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Dar nomes e proferir nomes

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 143-147)

Em algum momento da década de 1920, ou mesmo antes, o ter- mo viado uniu-se aos epítetos puto e fresco, no linguajar popular, como outra palavra depreciativa para referir-se a homens efeminados que praticavam sexo com outros homens. O termo vem da palavra veado, mas talvez tenha adquirido outra pronúncia para distinguir o termo pejorativo de qualquer referência ao animal.34 Como o termo

viado se desenvolveu é um completo mistério. Uma teoria afirma que a expressão se originou no Rio em 1920, quando um comissário de polícia ordenou a prisão de todos os homens homossexuais que fos- sem encontrados num certo parque (algumas versões apontam a Pra- ça Tiradentes, outras a Praça da República, nas mesmas proximidades). Seu subordinado tentou executar a tarefa, mas voltou ao superior ad- mitindo o fracasso. Explicou que, quando os policiais tentavam pren- der os jovens, eles corriam como veados. Diz-se que o incidente foi amplamente divulgado pela imprensa e, assim, tornou-se um mito do folclore gay.35

Um exemplo do poder pejorativo do termo pode ser encontrado nos registros do Sanatório Pinel em São Paulo. Em 10 de agosto de 1937, a família de Bernardino de C. A., de 43 anos e funcionário públi- co da cidade de São Paulo, internou-o no sanatório porque ele estava tendo alucinações.36 Segundo o registro médico, Bernardino morava

sozinho, bebia muito e gostava de frequentar a zona de prostituição da cidade. Ele era tímido, mas com frequência apaixonava-se por jo- vens garotas, embora sempre a distância. Num certo ponto, enamo- rou-se de uma jovem prostituta que vivia com outro homem. Bernar-

Sexo e vida noturna, 1920-1945

dino estava tão apaixonado por ela que, aflito e bêbado, buscou o amante da mulher e, em lágrimas, confessou sua paixão pela prosti- tuta. Ele então inicia uma ligação sexual secreta com ela, mas não con- segue manter uma ereção e ter um orgasmo. A experiência o trauma- tiza e ele começa a questionar sua própria masculinidade. O médico que o examinou, e que registrou sua história duas semanas após Ber- nardino ter sido internado no hospício, relatou: “Começou a escutar vozes que da rua chegavam até seu quarto, e que distintamente o in- juriavam, gritando o nome de certo animal, símbolo dos invertidos”.

O animal, obviamente, era o veado. A ansiedade de Bernardino sobre a possibilidade de que ele fosse um homossexual e que toda a sociedade soubesse quase o levou à loucura. Sob a alegação de ouvir transeuntes chamando-o de viado, ele procurou os parentes para que fizessem uma reclamação à polícia, a seu favor, contra as “atitudes an- tissociais” dos pedestres em São Paulo. Alarmados com seu compor- tamento, eles o levaram a um médico, que recomendou sua hospita- lização. Diagnosticado com esquizofrenia, recolhido e deprimido, Bernardino permaneceu nesse hospital privado pouco menos de um mês. Quando recebeu alta, o médico responsável comentou em seu registro que, por causa de seu alcoolismo excessivo, os problemas mentais de Bernardino provavelmente retornariam.

Não há indicação de que o hospital tentasse dirigir a atenção para as ansiedades de Bernardino sobre sua sexualidade e masculinidade. Esse caso, contudo, revela os mecanismos psicológicos e sociais que imputavam a homossexualidade à impotência e ao mau desempenho sexual. O fato de ter sido chamado de viado desafiou a masculinidade de Bernardino, questionou o âmago de sua identidade e evocou um medo enlouquecedor da rejeição e da marginalidade. Talvez Bernar- dino tenha, de fato, reprimido desejos homoeróticos que o levaram a projetar suas próprias inseguranças em outros, tornando-os acusado- res do que ele próprio sentia. Isso jamais saberemos. Porém, indepen- dentemente de suas propensões e ansiedades, o temor de ser chamado de viado quase o levou à insanidade e revelou o poder que está por trás dessa expressão e de suas implicações para os homens brasileiros.

