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2.1 – Isaak August Dorner

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Todo o século dezenove pode ser visto como uma luta para afirmar a humanidade de Jesus, pode-se observar isto com grande clareza na segunda metade deste século no pensamento protestante alemão. O período é marcado pela tensão e pelo choque de posições contrárias quanto a cristologia. Isaak August Dorner buscou uma solução para o problema desejando reter as declarações tradicionais sobre Cristo, mas também tentando incluir as mais novas idéias, correntes no momento, provindas do hegelianismo e das escolas descendentes, como a alta crítica ou o criticismo histórico.

O método histórico-crítico apresentou um desafio radical à cristologia ortodoxa como expressa no Concílio de Calcedônia. F.C. Baur de Tubingen se utilizara do método crítico mais radical durante algum tempo, no entanto seu aluno D.F. Strauss foi quem gerou maior amplitude de controvérsias quando da publicação do seu livro Leben Jesu em 1835. Este livro apresentou Jesus como uma pessoa completamente histórica e humana, sobre quem não temos grande informação a respeito, não havendo, portanto, a possibilidade de se fazer qualquer afirmação dogmática a respeito do aspecto sobrenatural dele. A obra de Strauss encontrou muita oposição neste período, pois havia na Alemanha o desejo corrente de permanecer com as afirmações da cristologia clássica, em contraposição as afirmações do método que ora surgia. Estabelecia-se então um posicionamento de proponentes opostos tais como os defensores da crítica histórica e os defensores da ortodoxia cristológica como expressa tradicionalmente pelo Concílio de Calcedônia.

Como uma tentativa de conciliação entre estas partes surge a escola da mediação que tentava preservar a cristologia clássica bem como levar em consideração método, atualmente

104 Claude Welch, p. 7.

105 Bengt Hägglund, p. 318-319.

106 Para a escrita deste tópico me concentrei no artigo de John M. Drickamer, Higher Cristicism and The Incarnation in The Thought of I.A. Dorner in Concordia Theological Quarterly, vol. 43, n.º 3, junho 1979, p. 197-206.

proposto, de abordagem histórico-crítico. O princípio básico da construção teológica da escola da mediação era fazer uma síntese entre estes pensamentos opostos, reconciliando estas partes discordes numa dialética da mesma tradição de Hegel e Schleiermacher, com o intuito de unir ciência e teologia. Dentro desta escola a divergência de pensamento era constante, movidos pelo problema: Como relacionar as confissões cristãs históricas com a consciência histórica moderna? Especificamente, tiveram problemas em conceber a crença na divindade de Cristo e igualmente manter a idéia de que Jesus teve uma vida totalmente humana, precisamente moral, espiritual e mental. No entanto, os teólogos da mediação conceberam um Cristo com uma forte ênfase em sua humanidade, de um modo radical, como nunca havia sido feito anteriormente. Mas eles rejeitaram com igual ênfase as conclusões de Baur e Strauss, atribuindo às conclusões cristológicas tradicionais o fundamento para conceber interpretações e conclusões a respeito de Jesus. Desta forma, se dedicaram à difícil tarefa de incorporar o novo método histórico sobre Jesus aos dogmas mais antigos sobre as duas naturezas de Cristo e também com respeito à Trindade.

A cristologia ortodoxa havia mantido Jesus Cristo como completamente humano como também completamente divino; verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O século XIX foi marcado pela ênfase realizada pelos críticos históricos de que Jesus era meramente humano e que nele não havia nada de divino, um homem, como diz Schleiermacher, completamente igual a todos os outros homens, exceto pelo seu potencial perene de consciência da dependência de Deus. Os teólogos da mediação intentavam manter algum sentido com respeito à divindade de Jesus sem, contudo negar a insistência histórico-crítica de que ele era apenas um mero homem e nada mais. Nesta atmosfera de pensamento teológico surge Isaak August Dorner (1809-1884) como erudito acadêmico sério e também desempenhando um serviço eclesiástico ativo. Era aluno de Baur e contemporâneo de Strauss na Universidade de Tübingen. Lecionou em Tübingen (1838-1839), Kiel (1839-1844), Koenigsberg (1844-1847), Bonn (1847-1853), Goettingen (1853-1862), e Berlim (1862-1884). Em Berlim também serviu como chefe do conselho da Igreja Prussiana, um dos partidos mais expressivos da União Prussiana. Portanto, Dorner era um erudito acadêmico com grande envolvimento prático na sua igreja.

