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CAPITULO 1 O PARADIGMA CIENTÍFICO DO DESENVOLVIMENTO

1.2 O conceito de desenvolvimento sustentável

1.2.3. l A essencialidade de segurança alimentar para o desenvolvimento

A segurança alimentar é um direito fundamental voltado à garantia de acesso ao adequado nível nutricional, conforme necessidades biológicas para satisfazer a pessoa humana e os índices almejados por uma cultura. Esse direito tem dois desdobramentos: quanto à disponibilidade em quantidade suficiente, e como variedade e qualidade adequadas.

O tema foi consagrado na Declaração Sobre Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948. A segurança alimentar enquanto acesso à alimentação suficiente é direito fundamental de segunda geração (igualdade); também é direito fundamental, mas de terceira geração (solidariedade), como garantia de acesso a alimentos saudáveis conforme as necessidades biológicas e culturais.

A fim de atender a esse direito fundamental reconhecido nas declarações internacionais de direitos humanos, o sistema alimentar deve atentar para os fatores que seguem: eqüidade na distribuição da produção; padrões de consumo sustentáveis; controle do crescimento populacional; auto-suficiência da comunidade local; interesses econômicos na produção e estipulação de preços; necessidade de conservação ambiental; e a questão qualidade.

Os catastróficos efeitos profetizados por Malthus não ocorreram, apesar do significativo aumento da população. Isso não significa que seja possível deixar de se preocupar com as potencialidades da produção e o acesso aos alimentos. Os neomalthusianos estão com razão ao alegarem que a atuação irresponsável do homem tem criado riscos à sustentabilidade.

Diversos fenômenos formam a questão da segurança alimentar, com destaque para a produtividade insuficiente, a dificuldade de geração de renda, o aumento da população, a carência de água e a desertificação. Também são causas da insegurança a deficiência no acesso à terra para produzir, as intempéries que afetam uma safra e a ausência de tecnologia adequada.

Tal segurança é vista em diferentes perspectivas. Para uma minoria da população mundial, a preocupação é com a qualidade (sanidade e valor nutricional), sendo mais importante o Direito do Consumidor. Porém, para a imensa maioria, o problema é a fome e a falta de renda.

Quanto à questão da qualidade e variedade dos alimentos, o ordenamento jurídico interno e as organizações mundiais do comércio adotam importantes medidas sanitárias, bem como fazem o controle de biotecnologias, para afastar os riscos, e promovem campanhas, a fim de melhorar a qualidade da produção. Também existem normas de defesa do consumidor que ajudam a resolver eventuais problemas nessa seara.

No tocante ao acesso ao adequado nível nutricional, nem mesmo as declarações e ações contra a fome têm sido suficientes. A distribuição de alimentos segue as regras do mercado internacional, ou seja, a estipulação de preços conforme a demanda, a priorização dos mercados com maior poder aquisitivo e o controle da produção de excedentes.

Como resolver o problema da fome diante das regras de mercado, da busca desenfreada pelo lucro, das patentes, da dificuldade dos países pobres em desenvolverem ou usarem tecnologias (sem dinheiro para comprá-las ou o direito de explorá-las)? Não adianta o discurso do mercado livre para gerar acessos aos produtos de qualidade e preços baixos se grande parte da população não possui condições de adquiri-los.

A questão social não pode ser encarada apenas como problema de relações técnicas, especialmente a fome, que está diretamente relacionada aos baixos salários, ao desemprego, e à indisponibilidade de alimentos, em virtude da orientação da produção e da comercialização. A causa da fome não é a produção insuficiente, mas a má distribuição de renda e de oferta:

Subnutrição, fome crônica e fomes coletivas são influenciadas pelo funcionamento de toda a economia e de toda a sociedade – e não apenas pela produção de alimentos e atividades agrícolas. É crucial examinar adequadamente as interdependências econômicas e sociais que governam a incidência da fome no mundo contemporâneo. Os alimentos não são distribuídos na economia por meio de caridade ou de algum sistema de compartilhamento automático. O potencial para comprar alimentos tem de ser adquirido. É preciso que nos concentremos não na oferta total de alimentos na economia, mas no “intitulamento”18 que cada pessoa desfruta: as mercadorias sobre

18 Intitulamento é entendido aqui como uma espécie de patrimônio individual juridicamente garantido - o

as quais ela pode estabelecer sua posse e das quais ela pode dispor. As pessoas passam fome quando não conseguem estabelecer seu intitulamento sobre uma quantidade adequada de alimentos (SEN, 2005, p. 190, grifos do autor).

