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Parques e “pederastas” em São Paulo

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 157-163)

Como o Rio de Janeiro, a cidade de São Paulo também experi- mentou mudanças fundamentais nas três primeiras décadas do século XX. Em 1880, São Paulo ainda era uma cidade provinciana mas, na vi-

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rada do século, o Estado já produzia mais de 65% do café nacional e atraía centenas de milhares de imigrantes europeus, que vieram tra- balhar nas fazendas de café.71 Muitos desses trabalhadores foram ra-

pidamente atraídos para a cidade de São Paulo, que se tornou uma metrópole agitada, de múltiplas nacionalidades. Um viajante alemão, escrevendo sobre a diversidade étnica da cidade na primeira década do século XX, comentou: “São Paulo não é uma cidade brasileira de 450 mil habitantes, mas uma cidade italiana de aproximadamente cem mil, uma portuguesa de talvez quarenta mil, uma espanhola de igual tamanho e uma cidade pequena alemã de mais ou menos dez mil ha- bitantes, com poucas de suas vantagens, mas muitas de suas desvan- tagens. Ainda há uns cinco mil sírios, que, sozinhos, possuem três jor- nais, impressos em caracteres arábicos, alguns mil franceses, russos, japoneses, poloneses, turcos, ainda ingleses, escandinavos, america- nos em número desconhecido por falta de uma estatística fidedigna. O resto, provavelmente um terço do total, deve ser de brasileiros”.72

Assim como o Rio, São Paulo também atraiu centenas de milhares de migrantes do interior do estado e do Nordeste empobrecido. Por vol- ta da década de 1930, a cidade já se tornara o maior centro industrial da nação.73

Esse rápido crescimento demográfico provocou uma equivalente expansão física da cidade. Na virada do século, o centro da cidade localizava-se numa área triangular num promontório, circundado por vales estreitos e dois pequenos leitos de rio. Os edifícios governamen- tais, as escolas de direito, bancos, estabelecimentos comerciais, pe- quenas oficinas e escritórios amontoavam-se nesse centro histórico. Em 1892, a cidade construiu uma ponte de cem metros, o Viaduto do Chá, que transpôs um desses desfiladeiros, o Vale do Anhangabaú, e permitiu o acesso aos bondes, carruagens e pedestres da periferia da cidade, em expansão, até o centro.74 O viaduto também favoreceu a

criação de um novo distrito comercial e residencial, onde a elite pau- lista construiu casas elegantes e erigiu o Teatro Municipal, no estilo da

belle époque, inaugurado em 1911. Esse elegante edifício tornou-se o

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Os urbanistas passaram então a dedicar-se ao melhoramento do Vale do Anhangabaú. Eles queriam integrar o vale aos projetos globais de renovação urbana. Em maio de 1911, Joseph Antoine Bouvard, di- retor honorário dos serviços arquitetônicos, urbanos e de circulação de Paris, submeteu um relatório aos dirigentes da cidade de São Pau- lo, apresentando sua visão do novo espaço urbano: “Em todas estas disposições cumpre não esquecer a conservação e criação de espaços livres, de centros de vegetação e reservatórios de ar. Mais a população aumentará, maior será de construção, mais alto subirão os edifícios, maior se imporá a urgência de espaços livres, de praças públicas, de

squares, de jardins, de parques”.75 O Vale do Anhangabaú transfor-

mou-se no que, durante um tempo, foi chamado de Central Park do Brasil, uma comparação ultraentusiástica, uma vez que o parque pau- lista era significativamente menor que o de Nova York. Contudo, os extensos passeios e espaços abertos do parque, dotados de árvores, MAPA 3 — São Paulo, 1930.

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arbustos e bancos, realmente ofereciam uma ampla área ajardinada anexa ao Teatro Municipal (Figura 7).

Essa área logo tornou-se um ponto de encontro para homens in- teressados em atividades homoeróticas. O parque localizava-se a uma pequena distância de hotéis baratos e quartos para aluguel e, nos anos 30, próximo de numerosos cinemas que também serviam como espa- ços semipúblicos para atividades homossexuais. Bordéis, pensões e edifícios de apartamentos para aluguel espalhavam-se nas áreas aco- modadas entre o centro histórico e o novo centro, e os bairros resi- denciais que se distribuíam ao redor do centro. O Largo do Paissandu, nas proximidades, atraía um público boêmio muito semelhante ao da Lapa, no Rio de Janeiro.76 As atividades adequadas e as inadequadas

socialmente, a respeitabilidade burguesa e a homossociabilidade eró- tica coexistiam de forma precária nessa paisagem urbana.

Outra área de interações homoeróticas em São Paulo era a Avenida São João. A avenida se estendia desde o centro histórico e o Parque do FIGURA 7 — O Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, era um local favorito para aven-

turas e socialização homoerótica nos anos 20 e 30. Foto: cortesia do Arquivo do Estado de São Paulo.