Além do carnaval

A palavra viado é tão pejorativa que às vezes símbolos alternati- vos eram usados para evitar o termo. Por exemplo, o jogo do bicho, que data do fim do século XIX, utiliza o número 24 como uma possi- bilidade de aposta. A cada número corresponde um animal, e o 24 é o veado. Portanto, para insinuar que uma pessoa é homossexual, po- dia-se chamar a pessoa de “vinte e quatro”. Esse valor numérico pos- sui tantas associações negativas que algumas pessoas preferiam usar a expressão “três vezes oito”, para evitar o número 24.37

Bicha, outro termo para homem efeminado que mantém relações

sexuais com outros homens, foi criado nos anos 30.38 Apesar dos seus

outros significados, incluindo o de parasita intestinal, ele permanece hoje em dia como a forma mais comum de referir-se pejorativamente a um gay. Assim como para a palavra viado, há versões controversas sobre suas origens como gíria escarnecedora.39 Um estudo de 1939 so-

bre as atividades sociais, costumes, hábitos, apelidos e gírias para ho- mossexuais na cidade de São Paulo, dirigido pelo Dr. Edmur de Aguiar Whitaker, incluiu uma lista de expressões vernaculares empregadas por homens jovens. Entre os códigos adotados havia três referências ao termo. Bicha foi definido como pederasta passivo. Bicha sucesso significava um pederasta passivo que levava uma boa vida. Bicha ba-

cana referia-se a um pederasta com uma boa conta bancária.40

Seria a palavra bicha, então, criada por esses próprios homens ou teria ela se originado fora de seu grupo social como um epíteto desig- nado para questionar a masculinidade e imputar a efeminação?41 Uma

explicação para a origem do termo como uma expressão endógena da subcultura homossexual é a de que ele seria uma adaptação espirituo- sa da palavra francesa biche, que significa corça, feminino de veado. Parece plausível que os homens que frequentavam essa subcultura es- tivessem simplesmente fazendo um trocadilho com a palavra viado, ao que adicionavam um toque de sofisticação com o uso do termo fran- cês. Além disso, biche era também usado na França como um termo afetuoso para uma jovem mulher.42 Portanto, os jovens homossexuais

podem ter criado um novo uso da palavra bicha, tanto como um jogo de palavras como para ironizar com a mordacidade do termo viado,

Sexo e vida noturna, 1920-1945

ao adotá-lo como uma expressão afetiva para se referir a outro homem efeminado.

Por outro lado, uma das 21 definições da palavra em português pode indicar a etimologia dessa expressão. Bicha significa também uma mulher irritada ou com raiva, e no Nordeste é também sinônimo para prostituta.43 Num mundo de homens e mulheres maquiados,

onde brincadeiras e provocações eram lugar-comum, é plausível que prostitutos efeminados costumassem referir-se aos seus amigos e co- legas como bichas (mulheres irritadas), quando o último estava — por diversão ou de fato — contrariado. Na verdade, os significados que acompanhavam a palavra francesa biche podem ter-se combinado com as definições locais mais explosivas, para criar uma gíria adorna- da com a sofisticação europeia.44 Seja qual for a sua verdadeira origem,

ambas as hipóteses ligam a expressão ao meio social do qual parece ter-se originado, ou seja, o submundo das prostitutas, cafetões, malan- dros e pequenos ladrões.

O emprego difundido da palavra bicha como um rótulo deprecia- tivo parece ter ocorrido apenas no início dos anos 60, quando come- çou a competir com viado como uma forma de insulto comum por parte de pessoas estranhas ao meio. Embora talvez jamais se possa descobrir a origem exata da expressão, a possibilidade de que a pala- vra bicha tenha se desenvolvido dentro do próprio mundo de homens efeminados e prostitutos nos anos 30 amplia sua potência simbólica. A viagem da expressão é reveladora. Gerado de dentro de uma sub- cultura, o termo foi mais tarde apropriado para desmerecer as mesmas pessoas que o criaram. Transmitido de um mundo colorido e semi- clandestino de homens e mulheres prostitutos para um universo mais amplo, ele retornou como instrumento de agressão, hostilidade e mar- ginalidade.

Tal como o uso anterior de fresco e puto, os termos viado e bicha também serviram para definir socialmente comportamentos sexuais masculinos adequados e inadequados. A imagem do bicha como um homossexual desmunhecado, efeminado tornou-se o elemento de contraste que confirmava a masculinidade do macho heterossexual

Além do carnaval

brasileiro. A transgressão, realizada pelo bicha, das demarcações de gênero e a ambiguidade de um comportamento feminino num corpo masculino também provocaram a ansiedade masculina e despertaram o medo de que o feminino no “outro” também pudesse estar nele pró- prio. Como veremos no decorrer desta obra, imagens do bicha, viado, pederasta e homossexual tornaram-se elementos fundamentais para es- truturar as definições culturais da masculinidade e do gênero no Brasil.

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 143-147)