O aumento da produção pode, sim, facilitar distribuição, desde que haja aumento de renda da população e queda dos preços dos alimentos. Um dia, talvez, o mundo seja obrigado a reconhecer que a concentração mundial da renda é tão irracional quanto a escravidão.

1.2.3.2 A questão da igualdade de oportunidades reais

A igualdade foi concebida principalmente sobre três aspectos: a igualdade de oportunidades; a satisfação das necessidades fundamentais; e a concessão, a cada um, de acordo com a sua capacidade para fazer algo estabelecido como valioso (mérito). É muito difícil conseguir atingir um mesmo ponto de partida e condições iguais no percurso, porque os homens são desiguais e todo o processo de formação da personalidade humana cria diferentes situações para a disputa. Ademais, não é correto premiar o mérito quando as condições para que uma pessoa obtenha maior sucesso que a outra não são as mesmas. Faz-se necessário combinar os três critérios de justiça como igualdade: garantir oportunidades iguais, atender necessidades fundamentais, e valorizar o mérito e a persistência.

Um dos maiores problemas relativos à igualdade é como reduzir as desigualdades. O homem vive e convive com uma vasta diversidade, tanto por questões naturais (como sexo, idade e físico), quanto por questões sociais, culturais, religiosas ou econômicas. Legitimar a desigualdade sempre foi um tema relevante para os defensores e os críticos do capitalismo. Ninguém mais pode defender que os homens são todos iguais, ou que devem ser tratados de maneira absolutamente igual. As desigualdades humanas físicas (fruto da natureza) ou políticas (resultado de convenções e privilégios) exigem um tratamento diferenciado das pessoas.

Tratar as pessoas de forma desigual não pode significar dar privilégios em virtude de uma melhor posição social ou estética. Pelo contrário, o objetivo é atender às necessidades da coletividade. Nesse sentido, John Rawls (1981, p. 196) entende que qualquer decisão política no intuito de estabelecer limites ao agir humano, sobretudo se for de forma desigual, somente se legitima quando procura o bem-estar de todas as pessoas vinculadas aos processos decisórios. Para tanto, é preciso respeitar outros fundamentos de um contrato social racional, tais sejam: a igualdade de oportunidade para todos e uma liberdade igual e completa do ponto de vista social.

A fim de atender a essa perspectiva, John Rawls, na sua obra clássica “Uma Teoria da Justiça”, destaca dois princípios fundamentais para uma sociedade que pretenda desenvolver a justiça enquanto eqüidade: o princípio da liberdade e o princípio da diferença.

Segundo Rawls (1981, p. 196), pelo primeiro princípio, cada pessoa deveria possuir igual direito ao sistema mais extensivo de liberdades individuais básicas; porém, compatível com um similar sistema de liberdade para todos. A total liberdade individual somente poderia ser limitada, a fim de proporcionar a liberdade igual de todos. Quando for necessário que só uma parcela da população tenha sua liberdade diminuída em benefício da comunidade, os cidadãos prejudicados em sua liberdade individual precisam também aceitar racionalmente a limitação estipulada no contrato social original e serem recompensados por isso.

No tocante ao segundo princípio, referente à isonomia, John Rawls (1981, p. 282) afirma que: a) as desigualdades sociais e econômicas precisam ser ajustadas de maneira a resultar em benefícios para os menos privilegiados; b) as posições privilegiadas estarão abertas a todos, em condições de eqüidade e igualdade de oportunidades. Dessa forma, o encargo suportado por uma parcela dos cidadãos será democraticamente determinado e em satisfação a todos, sobretudo dos menos privilegiados, que, de alguma forma, devem ser

recompensados19.

Esses princípios formam a concepção de justiça como eqüidade e deverão ser aceitos

pelas pessoas “contratantes” no momento do pacto social original20, estando elas numa

posição de igual ignorância quanto às vantagens pessoais e os indivíduos que suportarão os encargos em benefício da coletividade (RAWLS, 1981, p. 121). Na posição original, as pessoas se encontrariam em uma hipotética igualdade primordial, onde, sob o véu da

ignorância21, serão escolhidos os princípios justos.

Apesar da legitimidade da desigualdade, cada pessoa teria garantido o igual e indispensável acesso a um mínimo de vantagens que, para o autor, seriam os bens primários;

19 Os dois princípios nas palavras do autor: “1. Cada pessoa tem igual direito a um esquema plenamente

adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com um esquema similar de liberdades para todos. 2. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições. Em primeiro lugar, devem estar associadas a cargos e posições abertos a todos sob condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo, devem ser para o maior benefício dos membros da sociedade que têm menos vantagens.” (RAWLS, 1987, p. 5 apud SEN, 2001, p.129).