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Anhangabaú, passando por um centro comercial, até os bairros resi- denciais. Em meados da década de 1930, os empresários começaram a construir uma série de cinemas luxuosos ao longo da avenida, nas pro- ximidades do centro. Em 1945, a Avenida São João era conhecida como a Cinelândia paulistana, com seis das dez salas de cinema mais destaca- das da cidade, em vários pontos da movimentada via pública.77 Direta-

mente contígua a essa área de entretenimento, havia uma “zona de tran- sição” entre o centro da cidade e os bairros residenciais nas adjacências.78

Em 1935, em um estudo econômico e social sobre a utilização da Avenida São João, Lucília Herrmann descreveu a região: “É uma área de grande mobilidade material, locomoção, mudança de residências, viagens. Os indivíduos desta área não se sentem presos a ela por la- ços econômicos (propriedade de imóveis, emprego fixo etc.). Apenas as meretrizes, poderíamos dizer, encontram aí afinidade e centro pro- fissional. Mas essas não possuem a mesma liberdade de escolha dos outros grupos sociais. Constantemente controladas pela polícia de cos- tumes, são frequentemente obrigadas a se mudarem para outras zonas, impostas pelas autoridades. Não possuem também laços sociais (famí- lia, parentela, relações sociais e vizinhança, respeito humano, associa- ções etc.) assim, se sentem mais independentes para se afastarem e mudarem”. Embora Herrmann possa ter subestimado a coesão social e a solidariedade das prostitutas da área, ela apontou uma interessan- te conexão entre a mobilidade e a tolerância social. Notando que o distrito continha um mosaico de religiões, culturas, ideias políticas, nacionalidades, cores e raças, Herrmann afirmou que essa diversida- de, combinada com uma disposição para a mobilidade, criava uma “propensão mental para uma rápida aceitação da inovação e um mí- nimo de fixação dos tabus, convenções e códigos morais comuns”.79

Essa deve ser uma das razões pelas quais os jovens homossexuais gra- vitavam nessa área. As prostitutas, estigmatizadas e marginalizadas pela cultura e moralidade da burguesia paulista, iriam logicamente identi- ficar-se com os bichas, ou ao menos demonstrar menor hostilidade em relação a eles, que também enfrentavam o preconceito social e a con- dição de viver como párias.

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O mapeamento da topografia sexual dessa área é, de certa forma, problemático. Segundo a análise feita por Herrmann do censo estatísti- co para a região em torno da Avenida São João, 32% da população eram estrangeiros, 52% homens, 72% adultos solteiros e apenas 6% dos resi- dentes eram crianças.80 Obviamente, nem todos os homens solteiros

eram homossexuais nem todas as mulheres solteiras, prostitutas, mas o pequeno número de crianças e a alta porcentagem de adultos solteiros é coerente com o estudo de 1938, realizado pela equipe de estudantes do Instituto de Criminologia do Estado de São Paulo, que examinou os “costumes, hábitos, apelidos e gírias” dos homossexuais em São Pau- lo. A maioria dos homossexuais entrevistados vivia nessa área. “Gilda de Abreu”, Zazá e “Tabu”, todos alugavam quartos modestos no mesmo edifício na Rua Vitória. Gilda e Zazá moravam sós, enquanto Tabu di- vidia o quarto com um amigo, “Preferida”. Gilda também alugava um quarto subindo a rua, onde levava seus clientes para o sexo. “Damé”, um alfaiate, ocupava um apartamento mais confortável nas proximida- des. Ele fazia roupas exclusivamente para prostitutas e também sublo- cava quartos mobiliados no seu apartamento para prostitutas de rua.81

A Avenida São João e o Parque do Anhangabaú não eram os úni- cos espaços públicos no centro de São Paulo, nos anos 30, onde os homossexuais se reuniam. Outro ponto era a elegante Praça da Repú- blica, próxima dos bordéis e também da área comercial burguesa ao longo da Rua Barão de Itapetininga.82 Do outro lado do centro histó-

rico, o parque conhecido como Jardim da Luz, bem como o banheiro público da contígua Estação da Luz também atraíam um movimentado tráfego de homens buscando contatos sexuais com outros homens.83

Entre a multidão de passageiros chegando e partindo, alguns deles po- diam desviar-se para dentro do parque do outro lado da rua, de fren- te para a estação, sem atrair muito a atenção da polícia. Os toaletes da estação ferroviária de São Paulo, assim como os da Estação Central do Rio de Janeiro constituíam um ambiente um tanto perigoso, e no en- tanto promissor, para identificar outros homens interessados em sexo. Demorar-se nos mictórios, tocando ou estimulando os próprios geni- tais, e transmitir aos outros sinais de interesse e disponibilidade torna-

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ram-se meios rápidos e anônimos para atrair potenciais parceiros se- xuais. Os banheiros públicos ofereciam um acesso fácil a um grande número de homens, num espaço relativamente privado, para contatos sexuais rápidos.84 Os homens que não se identificavam como ho-

mossexuais e que ainda assim apreciavam atividades homoeróticas podiam encontrar parceiros interessados nesses locais.85 Os hotéis ba-

ratos e bordéis ao redor da estação forneciam, então, maior privacida- de para que desfrutassem desses desejos mútuos.

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