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VI. Instrumentos hierárquicos:

1. Crime de resistência e coacção sobre funcionário Tipo objectivo de ilícito

1.2. O bem jurídico protegido

O tipo de ilícito em análise é, em conclusão do supra exposto, um crime de perigo5. Habitual é

a distinção entre perigo abstracto e concreto, ao que se vem juntar uma terceira via que são os crimes de perigo abstracto-concreto.

Para a qualificação como sendo um crime de dano ou de perigo é decisiva a análise do bem jurídico tutelado6.

Os crimes de perigo concreto são aqueles em que a norma inclui o perigo entre os seus elementos de facto típicos, exigindo que ele se verifique realmente para que o crime seja considerado consumado. Nos crimes de perigo abstracto, o perigo é já a motivação do legislador, um elemento extrínseco ao ilícito típico, que se antecipa e se quer evitar, logo, o agente só é punível se realizar efectivamente a actividade descrita na norma — “a qual

consiste num início do iter criminis que levará (ou levaria) previsivelmente (com base na experiência) à concretização do perigo e eventualmente da lesão (numa relação vertical, de causalidade)”. A produção do perigo não pertence em si mesma ao tipo de ilícito dos crimes de

perigo abstracto7.

Característico dos crimes de perigo abstracto-concreto8, patamar onde podemos situar o

crime de resistência e coacção, é que a demonstração da inexistência do perigo iminente determina o não preenchimento do tipo, ou seja, está em causa a susceptibilidade da conduta típica causar perigo, mas não é necessária a sua verificação para o preenchimento do tipo,

4 Assim, M. MIGUEZ GARCIA, in O Direito Penal Passo a Passo, Volume II., Almedina, p. 357.

5 Acompanhamos CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, que afasta a tese defendida por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE

de que estamos perante um crime de dano, uma vez que já se verifica uma lesão de um bem jurídico – cfr. Comentário ao Código Penal, 2.ª edição, Lisboa, UCE, 2010, p. 909.

6 Vide, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26.11.2008, Processo n.º 0815669; Acórdão do

Tribunal da Relação do Porto, de 22.02.06, Processo n.º 0515856, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

7 MIGUEZ GARCIA, op. cit., pp.175 a178.

8 Alinhando no mesmo diapasão, vide, MANUEL DE OLIVEIRA LEAL-HENRIQUES, MANUEL JOSÉ CARRILHO DE SIMAS

SANTOS, Código Penal Anotado, II Volume, p. 920.

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admitindo-se, porém, a elisão da previsão ou presunção do perigo, mostrando a inexistência do mesmo, ou, melhor, mostrando não ser, no caso, a conduta susceptível de o provocar. Sistematicamente, o artigo 347.º integra-se no Título V da Parte Especial do Código Penal. Dentro dos crimes de tal capítulo, o bem jurídico protegido dirige-se ou à autonomia intencional do funcionário9 (ex.: resistência e coacção sobre funcionário ou desobediência),

ou à autoridade pública do sistema estadual da justiça (ex.: tirada de presos; auxílio de funcionário à evasão; evasão, ou violação de imposições, proibições ou interdições), ou à autoridade das providências públicas (ex.: descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público). Em qualquer um dos tipos de ilícito elencados, o agente frusta as intenções estaduais manifestadas num acto jurídico-público individual e concreto que lhe é dirigido, fazendo prevalecer a sua vontade sobre legítimas imposições, proibições ou interdições emanadas da autoridade pública (administração ou tribunais) de que é destinatário10.

No essencial, é a protecção da autoridade, como valor, que terá sempre de ser efectivamente acautelado, sob pena de ser transformado em regra moral, sem qualquer coercibilidade. CRISTINA LÍBANO MONTEIRO refere que há dois modos diferentes de o Estado-Administração ver lesada ou posta em perigo a sua liberdade: logo no momento interno da formação das suas intenções ou, mais tarde, no momento externo da sua implantação no tecido social. A partir daqui, defende que «o bem jurídico é a autonomia intencional do Estado, protegido de ataques

vindos do exterior da Administração Pública». Com efeito, pretende-se evitar que não-

funcionários ponham entraves à livre execução das «instruções estaduais», tornando-as ineficazes11.

Sendo certo que caberá, em simultâneo, proteger a pessoa do funcionário incumbido de desempenhar determinada tarefa, a sua liberdade individual, essa protecção é tão só funcional ou reflexa. A liberdade do funcionário importa na estrita medida em que representa a liberdade do Estado. A outra dimensão – na privada, na que possui como pessoa e como cidadão – não encontra resguardo neste tipo legal. Por outras palavras: acautela-se a liberdade pública do funcionário, não a sua liberdade de acção privada12.

Quer dizer, o bem jurídico, quanto a nós, é supra individual, em primeira linha, mas reflexamente também protege a autonomia funcional do próprio funcionário, mas enquanto na veste de ente público13.

9 Para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “o bem jurídico protegido pela incriminação é a autonomia intencional do

funcionário (..), não se tutela apenas a autonomia intencional do Estado, uma vez que o conceito de funcionário inclui os gestores e trabalhadores das empresas privadas concessionárias de serviços públicos”, in op.cit., p. 909.

10 Assim, RUI PAULO SANTOS, publicado in Revista do Centro de Estudos Judiciários, II, 2017, p. 146. 11 In op. cit. pp. 337.

12 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.01.2007, relatado por Soreto de Barros, Processo n.º 06P4707,

disponível in www.dgsi.pt

13 Alinhando pelo mesmo diapasão, vide Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 22.02.06, processo n.º

0515856 e de 21.09.2005, processo n.º 0540048. Ao nível da doutrina vide LOPES DA MOTA, pp. 413 e 426 e Comentário Conimbricensee, p. 339.

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