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Sexo e marinheiros

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 72-77)

O texto pornográfico e as expressões do humor popular anterior- mente descritas enfatizavam e promulgavam os estereótipos dos fres- cos como homens bem-vestidos, efeminados, que se prostituíam para satisfazer seus impulsos sexuais. Nem todas as imagens literárias, po- rém, reproduzem esse clichê. Em 1895, Adolfo Caminha, um jovem autor, escrevia seu segundo romance, Bom-Crioulo, que apresentava uma visão alternativa do erotismo entre indivíduos do sexo masculino no Brasil.54 Sem empregar o termo, Caminha conta a história de um

Além do carnaval

fanchono e seu amor por um garoto pubescente. O romance retrata a vida de Amaro, um escravo fugitivo afro-brasileiro que buscou refúgio trabalhando num navio da marinha brasileira. Quando está no mar, o alto e musculoso Amaro conhece Aleixo, um jovem e delicado grume- te, de pele clara e olhos azuis, por quem se apaixona. Quando em ter- ra novamente, Amaro leva o menino para viver num quarto alugado no Rio de Janeiro, onde iniciam um relacionamento sexual livre e desini- bido. A história de amor, porém, termina em tragédia. Carolina, a se- nhoria e possivelmente uma ex-prostituta, seduz Aleixo enquanto Ama- ro está no mar. Num acesso de ódio passional, Amaro mata Aleixo por tê-lo traído. Esse romance raro do fim do século XIX, da escola literá- ria naturalista, é uma das primeiras obras com tema explicitamente ho- mossexual na literatura latino-americana.55 Além disso, é notável como

Caminha descreve o homoerotismo com uma ousada franqueza.

Bom-Crioulo é um romance complexo que envolve múltiplas no-

ções de raça e de sexualidade no Brasil da virada de século.56 O pró-

prio título faz alusão às qualidades afáveis do protagonista, reforçando os estereótipos pejorativos associados aos afro-brasileiros na época.57

Mas, apesar dos sentimentos racistas que salpicam por toda a obra, o retrato feito pelo autor é, em última análise, simpático. Amaro, prisio- neiro de suas inclinações sexuais e de sua paixão, é um herói nobre e trágico.

O próprio Adolfo Caminha teve uma vida curta e trágica. Nascido no Estado do Ceará em 1867, ficou órfão ainda novo e foi levado ao Rio de Janeiro por um tio, que o matriculou na Escola Naval. Voltou à sua cidade natal em 1887, como segundo-tenente, e passou a fre- quentar as rodas intelectuais e políticas do Ceará. Também embarcou num ardente caso amoroso com a mulher de um oficial do Exército. O escândalo resultante levou ao seu afastamento da Marinha. Em 1892, voltou ao Rio com sua amante e passou a trabalhar como um escriturário de nível inferior para manter sua carreira literária. Em 1º de janeiro de 1897, morreu de tuberculose, com 29 anos.58

Quando Caminha escreveu Bom-Crioulo, haviam transcorrido ape- nas sete anos desde que fora abolida a escravidão no Brasil, em 1888,

Os prazeres nos parques do Rio de Janeiro...

e seis desde que os líderes militares depuseram a monarquia e esta- beleceram um governo republicano.59 O romance é ambientado em

alto-mar e também no Rio de Janeiro, num ano indeterminado, talvez por volta de 1870, quando o imperador Pedro II ainda reinava sobre o país-continente. De fato, espaço e movimento são duas metáforas importantes empregadas pelo autor. Amaro, o fugitivo, desloca-se da servidão rural para o mar aberto, onde alcança sua liberdade reverten- do o caminho de seus ancestrais escravos. Como marinheiro, ele é su- jeito ao trabalho pesado e ao castigo brutal do chicote, e ainda assim sente o gosto da liberdade. Lá, no navio, ele encontra também sua li- berdade sexual, descobrindo seus próprios desejos pelo inocente Alei- xo. Embora a relação dos dois seja consumada em alto-mar, eles criam um ninho de amor no Rio de Janeiro num quarto alugado na Rua da Misericórdia, próxima ao porto da cidade. Pouco antes de chegar à capital imperial, Amaro adverte seu amante sobre os perigos do Rio:

Mas, olhe, você não queira negócio com outra pessoa, disse Bom- -Crioulo. O Rio de Janeiro é uma terra dos diabos … Se eu o encontrar com alguém, já sabe.

