se tornaria um lugar de comunhão da capoeira da metrópole.”(REIS, 1997, p.164)

Foi a partir dessa fusão de modalidades de Capoeira, pois nesse espaço da academia

Cordão de Ouro e, posteriormente, em outras academias que foram fundadas em São Paulo,

a prática da Capoeira tornou-se híbrida, denominada no meio capoeirístico como Capoeira Contemporânea, havendo uma mistura entre a Capoeira Angola e Capoeira Regional.

Para além da fusão no modo de se praticar a Capoeira, em que, por exemplo, uma roda de Capoeira inicia-se com uma ladainha, com um toque de berimbau no ritmo de Angola, o jogo começa com os gestos da Capoeira Angola e durante seu desenrolar aumenta- se a velocidade do toques dos instrumentos musicais, mudando-se o toque do berimbau para um toque rápido de São Bento Grande de Angola, a gestualidade passa a ser o misto da

77 Na Capoeira Angola ou Regional a linhagem é determinante para saber quem foi seu mestre e qualificar ou não o aprendizado que cada aluno obteve no mundo capoeirístico. Por exemplo, na Capoeira Angola aproximam-se de uma linhagem mais autêntica dessa modalidade todos os capoeiristas que têm o mestre Pastinha na sua ascendência, independente da geração na qual se encontra este capoeirista.

Capoeira Regional com a Angola, porém com gestos mais rápidos. Encerrando-se a roda de Capoeira, na maioria das vezes, com um samba de roda.

Esse exemplo é típico das rodas de Capoeira que participei no início de meu aprendizado, em 1996, e da forma de ensino adotada pelo Mestre Tulé, porém sem os exercícios militares, destituídos de sentido no ensino-aprendizado da Capoeira. Posteriormente, em meados de 1998, o mestre alterou a lógica da roda adotando os preceitos da Capoeira Angola que havia visto em Salvador/BA e que lhe pareceu mais inclusiva, pois sua prática era feita por velhos, mulheres e crianças, enquanto que a Capoeira Regional ou Contemporânea tinha uma presença de capoeiristas mais atléticos, com vigor físico maior. A partir de encontros de Capoeira Angola, nos quais participou após dez anos do primeiro contato com essa modalidade, com a qual o Mestre Tulé havia se identificado, ele se apropriou de algumas técnicas e rituais e passou a ensiná-los aos seus alunos. Entretanto, o mestre nunca se intitulou “angoleiro” ou quis se filiar a uma linhagem na escola de Mestre Pastinha, o que poderia lhe trazer bastante prestígio no meio capoeirístico.

Voltando ao tema da reinvenção da tradição da Capoeira, pode-se considerar que esse tipo de prática social fez com que a Capoeira baiana “miscigenada” prevalecesse na capital paulistana e se espalhasse por todo o Estado atingindo o centro-sul do país. Isso porque os primeiros capoeiristas baianos, chamados por Reis (1997) como: primeira geração da

Capoeira em São Paulo, convidaram novos capoeiristas da Bahia a integrarem-se a esse

processo e formaram novos professores e mestres, dentro dessa forma de pensar a Capoeira. Além disso, várias tradições foram reinventadas nesse processo, Reis (1997, p.165) mostra que:

Em São Paulo os capoeiristas baianos construirão em suas academias uma Bahia mítica ou, como diz mestre Kenura, “um pedacinho da Bahia”. Os nomes de suas academias lembrarão sempre sua terra de origem: Viva Bahia, Santa Clara da Bahia, Ilha de Itaparica, Mandinga

Baiana, Ilha de Itapuã, Quaraçu da Bahia, Unidos da Bahia, Rosa Baiana, Ladeira do Pelourinho, Lendas do Abaeté, Unidos do Bonfim, Filhos de Amaralina. Também algumas manifestações da cultura popular

nordestina como o maculelê, a puxada de rede e o sensual samba de

roda serão revividas e ensinadas nas escolas de capoeira que se prezem.

A saudade do nordestino migrante parece impregnar os quatro cantos das academias. Também nas paredes há “pedaços da Bahia”: posters de Salvador, rede de pescador, fotos de Pastinha e de Bimba ou da festa de

Nosso Senhor do Bonfim. Nas músicas, incansavelmente, canta-se a Bahia [...]

Foi nesse ambiente, de uma Capoeira baiana e mítica, que o Mestre Tulé foi formado, na cidade de Campinas/SP. Esse ambiente que embora se mostrasse mágico trazia em si o contraditório, pois como escrevi, as aulas eram militarizadas e a violência era assídua, predominando a presença masculina.

Quando iniciei meu aprendizado da Capoeira, o ambiente da Bahia mítica ainda prevalecia, mas em um local diferenciado daquele onde o mestre aprendera Capoeira, pois estávamos (eu e ele) no ambiente universitário. Em 1993, o Mestre Tulé foi convidado a ministrar aulas, na modalidade de extensão universitária, pelo Instituto de Artes Corporais da UNICAMP. Durante esse período, ele desenvolveu e aprimorou sua metodologia de trabalho tendo o cuidado de adaptá-la às alunas da Dança, que era a maioria do seu público. O curso “Capoeira”, promovido pela Escola de Extensão da UNICAMP, manteve-se até o ano de 1998, quando houve mudanças no Departamento de Artes Corporais e, por incompatibilidade com as diretrizes da nova gestão, o Mestre Tulé teve de encerrar suas aulas.

