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CAPÍTULO III – ANÁLISE HISTÓRICA DA EVOLUÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA NO BRASIL

III. 2 Instrumentos e Estratégias Utilizadas

Esta seção pretende explorar as políticas de administração da dívida pública desde o início da fase “moderna” da mesma. O objetivo é compreender as diversas políticas adotadas ao longo dos anos, com vistas ao atendimento do refinanciamento da dívida pública e do gerenciamento da política monetária, analisando-se os instrumentos utilizados e as formas de colocação dos mesmos em mercado. Pretende-se mostrar que estas políticas foram altamente influenciadas pela conjuntura econômica de cada período, mostrando como as estratégias foram mudando ao longo dos anos. O objetivo é, além de descrever os diversos instrumentos utilizados, sua multiplicidade e sua aceitação pelo mercado, mostrar que os instrumentos atualmente utilizados representam não só uma conseqüência do processo de aprendizado por que passou a administração da dívida pública nestes 35 anos, como também do tamanho do estoque de dívida, além de ser um reflexo da conjuntura econômica vigente em cada período. Será explicada a origem e as razões para a criação dos diversos títulos emitidos competitivamente em mercado ao longo destes quase quarenta anos.

Existem quatro motivos básicos pelos quais é economicamente justificada a existência de dívida pública: (1) o financiamento do déficit público; (2) propiciar instrumentos adequados à realização da política monetária; (3) a criação de referencial de longo prazo para financiamento do setor privado, uma vez que as emissões públicas, dado seu alto volume e ausência de risco de crédito acabam por servir como referência para a precificação de instrumentos privados; e (4) propiciar a alocação de recursos inter- gerações, na medida em que (a depender do prazo dos instrumentos de financiamento) à geração futura cabe o pagamento dos gastos feitos no presente (isto é, aqueles que financiados via endividamento).

Como será demonstrado ao longo desta seção, a trajetória dos instrumentos utilizados no Brasil representa uma evolução destes objetivos listados acima, do primeiro ao último. O primeiro objetivo, ainda nos anos 60, foi a criação de instrumentos que permitissem o financiamento dos investimentos públicos sem que fossem geradas pressões inflacionárias. Ultrapassada esta fase, os esforços se concentraram no sentido da criação de um instrumento mais adequado à realização da política monetária. A

padronização e a colocação sistemática de títulos criaram condições para o atendimento da terceira função da dívida pública e, no caso do Brasil, tendo em vista as turbulências por que passou a economia e das estratégias adotadas para se acessar o mercado, esta função nem sempre foi atingida. No que se refere ao quarto objetivo, apenas em 2000 foram dados os primeiros passos nesta direção, com a emissão de títulos de 20 e 30 anos.

Ter a percepção destas funções é fundamental no entendimento dos acontecimentos relacionados à administração da dívida pública no Brasil, em especial em seus primeiros anos. Nestes, de fato as estratégias foram coerentes com estes objetivos mas, à medida em que a conjuntura econômica foi se deteriorando ao longo dos anos e com a inflação atingindo patamares elevados, a administração da dívida pública passou a fazer uso de diversas estratégias não convencionais para acessar o mercado. É interessante perceber como a deterioração das condições macroeconômicas foram se refletindo na política de endividamento, com as opções de financiamento se reduzindo ao longo do tempo. Os primeiros instrumentos foram usados com regularidade até os primeiros anos da década de 80, quando a heterodoxia, então dominante na condução da política econômica, acabou por estimular a heterodoxia também na criação de novos instrumentos de política fiscal / monetária.

A partir de 1986, começa a fase da multiplicidade de instrumentos, seja para financiamento do déficit público ou como instrumento de política monetária. Diferentemente da maioria dos países, o Brasil tem sido pródigo em criar instrumentos para financiamento de sua dívida pública. Estudar as características dos instrumentos usados na condução do gerenciamento da dívida pública explica muito não somente sobre a sua administração como também fornece interessantes informações sobre a própria história econômica de cada período. Desde 1965 foram usados 14 instrumentos diferentes em colocação competitiva (leilão) para mercado, considerando diversos indicadores, prazos e demais características. Pretende-se argumentar que estes diferentes instrumentos foram usados seguindo as tendências da economia e do mercado da época, assim como os arranjos das políticas monetária e fiscal. Os referidos instrumentos estão listados no Anexo 1 deste capítulo.

Ao se analisar a história da dívida pública enfocando nas estratégias de administração da mesma, e suas relações com a conjuntura econômica vigente às épocas em questão, torna-se interessante subdividir a análise em 6 períodos distintos, quais sejam: (1) até 69, com o início da emissão padronizada de instrumentos objetivando o financiamento não inflacionário do déficit público; (2) a fase de maior estabilidade da administração da dívida, ao longo de toda a década de 70, com emissões regulares dos mesmos instrumentos; (3) na primeira metade dos anos 80, quando a deterioração das condições macroeconômicas obrigou a administração da dívida a suaves mudanças nas estratégias adotadas ao longo de toda a década anterior; (4) o agravamento da conjuntura econômica e a elevação das taxas de inflação, na segunda metade dos anos 80, as quais levaram o governo a adotar choques econômicos que acabaram por repercutir na estratégia de endividamento; (5) os primeiros anos da década de 90 e a implementação do Plano Collor, o qual congelou ativos financeiros (inclusive títulos públicos); e (6) a fase atual, após 95, com os anos de consolidação da estabilização econômica.