O rapazinho mordia distraidamente a ponta do lenço de chita azul- -escuro com pintinhas brancas, ouvindo as promessas do outro, sonhan- do uma vida cor-de-rosa lá nesse Rio de Janeiro tão falado, onde havia uma grande montanha chamada Pão d’Açúcar e onde o imperador tinha o seu palácio, um casarão bonito com paredes de ouro…

Tudo avultava desmesuradamente em sua imaginação de marinhei- ro de primeira viagem. Bom-Crioulo tinha prometido levá-lo aos teatros, ao Corcovado (outra montanha donde se avistava a cidade inteira e o mar…), à Tijuca, ao Passeio Público, a toda parte. Haviam de morar jun- tos, num quarto da Rua da Misericórdia, num comodozinho de quinze mil-réis onde coubessem duas camas de ferro, ou mesmo só uma, larga, espaçosa … Ele, Bom-Crioulo, pagava tudo com o seu soldo. Podia-se viver uma vida tranquila.60

O Rio de Janeiro oferecia a ambos o anonimato e um espaço dis- tante dos intrometidos companheiros de bordo, onde podiam se en- tregar ao seu apaixonado relacionamento sem ser incomodados. Ama-

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ro, um experiente marinheiro, também podia ensinar ao jovem como sobreviver na cidade. Os aspectos do conflito de gerações no relacio- namento entre Amaro e Aleixo parecem espelhar as noções do para- digma grego da homossexualidade — ao qual Caminha se refere em inúmeras ocasiões no texto — em que homens mais velhos seduzem garotos de pele tenra para obter prazeres sexuais, ao mesmo tempo que lhes oferecem uma orientação paternal para enfrentarem o mun- do. Na verdade, isso não difere muito das relações descritas em O me-

nino do Gouveia. Os avisos de Amaro sobre os perigos do Rio também

refletem seu próprio medo de que algum homem mais abastado se- duza seu grumete loiro e o leve para longe dele. Seu refúgio alugado torna-se o único lugar no Rio em que podem divertir-se juntos. Ironi- camente, é nesse mesmo local, que Amaro acredita estar protegido contra a crueldade da cidade, que sua amiga Carolina rouba seu amor, provocando assim a ruína de Amaro.

Por vários motivos, Amaro não se enquadra no estereótipo do ho- mem efeminado tal como era reproduzido por chargistas e médicos brasileiros na virada do século. O Bom-Crioulo é uma figura forte, vi- ril, cuja masculinidade não é questionada. Como o parceiro penetra- dor na relação de sexo anal com o jovem Aleixo, Amaro também é similar ao fanchono Gouveia, que inicia e comanda a relação sexual. Sua homossexualidade é dirigida por condições orgânicas congênitas, sobre as quais ele tem pouco controle, se é que tem algum. Contudo, apesar das descrições feitas por Caminha dos instintos animalescos que comandam os desejos sexuais de Amaro, o protagonista é retra- tado como um ser humano piedoso. Como notou Robert Howes num ensaio introdutório à edição inglesa do romance em 1982, Caminha, com “dignidade e seriedade contidas”, constrói Amaro como “um per- sonagem forte, vigoroso” cujo amor por Aleixo reflete seu profundo respeito e cuidado com o rapaz.61 Por outro lado, Aleixo, como o ob-

jeto do desejo sexual, é apresentado em termos menos favoráveis. O jovem delicado, que é inocentemente seduzido para as atividades ho- mossexuais, transfere sua lealdade amorosa quando Carolina o cobre de atenções. Ao contrário do menino do Gouveia, Aleixo não tem uma

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orientação sexual definida. No fim da história, quando Amaro o mata num acesso de ciúme, o autor gera uma empatia não com o jovem volúvel, mas com o nobre marinheiro, cuja paixão o conduz à própria morte.