Dorner era um dos estudiosos de maior respeito em seu tempo, e poder ser considerado uma das figuras mais importantes entre os teólogos da mediação. Autor de obras acadêmicas significantes, em 1856 foi um dos fundadores do Jahrbuecher fuer Deutsche

Theologie. Apesar das contribuições importantes feitas por ele para a discussão teológica

completa, ou seja, sua Teologia Sistemática conforme os preceitos da teologia da mediação, ele não era reconhecido como uma opção válida de influência a ser seguida, isto devido à controle causado pelo pensamento de Albrecht Ritschl.

A teologia de Dorner é representativa na teologia alemã na segunda metade do século XIX, sendo herdada diretamente pelo pensamento de Schleiermacher e Hegel. A influência de Schleiermacher é vista de várias maneiras, no entanto, é mais notavelmente perceptível a preocupação de Dorner quanto às emoções da experiência religiosa, que poderia ser entendida como a prova das conclusões teológicas contra a imediação da vida religiosa. Já a importância do pensamento de Hegel é vista na preocupação por objetividade e cognição, mais precisamente quanto ao método dialético de interpretação histórica e sistemática, lugar este onde a influência de Hegel sobre Dorner era proeminente.

Com este padrão dialético em mente Dorner esperava uma nova síntese que superasse os problemas do passado. A teologia de Dorner estava em uma relação dialética entre a sua própria geração e a construção teológica diretamente precedente. A solução proposta por Dorner, quanto aos problemas cristológicos surgidos no conflito entre a alta crítica e a ortodoxia, foi formulada frente à sua contestação da solução destas mesmas questões encontradas pelo seu contemporâneo Gottfried Thomasius, ou seja, o quenoticismo ou cristologia quenótica.

Gottfried Thomasius e seus seguidores, os quenoticistas, não pertenciam à escola da mediação, mas lidaram com as mesmas questões cristológicas. Aceitaram a ênfase histórico- crítica no desenvolvimento das idéias a respeito de Jesus, também tentaram explicar a relação entre o divino e o humano em Cristo como um auto-esvaziamento do Logos divino, a segunda pessoa da Trindade. O nome quenosis é derivado da palavra grega kenosis, encontrada na carta os Filipenses capítulo 2 verso 7, Thomasius entendeu como “esvaziamento”, passando ele a ensinar que o Logos esvaziou-se da divindade quando encarnou-se. O quenoticismo temia que a divindade fosse um elemento tão forte na vida de Jesus que impediria um desenvolvimento verdadeiramente humano dele, o que negaria então a sua encarnação verdadeira.

Thomasius traiu as raízes racionalistas de sua proposta teológica quando se recusou explicitamente a aceitar uma doutrina que ele próprio não pode entender.

A forma mais simples de quenoticismo dizia que o Logos se transformou em um ser humano. Para Dorner o Logos é capaz de desenvolvimento e sujeito a mudança de acordo com sua essência, e é assim distinto do Pai que somente possui asseidade.

Devido às críticas, principalmente de Dorner, Thomasius ensinou que o Logos não deixou sua deidade completamente de lado, mas apenas alguns atributos, que não eram essenciais à deidade. Ou seja, o Logos esvaziou-se apenas de atributos como onisciência, onipotência e onipresença, que segundo Thomasius são apenas necessários para o seu relacionamento com a criação, retendo assim atributos essências à divindade, especialmente o amor.