20 O contrato original é indispensável para a harmonia social e a justa distribuição dos bens, mas, para ser

eqüitativo, precisa ponderar alguns pressupostos: a) há escassez moderada de recursos em relação à demanda, cuja conseqüência é uma situação de conflitos entre os interesses e as possibilidades; b) existe pluralismo das formas de vida (diversidades); e c) todos os indivíduos são racionais e razoáveis.

21

As pessoas (representantes) que realizarão o pacto social não conhecem seus interesses (véu da ignorância quanto a suas concepções de bem); assim sendo, as decisões são racionais e razoáveis para a estabilidade social.

isto é, os bens que qualquer pessoa racionalmente quer atingir no intuito de garantir a igualdade de oportunidades.

Segundo Amartya Sen (2005, p. 86), definir Justiça é definir critérios para avaliá-la, os quais permitirão ponderar os princípios e solucionar os casos concretos. Assim, critica Rawls por ele ter adotado uma idéia de liberdade igual demasiadamente formal e, ainda, em virtude de o princípio da diferença não atender as liberdades substantivas, porquanto a maximização das vantagens para os que estão em piores condições pode afetar as vantagens do todo.

Ainda no tocante à questão da igualdade, seguindo Amartya Sen, dois pontos devem ser observados: a) por que se pretende uma igualdade (fundamento); e b) qual o tipo de igualdade desejada, ou melhor, quais os seus critérios materiais e históricos e como medir a relação desses critérios tendo em vista o acesso aos bens essenciais.

A própria justificativa ou fundamento da igualdade depende da definição do tipo de igualdade buscada. Até porque, dependendo do critério adotado, poder-se-á criar outras desigualdades justificadas. Isso é muito comum nas políticas afirmativas, nas quais se viola a isonomia (no sentido formal) para beneficiar pessoas cuja desigualdade deve ser combatida.

A definição dos critérios que constituem a concepção de igualdade desejada é uma questão de momentos e espaços nos quais se vai eleger uma igualdade fundamental, a fim de legitimar a existência (resultado) de outras desigualdades (SEN, 2001, p. 52). A importância da definição dos critérios, com a escolha dos valores desejados, precede a determinação do conteúdo e da instrumentalização para exigir e promover a igualdade eleita.

Há diversidade de critérios para avaliar a igualdade pretendida: renda, felicidade, liberdade, direitos, recursos, bens primários, qualidade de vida, entre outros. Segundo A. Sen, esses critérios são meios para criar capacidades, mas não significam, por si, liberdades iguais, muitos menos oportunidades iguais. A conversão de renda ou bens primários em bem-estar está relacionada, ainda, às diferenças pessoais e sociais de cada um (desejos, estado físico e psíquico), que podem resultar em variações interpessoais substanciais na conversão de recursos e bens-primários em realizações objetivas. Conforme Sen (2001, p. 65), há uma tensão, ao mesmo tempo em que a conversão dos bens primários em igualdade de oportunidades é o argumento para justificar a igualdade radical daqueles (o acesso universal); de outro lado, as oportunidades também dependem do acesso aos bens primários.

Rawls teve méritos ao defender a satisfação igual dos bens primários, os quais abrangeriam necessidades sociais vitais, oportunidades, renda e direitos. Não obstante, o autor ficou preso aos bens primários, sem considerar a capacidade de converter tais bens em

liberdades substantivas. Amartya (2001, p. 226) prefere como critério de igualdade real de oportunidades as liberdades substantivas, ou seja, a capacidade de acesso aos bens desejados.

A concepção central de igualdade depende da efetivação dos valores segundo as possibilidades e as necessidades reais. Só haverá realmente igualdade de oportunidades quando houver liberdades substantivas.

Amartya definiu as liberdades substantivas como critérios de Justiça. Essa posição é digna de ser adotada pelos juristas. Considerar Justiça apenas a partir dos aspectos jurídicos formais diz muito pouco, sobretudo para quem não tem acesso real aos mecanismos de realização da dignidade humana. Ainda assim, é difícil aceitar que há pesos bem delineados para os critérios da Justiça. O mais importante é tentar identificar e combater as fontes extremadas de privação das liberdades substantivas.

Definidos os critérios de igualdade, o outro desafio é como realizá-los. Sem dúvida, dar conteúdo para a igualdade de oportunidade é fundamental para a sua materialização. Além disso, quanto mais houver igualdade, maior será o potencial de o crescimento econômico reduzir a pobreza e gerar desenvolvimento; do contrário, o crescimento vai gerar mais concentração.