• Nenhum resultado encontrado

IV. Hiperligações e referências bibliográficas I Introdução

3. Dados estatísticos

1.4. O tipo objectivo de ilícito

1.4.2. O direito de resistência por parte do cidadão

Na redacção do crime de “coacção sobre funcionário”, previsto no artigo 384.º do Código Penal de 1982, previa-se a tutela da oposição à prática de acto legítimo por parte do funcionário.

A alteração legislativa de 1995 veio suprimir esta menção a acto legítimo, considerando a redundância da redacção, porquanto apenas é merecedor de tutela penal o acto exercido dentro da esfera legal e funcional do funcionário, considerando que “há que partir sempre do princípio de que o acto de poder só pode ser imposto aos cidadãos quando se tratar de um acto naturalmente legítimo”, ou seja “quando respeita o princípio da legalidade - isto é, quando provém de autoridade competente para a sua prática, tem o conteúdo previsto na lei, e é publicitado pela forma legal.”.33

Ainda que assim não se entendesse, sempre seria de se considerar que qualquer norma vigente no ordenamento jurídico há que ser interpretada conforme à Constituição da República Portuguesa.

Nesse sentido, deverá atender-se ao disposto no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa que dispõe que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os

31 Neste sentido, CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, Comentário Conimbricense ao Código Penal (coord. Jorge de

Figueiredo Dias), Tomo III, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 341, referindo como exemplo que os Membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios.

32 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-01-2007, Processo n.º 06P1708, Relator SORETO DE BARROS. 33 MANUEL SIMAS SANTOS E MANUEL DE OLIVEIRA LEAL HENRIQUES, Código Penal Anotado, II Volume, 3.ª Edição,

Editora Rei dos Livros, 2000, p. 1495.

132

CRIME DE RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO

5. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”.

O exercício do direito de resistência visa assim o efectivo exercício do direito, liberdade e garantia ofendido, decorrente da aplicabilidade imediata dos direitos liberdades e garantias constitucionalmente previstos e implica a prática de actos necessários, orientados por critérios de racionalidade e de proporcionalidade34.

O direito de resistência previsto na Constituição é o corolário do princípio do Estado de Direito Democrático e do valor da defesa do sistema de direitos fundamentais, pese embora, conforme se verifica da leitura da última parte do artigo 21.º, a sua admissibilidade sustenta-se num critério de ultima ratio35.

Conforme mencionado por CRISTINA LÍBANO MONTEIRO36, podem ver-se discutidas duas

correntes extremas nesta matéria: a absoluta ou de obediência passiva, em que em caso algum se permitiria a insubordinação contra a autoridade; e a ultraliberal, que se traduziria na resistência a um mandado legal não apenas enquanto direito, mas essencialmente enquanto dever.

Não obstante, sempre seria de se admitir uma teoria moderada, ou mista, em que a resistência se tornaria legítima quando a ilegalidade do acto fosse evidente. Assim, e de acordo com esta teoria, defende NELSON HUNGRIA que “a resistência é legítima quando a ilegalidade do acto oficial é manifesta, evidente e flagrante. Se há dúvida sobre a ilegalidade, a abstenção de resistência é um rationale obsequium ao princípio da autoridade. Permitir-se a resistência ainda quando não seja líquida ou reconhecível prima facie a ilegalidade do acto, importaria um incentivo à indisciplina social”37.

Na verdade, vislumbra-se necessário realizar um juízo de valor cauteloso na apreciação da legitimidade do exercício do direito de resistência por parte do cidadão.

O direito constitucional do cidadão à resistência, com a prática dos actos que integram os elementos típicos do crime de resistência e coacção sobre funcionário, encontra-se directamente ligado com o bem jurídico protegido pela incriminação, porquanto, visando-se proteger a autonomia intencional do Estado, pressupõe-se que o agente da autoridade ou o funcionário actue de acordo com a intenção estadual que lhe cumpre levar a cabo, pelo que se a sua conduta é notoriamente ilegítima, não se está a cumprir a função do Estado e o bem jurídico protegido não é atingido.

Deste modo, é possível questionar qual a consequência jurídica que se extrai perante o exercício legítimo do direito de resistência por parte do cidadão. A questão tem sido tratada pela doutrina e pela jurisprudência em dois sentidos distintos.

34 Neste sentido veja-se JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 4.ª

Edição, Lisboa, Coimbra Editora, p. 409.

35 Conforme apontado por VIEIRA DE ANDRADE “o direito de resistência só justifica o comportamento de um

particular que resista a «actos evidentemente inconstitucionais (nulos) das autoridades», devendo o particular fazer dele «uso prudente, quando esteja convencido, pela gravidade e evidência da ofensa, de que há violação do conteúdo essencial do seu direito fundamental, até porque o risco de erro corre por sua conta» (…) – Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 34/2012, de 24 de Janeiro de 2012” citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-05-2013, Processo n.º 509/10.8TAVNO.C1, Relator CORREIA PINTO.

36 CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, Comentário Conimbricense ao Código Penal (coord. Jorge de Figueiredo Dias),

Tomo III, Coimbra, Coimbra Editora, 1999.

37 Obra citada por MANUEL SIMAS SANTOS E MANUEL DE OLIVEIRA LEAL HENRIQUES, Código Penal Anotado, II

Volume, 3.ª Edição, Editora Rei dos Livros, 2000, p. 1495.

133

CRIME DE RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO

5. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

Por um lado, é entendido que a legitimidade do acto praticado pelo funcionário ou membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, constitui um elemento não escrito da factualidade típica3839, pelo que a ilegitimidade do acto não integra a factualidade típica do

crime de resistência e coacção sobre funcionário.

Por outro lado, é entendido que a ilegitimidade do acto praticado pelo funcionário ou membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, constitui um tipo justificador, entendendo-se que “sendo a resistência do arguido legítima e não se mostrando excessiva está excluída a ilicitude da sua conduta”40 ao abrigo do disposto no artigo 31.º, n.º 2, alínea b),

do Código Penal41.

Pese embora estas duas soluções, nenhuma das posições prescinde da existência de uma manifesta ilegitimidade do acto para a legitimação do exercício do direito de resistência, sob pena de, caso assim não se entendesse, perigar a tutela pretendida pelo legislador, esvaziando-se o conteúdo da norma incriminadora.

Em nosso entender, a eventual apreciação pelo intérprete de, se o agente actuou convicto da ilegitimidade (não notória) do acto, sempre poderá ser apreciada em sede de erro sobre a ilicitude, enquanto causa de exclusão ou de atenuação da culpa, consoante o erro seja ou não censurável (cfr. artigo 17.º do Código Penal), deixando-se a apreciação das teses acima referidas para os casos em que o acto praticado pelo funcionário seja manifestamente ilegítimo.