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Por toda a parte, e em número crescente

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 194-200)

Os homens que escreveram sobre o homoerotismo nos anos 20, 30 e começo dos 40 concordavam todos em uma premissa: a homos- sexualidade sempre existiu ao longo da história, em todas as classes sociais e em todas as sociedades.10 Em geral, suas histórias superficiais

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cidade bíblica de Sodoma porque seus habitantes praticavam o “peca- do nefando” e uma menção de que o “vício” fora amplamente prati- cado na Grécia e em Roma, mesmo depois de duramente criticado por São Paulo e os primeiros cristãos. Alguns escritores apontam para a natureza licenciosa dos diferentes grupos indígenas brasileiros, à épo- ca da chegada dos portugueses, como uma prova da ampla dissemi- nação da sodomia em diferentes culturas.11 Outros autores fazem re-

ferências esporádicas a líderes políticos e militares famosos, como Júlio César e Frederico II, da Prússia, e a artistas, como Michelangelo e Shakespeare, como exemplos de homossexuais eminentes do pas- sado. Um dos favoritos entre os mencionados é Oscar Wilde, prova- velmente porque, na imaginação dos sexólogos, médicos e criminolo- gistas, simbolizava o homossexual “moderno”. Certo autor chegou a escrever um extenso tratado sobre Wilde, relacionando sua corpulên- cia a desequilíbrios endócrinos e à homossexualidade.12

Vale notar que os intelectuais que escreveram sobre homossexu- alidade na década de 1930 não citam a obra de Gilberto Freyre sobre o legado do passado colonial na formação da sexualidade brasileira. Embora Freyre houvesse escrito apenas ocasionalmente sobre a ho- mossexualidade em seu próprio trabalho, ele mencionava o fenômeno de “homens efeminados ou bissexuais” e de “invertidos” entre os na- tivos brasileiros. Ele também faz referência a atos de sodomia come- tidos por europeus no Brasil colonial como parte de um argumento mais amplo a respeito da natureza licenciosa do colonizador portu- guês.13 É provável que sua obra tenha sido ignorada porque Casa

grande e senzala veio a público em 1933, numa época em que os pro-

fissionais médico-legais buscavam na Europa sua inspiração intelec- tual. Além disso, uma das teses da obra de Freyre, as contribuições positivas da cultura africana na sociedade brasileira, ia contra os pres- supostos racistas ainda mantidos por alguns desses autores.

A obra de Freyre, contudo, contribuiu para o principal argumento dos “especialistas” brasileiros em torno do tema da “inversão” sexual. A homossexualidade era universal, transcendia a história e, segundo muitos médicos que escreveram sobre o assunto, crescia a uma taxa

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alarmante. O Dr. Viriato Fernandes Nunes, por exemplo, apresentou uma tese intitulada “Perversões sexuais na medicina legal” à Escola de Direito de São Paulo, em 1928, em que enfatizava que o número de ho- mens envolvidos em atividades sexuais com outros homens crescia a olhos vistos. “Invertidos”, argumentava ele, “vêm de todas as idades e classes. Esta depravação é muito prevalecente e parece estar cada vez mais difundida”.14 Leonídio Ribeiro, resenhando teorias e estudos eu-

ropeus acerca da homossexualidade, encarava o problema como um fenômeno global e notava que “aumentava, por toda a parte, o núme- ro de indivíduos, de todas as classes sociais, apresentando manifesta- ções disfarçadas ou evidentes de perversões sexuais”.15

Afrânio Peixoto, um especialista em saúde pública e uma figura proeminente entre a elite culta que dirigia as escolas de medicina, as instituições mentais, os laboratórios de criminologia e várias socieda- des profissionais relacionadas, comentava a visibilidade crescente de homossexuais na “Introdução” à obra de 1935 de Estácio de Lima, A

inversão dos sexos. Após contar a história de Sodoma e Gomorra, Pei-

xoto afirma que o mundo estava bastante diferente em 1935: “Há, po- rém, alguma coisa mudada, não só na ciência, como na vida. Pelas es- tatísticas de Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos, calcula-se em 10 por cento dos homens (a inversão masculina é mais fácil de se veri- ficar, mais frequente, mais declarada) ou 5 por cento da população total, o número de invertidos. Portanto, o mundo teria hoje, se tem 2 bilhões, 100 milhões de invertidos ... Este número não é arbitrário, pois os mais honestos ou menos hipócritas daqueles povos, os norte- -americanos, falam dos seus 6 milhões, numa população de 120 mi- lhões, repetidamente, por médicos, sociólogos, moralistas”.16 Curiosa-

