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Legal, mas nem tanto

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 55-58)

No regime republicano pós-1889, a homossexualidade per se não era ilegal. Esse já não era o caso no Brasil colonial, quando as leis por- tuguesas definiam a sodomia como a penetração anal de um homem ou uma mulher. Quando dois homens estavam envolvidos, o Ofício da Sagrada Inquisição que se instalou em Portugal em 1553, assim como o código penal português consideravam tanto o penetrador quanto o receptor como sodomitas. Uma pessoa culpada por essa ofensa era condenada à fogueira e podia ter suas propriedades confiscadas.14 En-

tre 1587 e 1794, a Inquisição portuguesa registrou 4.419 denúncias. Estas incluíam tanto os suspeitos de terem praticado sodomia quanto os que forneciam confissões atestando o fato de terem cometido o “pecado abominável e pervertido”. Do total, 394 foram a julgamento,

Os prazeres nos parques do Rio de Janeiro...

dos quais trinta acabaram sendo queimados: três no século XVI e 27 no século XVII. Os que não recebiam a pena de morte podiam ser con- denados a trabalhos forçados nos navios de guerra do rei ou ao exílio temporário ou perpétuo na África, Índia ou no Brasil. Em geral, essas duras punições eram decretadas após o condenado já ter tido suas propriedades confiscadas e sido brutalmente chicoteado em público.15

Em 1830, oito anos após a Independência, D. Pedro I promulgou o Código Penal Imperial. Entre outras provisões, a nova lei eliminava toda e qualquer referência à sodomia. A legislação fora influenciada pelas ideias de Jeremy Bentham, pelo Código Penal francês de 1791, pelo Código Napolitano de 1819 e pelo Código Napoleônico de 1810, que descriminaram as relações sexuais entre maiores de idade.16 En-

tretanto, o Artigo 280 do Código brasileiro punia atos públicos de in- decência com dez a quarenta dias de prisão e uma multa correspon- FIGURA 1 — Praça Tiradentes, popularmente conhecida como Largo do Rossio, c. 1900. O paisa- gismo e os bancos ofereciam múltiplas oportunidades para homens encontrarem outros ho- mens com propósitos sexuais e românticos num dos mais antigos pontos de interação do Rio de Janeiro. Foto: Marco Antônio Belandi, cortesia do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

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dente à metade do tempo de reclusão.17 Essa provisão deu margem

para que a polícia pudesse determinar o que constituía um ato de in- decência. Deu-lhe também o poder de extorquir dinheiro daqueles ameaçados de detenção ou reclusão.18

O governo republicano de 1889 aprovou um novo Código Penal, em 1890, que mantinha a descriminação da sodomia. Embora não pu- nindo explicitamente as atividades eróticas entre pessoas do mesmo sexo, a nova lei buscava controlar tais condutas por meios indiretos e restringia o comportamento homossexual de quatro maneiras distin- tas. O Artigo 266 referia-se a “attentar contra o pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por meio de violencia ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral” e a punição era “de prisão cellular por um a seis annos”.19 Esse artigo foi em geral apli-

cado em casos envolvendo relações sexuais entre adultos e menores, incluindo homens adultos com meninos.20

Adultos que praticassem atividades sexuais com outros adultos, em lugares públicos, podiam ser acusados com base no Artigo 282, “Atentado Público ao Pudor”. O crime era descrito como “Offender os bons costumes, com exhibições impudicas, actos ou gestos obscenos, attentatorios do pudor, praticados em lugar publico ou frequentado pelo publico, e que, sem offensa á honestidade individual de pessoa, ultrajam e escandalizam a sociedade”.21 Para esse delito, a sentença

prevista era a prisão de um a seis meses. Essa provisão, um item im- portado e revisto do Código Penal imperial de 1830, fornecia a base legal para controlar qualquer manifestação pública de comportamen- to homoerótico ou homossexual. Com uma redação abrangente, a po- lícia ou um juiz tinha ampla liberdade para definir e punir, como ato impróprio ou indecente, comportamentos que não se adequassem às construções heterocêntricas.

O Artigo 379, “Do Uso de Nome Supposto, Títulos Indevidos e Outros Disfarces”, tornou o travestismo ilegal ao proibir “disfarçar o sexo, tomando trajos improprios de o seu e trazê-lo publicamente para enganar”.22 A lei previa uma pena de quinze a sessenta dias de prisão.

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val, no resto do ano ela podia usar essa prerrogativa legal para prender homossexuais que tinham o hábito de usar roupas do sexo oposto.23

O quarto método para regular as manifestações públicas de ho- mossexualidade era prender uma pessoa por vadiagem. O Artigo 399 do Código Penal de 1890 definia a vadiagem como “deixar de exerci- tar profissão, officio, ou qualquer mistér em que ganhe a vida, não possuindo meio de subsistencia e domicilio certo em que habite; pro- ver á subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou mani- festamente offensiva da moral e dos bons costumes”.24 Uma pena de

quinze a trinta dias de encarceramento podia ser imposta a qualquer um que fosse detido sem carteira de trabalho ou que estivesse envol- vido em prostituição masculina. A pessoa também deveria encontrar emprego remunerado dentro de quinze dias após sua libertação.25

Juntas, essas quatro provisões impuseram restrições legais àqueles que se congregassem em espaços públicos no intuito de encontrar pessoas de seu mesmo sexo interessadas em relacionar-se eroticamen- te. As provisões deram à polícia o poder de encarcerar arbitrariamente homossexuais que mostrassem em público um comportamento efemi- nado, usassem cabelos longos, roupas femininas ou maquiagem, ga- nhassem a vida com a prostituição ou aproveitassem o abrigo dos ar- bustos nos parques para desfrutar de um contato sexual noturno. A sodomia havia sido descriminada no início do século XIX. Contudo, códigos penais com noções vagamente definidas de moralidade e de- cência pública, assim como provisões que limitavam o travestismo e controlavam rigidamente a vadiagem forneciam uma rede jurídica pronta para capturar aqueles que transgredissem as normas sexuais aprovadas socialmente. Embora a homossexualidade em si não fosse tecnicamente ilegal, a polícia brasileira e os tribunais dispunham de múltiplos mecanismos para conter e controlar esse comportamento.

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 55-58)