III.2.1 - O Início: de 1964 a 1969

A história “moderna” da administração da dívida pública tem início em 1964, no contexto das reformas no sistema financeiro implementadas pelo recém-empossado regime militar. Uma destas medidas foi a instituição da correção monetária, buscando evitar perdas advindas da crescente inflação. Até 1964 os instrumentos de endividamento eram títulos não padronizados (Apólices e Obrigações da Dívida Pública) e sem mecanismos de proteção contra a inflação. Dessa forma, de modo a se atingir o objetivo de criar um mercado desenvolvido e líquido de títulos públicos, estes deveriam oferecer proteção contra a perda do poder aquisitivo da moeda. A mencionada instituição da correção monetária fazia com que a escolha de um título indexado a ela fosse a solução natural, dado, inclusive, que um dos objetivos da criação da correção monetária era exatamente se evitar perdas aos detentores de títulos públicos, e mais, estimular a aquisição dos mesmos. Desta forma, o primeiro instrumento padronizado de dívida pública foi a ORTN (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional), instituída legalmente pela Lei n.º 4.357/64 e pelo Decreto n.º 54.252/64.29

29 As características dos títulos aqui mencionados encontram-se descritas no Anexo 1.

A criação dos títulos com correção monetária, na medida em que protegia os investidores das perdas representadas pela inflação, representou um grande impulso ao desenvolvimento do mercado de títulos públicos no Brasil. A despeito do grande crescimento da dívida pública nestes anos, mencionado na seção anterior, as emissões ainda não eram realizadas em volume suficiente sequer para atender às necessidades de cobertura dos déficit orçamentários. A tabela a seguir mostra as emissões líquidas de ORTN e as necessidades orçamentárias:

(Em percentual do PIB)

Ano Títulos em Circulação Déficit da União Colocação Líquida de ORTN

1964 0,2% 3,2% 0,2% 1965 1,2% 1,6% 0,9% 1966 2,6% 1,1% 1,2% 1967 3,5% 1,7% 0,6% 1968 3,5% 1,2% 0,1% 1969 4,4% 0,6% 0,6%

Fonte: Relatório de Atividades BACEN/GEDIP, 1972

Percebe-se pela tabela acima, que, até 69, apenas no ano de 66 a colocação líquida de ORTN conseguiu superar o déficit da União, o que pode ser atribuído à instituição, nesse ano, de compulsório em títulos públicos.30

Vale relembrar que, nesta época, o país implementou o PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), o que acarretava maiores gastos com investimentos, sem que se deixasse de lado o compromisso com a estabilidade inflacionária. Desta forma , surgia a necessidade de se criar uma forma eficiente de financiamento não inflacionário destes déficits, o que só poderia ser dado via endividamento público. É neste contexto que surge o objetivo de se adotar medidas para a criação e desenvolvimento de um mercado eficiente de títulos públicos.

Deve-se lembrar também que os resultados da tabela acima só foram obtidos por conta de uma série de medidas que contemplavam a subscrição compulsória de ORTN, como (1) parte dos depósitos dos bancos comerciais no Banco Central passou a ser em ORTN; (2) contribuições para o extinto Fundo de Indenizações Trabalhistas (FIT), obrigatoriamente subscritas em ORTN e (3) parte dos recursos decorrentes da correção monetária do Ativo Imobilizado das empresas era subscrita em ORTN31.

30 Para maiores detalhes, ver Carlos Brandão, “Dívida Pública e Mercado Aberto no Brasil”, pg. 60.

31 Para uma descrição mais detalhada destas medidas, ver Silva Neto, 1980.

A despeito da compulsoriedade mencionada acima, como visto, os recursos obtidos não eram suficientes para o financiamento das necessidades fiscais da União, exigindo novas medidas de incentivo à aquisição destes instrumentos pelo mercado. As primeiras medidas foram tomadas ainda em 1968, com a emissão de ORTN com prazo decorrido. Assim, papéis que tinham nominalmente 1 ano, eram emitidos faltando 15, 30 ou 40 dias para o resgate. Os esforços empreendidos ao longo dos anos lograram efeitos de forma que já em 69 conseguiu-se que a colocação líquida de ORTN fosse superior ao déficit da União. “Para contornar esta tendência (déficit no giro da dívida), em fins de 1968 o Ministro da Fazenda autorizou a emissão de títulos do Tesouro Nacional com prazo decorrido de emissão, uma vez que títulos com prazos de um, dois e cinco anos não encontravam compradores finais. ...A engenhosa maneira que a GEDIP encontrou para superar essa situação foi emitir títulos de um ano como se eles tivessem 15 dias, um mês ou dois meses para vencer. E, graças a esses prazos relativamente curtos, em 1969 foi conseguido superávit suficiente para cobrir o déficit do Tesouro Nacional”32.

Como visto, nesse período, o objetivo primordial era o desenvolvimento do mercado de títulos públicos, de forma que a prioridade foi dada a um instrumento que gerasse interesse nos investidores. Assim, as ORTN representavam o único instrumento a mão do governo para execução tanto da política monetária como da política de dívida. A possibilidade de se emitir um título que propiciasse proteção contra a inflação foi fundamental para o desenvolvimento do mercado de dívida pública no Brasil. Conforme argumenta Garcia33, “The existence of indexed public debt held by private savers on a

voluntary basis defined a bedrock for the development of financial markets in Brazil in the following years”. Percebe-se então que esta fase terminou com o primeiro dos quatro

objetivos da dívida pública já tendo sido atingido, restando a criação de políticas que viabilizassem a obtenção do segundo objetivo. Assim, na medida em que o mercado ganhou volume suficiente, novas medidas foram implementadas, no início da década de 70, de forma a propiciar ainda maior dinamismo e eficiência, com ênfase na definição de instrumentos mais apropriados à política monetária, e acabaram por representar um enorme avanço no mercado de títulos públicos no país.

32 Brandão, C. “Dívida Pública e Mercado Aberto no Brasil”, 1985.

III.2.2 - A Fase do Desenvolvimento do Mercado de Títulos Públicos: Década de