Embora o próprio Caminha não fosse um homossexual, ele des- creve realisticamente o comportamento homoerótico, e pôde fazer isso, ele próprio admitiu, porque havia observado tais atividades quan- do serviu como oficial na Marinha.62 O historiador Peter Beattie, que

examinou casos julgados pela corte marcial envolvendo sodomia no Exército e na Marinha brasileiros, de 1861 a 1908, concluiu que os de- talhes referentes a interações sexuais retratados nesse romance equi- param-se aos depoimentos fornecidos em audiências jurídicas reais do período. Como no romance, os papéis sexuais entre parceiros milita- res tendiam, caracteristicamente, a envolver um introdutor “ativo” no intercurso anal e um receptor “passivo”. Quando o sexo era consen- sual e os envolvidos eram considerados culpados por cometer sodo- mia, ambos os parceiros eram punidos pela ofensa.63 Em outras pala-

vras, os militares não estabeleciam distinção, ao menos no que se referia à punição, entre o participante “ativo” e o “passivo” na intimi- dade sexual. Esses registros de julgamentos de sodomia limitam-se ri- gorosamente aos acontecimentos que envolvem de modo direto a transgressão sexual. Os incidentes também são bastante filtrados pelos escriturários, cuja tarefa era sumarizar os testemunhos em termos téc- nicos ou legais. A contar pelos depoimentos, não se pode determinar se esses homens participavam do submundo sexual de lugares como o Largo do Rossio ou se identificavam a si próprios como fanchonos ou frescos.64 No entanto, eles confirmam a descrição literária de Cami-

nha de pelo menos um tipo de ligação sexual e romântica entre certos membros da Marinha.

A franqueza e a imparcialidade de Caminha perante o tema da ho- mossexualidade chocaram os leitores da época.65 As reações negativas

ao seu livro afrontaram o autor e o levaram a redigir uma curta respos- ta no ano seguinte, intitulada “Um livro condenado”, publicada na re- vista literária A Nova Revista. Em sua réplica às críticas desfavoráveis à

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sua obra, Caminha caracterizou a indignação popular como “um ver- dadeiro escandalo o acto inquisitorial da critica, talvez o maior escan- dalo do anno passado”. Caminha apontou a postura hipócrita dos co- mentadores literários cariocas, que louvavam escritores europeus como Flaubert, Zola, Maupassant e Eça de Queiroz, cujos romances continham adultério, blasfêmia e imoralidade, e todavia condenavam

Bom-Crioulo: “Qual é mais pernicioso: o Bom-Crioulo em que se es-

tuda e condena o homossexualismo, ou essas páginas que ahi andam pregando, em tom philosóphico, a dissolução da família, o concubi- nato, o amor livre e toda a espécie de imoralidade social?”.66

A reação pública de Caminha aos seus críticos indica uma fami- liaridade com a literatura europeia sobre o erotismo entre pessoas do mesmo sexo. De fato, o uso da palavra homossexualismo em sua de- fesa de Bom-Crioulo, em 1896, era uma das primeiras aplicações lite- rárias, no Brasil, do termo que fora cunhado em 1869 pelo escritor vienense Karoly Maria Benkert.67 Ele indicou aos detratores as obras

de médicos e psiquiatras franceses e alemães que tratavam do assun- to para mostrar que sua caracterização de Aleixo não era inventada.68

Contudo, a aparente falta de familiaridade de Caminha com a rica sub- cultura homoerótica do Rio de Janeiro na virada do século (diferente das atividades que ele observara quando a serviço da Marinha) resul- tou num retrato unilateral dos romances homoeróticos, como casos clandestinos e enclausurados, fadados a terminar em tragédia.69

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 72-77)