Dorner rejeitou tanto o quenoticismo inicial, mais radical, quanto ao que fora posteriormente modificado pelas suas críticas; compartilhou algumas das mesmas preocupações e foi em princípio atraído pelas idéias quenóticas, mas logo veio a opor-se devido às dificuldades insolúveis que esta doutrina gerava quanto à concepção clássica acerca da Trindade, sem, contudo conseguir resolver o problema cristológico vigente. Dorner negou terminantemente qualquer mudança no ser de Deus. Segundo Dorner, o quenoticismo com suas afirmações sobre Jesus Cristo, criava uma mudança tal na relação entre Deus e o mundo, que impossibilitava haver uma história da salvação, um desenvolvimento da revelação e a reconciliação entre Deus e o mundo e vice-versa; assim, Dorner insistiu na imutabilidade de Deus que julgava ser um aspecto irreconciliável com o pensamento quenótico. Provavelmente sob influência do pensamento de Hegel, a quem a unidade era uma idéia chave, deu forte ênfase à unidade da essência de Deus a cima das pessoas da Trindade, até o ponto de falar mesmo da personalidade absoluta do Divino. Enfim para Dorner o quenoticismo violava o monoteísmo. Argumentava que se uma pessoa da Trindade se rebaixa a uma mera potencia durante o tempo do desenvolvimento de Cristo e então interrompe sua atividade de sustentar e administrar todo o mundo criado, aí o Logos não somente é mutável como também inferior em relação à Trindade, cabendo apenas uma colocação acerca deste conceito conforme assim expresso, o subordinacionismo do Logos em relação ao Pai. Em outras palavras, Dorner mantém o pensamento de que o problema do relacionamento das duas naturezas em um único ser, Jesus Cristo, não pode ser resolvido meramente atribuindo uma mudança a Deus.

Dorner afirmava que o quenoticismo não oferecia uma resposta concreta à pergunta cristológica corrente no século XIX, apresentando um Cristo que não era completamente divino e que degradava o Logos. Inclusive em vista do desenvolvimento completamente humano de Jesus, o quenoticismo via o Logos ser completamente comunicado a ele, havendo um tempo de total falta de autoconsciência. Isto parecia a Dorner não deixar nenhum lugar para o Logos possuir o atributo divino do amor, onde a autoconsciência era uma condição prévia para a sua existência. A redução da divindade de Jesus Cristo, feita pelo quenoticismo,

não dava nenhuma explicação de como se relacionavam as duas naturezas em uma única pessoa. Para Dorner, segundo a cristologia quenótica, a única conclusão a que se poderia atingir era que Cristo não fora realmente um ser humano, mas apenas uma natureza divina em forma de servo. Dorner acreditava que os quenóticos somente poderiam explicar a encarnação do Logos como a própria kenosis. Desta forma a única conclusão lógica seria a idéia de que o sofrimento de Cristo pertenceu propriamente à sua natureza divina, desta maneira imputando mudança a Deus.

Dorner acreditou que a verdadeira síntese, a melhor resposta para as questões cristológicas existentes no século XIX, era uma doutrina do desenvolvimento ou crescimento da unidade entre o Logos e a pessoa humana de Jesus. O desenvolvimento da cristologia foi visto por Dorner como uma dialética entre a dualidade das naturezas e a unidade da pessoa de Cristo. Esta dualidade seria transcendida finalmente, por meio de uma síntese que fizesse justiça ao divino e ao humano na sua união em Cristo. Para Dorner, com seu posicionamento evidentemente hegeliano, a confusão dos sistemas filosóficos que influenciaram a cristologia no século XIX, indica somente uma fase de transição na produção de uma nova convicção comum. Implícito na ênfase no desenvolvimento humano de Jesus e requisito necessário para a nova concepção de Dorner sobre a encarnação, estava a crença que Jesus era uma pessoa humana independente. A cristologia ortodoxa ensinou que não tinha havido nenhuma pessoa humana separada com que a Pessoa do Logos tenha entrado em união, mas que sempre houve uma só Pessoa do Logos, e que a natureza humana completa havia sido assumida em unidade com esta Pessoa sem ter existido à parte desta união. Dorner concebeu a idéia de um crescimento gradual da pessoa humana de Jesus no Logos de modo que a unidade teantrópica, e não somente a humanidade é algo crescente, que deve ser entendida como um processo constante em uma verdadeira e vital concepção da unidade, onde a encarnação não pode ser pensada como instantânea, mas sim como uma unidade progressiva, real e crescente. Dorner ensinou que Jesus havia sido gradualmente levado a uma unidade com o Logos, e intentou expressar esta concepção através dos eventos históricos da vida de Jesus. Ele não se deixou influenciar pela crítica histórica, neste ponto, que adotou um posicionamento radicalmente cético para com os evangelhos, pelo contrário, parecia estar plenamente seguro de que os evangelhos eram historicamente confiáveis. Dorner enfatizou o aspecto sobrenatural na origem do Deus-homem.