Desse modo, a forma como aprendi Capoeira já era um ensino-aprendizado transformado, pois nesse caso, outro determinante estava presente que era o de oferecer, um curso, prioritariamente, para as alunas de Dança.

A partir desse pressuposto, o ensino do gesto pautava-se na teatralização dos golpes, que, por vezes, ficavam estilizados, fruto das circunstâncias, moldando uma forma de jogar Capoeira com um aspecto plástico bastante expressivo, com gestos amplos, pernas e braços alongados, acrobacias (quando conseguíamos fazer) no meio do jogo, um repertório gestual diferenciado dos demais grupos de Capoeira que conheci naquela época. Em contrapartida, os demais grupos desse período, diziam que a Capoeira do Mestre Tulé era Capoeira “Paz e Amor”, porque não ressaltava o aspecto combativo do jogo, era praticada por mulheres e todas sorrindo, “de bem com a vida”.

Em várias ocasiões, ouvíamos piadinhas sobre esse modo de jogar Capoeira. Mas, não importava, pelo menos para mim, pois foi esse modo de praticar Capoeira que me cativou e eu achava que era um jeito mais democrático e inclusivo de se aprender, afinal não tinha de bater em ninguém e também tinha plena consciência que jamais apanharia numa roda. Por saber desses detalhes, o mestre demonstrava inúmeros cuidados com as alunas, e

com os eventuais alunos que participavam do nosso grupo de Capoeira, dizendo que não precisávamos entrar na roda de Capoeira de outros mestres para provar nada para ninguém e que deveríamos ter muito cuidado quando fôssemos jogar com capoeiristas de outros grupos para não nos machucarmos. Considero que esses cuidados com a integridade física dos alunos e alunas é primordial e o Mestre Tulé ensinou-nos isso.

Após a experiência que desenvolveu no Instituto de Artes, ele prosseguiu ministrando aulas, porém sempre com problemas para conseguir um espaço físico adequado. Nessa época, ele já havia vendido a casa onde ficava sua academia. Depois de 1998, passamos por diferentes locais de aula, academias de ginástica, centro de convivência da moradia estudantil da UNICAMP, até que se tornou inviável manter o ensino-aprendizado da Capoeira de forma sistêmica para garantir a sobrevivência. Paralelo a esse processo, o mestre deu continuidade aos seus estudos e, em 2000, entrou na Faculdade de Educação Física, licenciando-se nessa área em 2005, e fazendo pós- graduação, latu-sensu, em Bioquímica, Fisiologia, Treinamento e Nutrição Esportiva, pela Faculdade de Biologia, da UNICAMP, tornando-se especialista em 2007. Diante das inúmeras dificuldades para ministrar as aulas de Capoeira que incluem: as altas despesas para a manutenção de espaços adequados para sua prática, a forte concorrência existente entre os grupos de Capoeira, o baixo valor das mensalidades a serem cobradas aos alunos, o Mestre optou por trabalhar com essa manifestação cultural esporadicamente em eventos especiais, como nessa pesquisa de doutorado. Atualmente ele desenvolve um trabalho de ensino-aprendizado de tênis de campo, em Barão Geraldo, distrito de Campinas/SP, não descartando a possibilidade de retomar seu trabalho com Capoeira, assim que surjam condições materiais concretas para isso.

Diante desse histórico, percebo que a vivência do Mestre Tulé pauta-se na produção cultural e do conhecimento advindos de uma “cultura negra e popular” que foi alimentada por contradições existentes em nossa sociedade, intercambiando-se com as produções advindas da universidade e de outros espaços sociais. Por essa vivência, vejo que não há como dissociar os conhecimentos, não há um conhecimento “puro”, mas sim formas de produzí-lo e de valorizá-lo, de acordo com as diversas condições sociais de produção.

Desta forma, o conhecimento construído pelo Mestre Tulé, que foi apropriado por mim, sua aluna, no decorrer de três anos de prática diária da Capoeira (1996 a 1998) e foi reelaborado nas aulas que ministrei nos cursos de graduação e na escola de 1ª. a 4ª série,

serviu-nos como base para a elaboração do planejamento das aulas do curso para os professores.

Esse planejamento contemplou o ensino-aprendizado da musicalidade e da gestualidade da Capoeira, bem como a relação da vivência da Capoeira com sua história e as reflexões em torno de temas que perpassam sua prática como, por exemplo, preconceitos relacionados à etnia, gênero e classe social. Além disso, procurou-se abordar algumas manifestações como: o maculelê, puxada de rede, afoxé e samba de roda78 que estão presentes no ensino-aprendizado da Capoeira, nas academias e grupos dessa manifestação, a partir da reinvenção de sua tradição na capital de São Paulo.