Com a morte, Cristo teve a sua obra completada, teve a perfeição de sua pessoa realizada. Por conseguinte, o nível mais profundo de sua humilhação externa está no princípio de sua morte, ou seja, a exaltação, que trouxe Jesus a um nível de perfeição em sua

vida interna. O ponto mais baixo para o seu corpo era ao mesmo tempo o ponto mais alto para sua alma, segundo afirmava Dorner. O fato de Cristo ter descido ao inferno faz parte de sua exaltação, significando para a pessoa de Cristo um estado de vida espiritual mais elevado, posição em que pode usufruir do seu poder espiritual livre do tempo e do espaço. Contrariamente a muitos dos seus contemporâneos, Dorner acreditava que Jesus havia subido dos mortos, que sua ressurreição física foi real e que possuía significado teológico. No entanto, não aceitou a ressurreição por meio do testemunho do relato dos autores do Novo Testamento, mas porque concluía ser necessária à exaltação plena do Deus-homem. O espírito dele havia sido glorificado ou transfigurado, a morte não poderia tirar parte do seu ser, seu corpo. A necessidade de ressurreição estava na sua perfeição interna, espiritual, que tinha alcançado em sua morte.

Esta ressurreição não era, para Dorner, um simples reviver que ainda havia deixado o corpo mortal. Na realidade o corpo não permaneceu físico, segundo Dorner. Jesus subiu ao céu em uma existência exaltada, e para ele a ressurreição e a ascensão foram eventos reais. Dizia que na ascensão de Cristo, ou exaltação absoluta, sua ressurreição encontrou a realização absoluta e como realidade plena a pessoa terrena de Jesus se transformou em perfeição espiritual. E conclui dizendo que o Deus-homem exaltado deixou para trás limites temporais e espaciais tornando-se o instrumento adequado ao Logos. A pessoa de Jesus Cristo, conforme a idéia de Dorner parece ser difusa ou dissolvida no Logos.

A cristologia de Dorner era uma tentativa seria de resolver o principal problema cristológico do século XIX: como relacionar e expressar o dogma das duas naturezas em uma única pessoa, Jesus Cristo, de modo inteligível à presente época sem contudo abrir mão das concepções cristológicas clássicas. Dorner tentou propor uma solução original, no entanto, sua proposta estava mais próxima do nestorianismo, pois separava Jesus Cristo em duas pessoas, uma pessoa humana e uma pessoa divina. Já depois da ressurreição, sua concepção assemelhava-se ao eutiquianismo que propunha uma só natureza. Por fim, podemos dizer que a tentativa de Dorner enquanto válida, parece não ter encontrado ponto pacífico em sua aceitação, tão pouco há acordo que ele tenha conseguido levar a efeito seu propósito inicial de síntese e de uma dialética convincente que explicasse a possibilidade de expressar o dogma cristológico segundo expresso pela Fórmula de Calcedônia em uma linguagem aceitável ao pensamento teológico alemão do século XIX.

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