mente, Peixoto deixa de fazer o cálculo correspondente para o Brasil. (Se sua estatística está correta, haveria 88.207 homossexuais masculi- nos no Rio de Janeiro e outros 66.881 em São Paulo à época do Censo de 1940.) De fato, nenhum dos médicos e criminologistas que se de- bruçaram sobre a homossexualidade na década de 1930 tentou verda- deiramente fazer uma estimativa precisa, nem ao menos aproximada, do número de “invertidos” no país. A despeito de toda precaução dos

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“especialistas” em fornecer números exatos, praticamente todos eram unânimes em afirmar enfaticamente que a quantidade desses “indiví- duos doentes” estava crescendo.

Curiosamente, a Igreja Católica pareceu ficar de fora do debate a respeito da homossexualidade. Embora os médicos e juristas citassem a Bíblia ao contextualizar a sodomia, e sugerissem ao clero que pre- gasse contra a imoralidade de atividades sexuais entre homens, insis- tiam em coro que os profissionais médicos e legais — e não a Igreja — deveriam ser os árbitros sobre o melhor modo de compreender e tratar esse desvio sexual. O silêncio da Igreja Católica diante de um assunto tão fervorosamente debatido entre certos profissionais pode ter tido mais a ver com o rumo das relações entre Estado e Igreja nos anos 20 e 30 do que com alguma falta de interesse em assuntos rela- cionados à homossexualidade. Após a proclamação da República, em 1889, e a separação entre Igreja Católica e Estado, as instituições reli- giosas dominantes no Brasil deram início a um processo de reajuste interno. O catolicismo deixou de ser a religião oficial, e a Igreja per- deu seu status, seus privilégios e seus benefícios ante o processo re- publicano de laicização do Estado.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial, a hierarquia da Igreja deu início a uma articulada campanha a fim de restaurar a união com o Estado. Emblemática de seus esforços foi a consagração, em 1931, da estátua do Cristo Redentor no alto do morro do Corcovado, dominan- do e supostamente protegendo a capital nacional e, por extensão, todo o Brasil. O cardeal dom Sebastião Leme, do Rio de Janeiro, ce- lebrou a cerimônia, aproveitando a ocasião para advertir o novo regi- me varguista a considerar a força, o poder e a influência da Igreja. Durante toda a década seguinte o prelado católico conseguiria atingir a maior parte de seus objetivos — a proibição do divórcio e o reconhe- cimento do sagrado matrimônio pela lei civil; a permissão para aulas de religião nas escolas públicas; e financiamento estatal para escolas, seminários e hospitais religiosos.17 A campanha do cardeal envolveu

uma mobilização em larga escala de fiéis espalhados por uma miríade de organizações apadrinhadas pela Igreja.18

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Durante essa ofensiva política e social, a Igreja Católica optou por não atacar a homossexualidade. O próprio livro do padre Álvaro Negro- monte, A educação sexual, um sucesso de vendas, mencionava a luxú- ria, a masturbação e outros vícios sexuais, mas não a homossexualida- de.19 É provável que o padre Negromonte, diretor de ensino religioso

da arquidiocese do Rio de Janeiro, achasse melhor não expor pais, edu- cadores e crianças curiosas a tais práticas imorais. Mas enquanto a lide- rança da Igreja optasse por se manter afastada do debate com médicos e juristas que reivindicavam uma abordagem mais “científica” do que religiosa ou moral na compreensão da homossexualidade, sua partici- pação ativa não era, de fato, necessária. Os próprios profissionais mé- dico-legais insistiam, num parágrafo de seus escritos, que a homosse- xualidade não deveria continuar a ser encarada como um vício ou um pecado, para no parágrafo seguinte aconselhar os pais a promoverem uma moral saudável na educação de seus filhos, prevenindo desde cedo manifestações de perversão. O antiquíssimo conceito católico da imo- ralidade do “amor que não ousa dizer seu nome” estava tão internali- zado entre os íntegros doutores, advogados e outros profissionais das classes média e alta, que se constituía em um pressuposto subjacente a seus trabalhos, e nos discursos médicos e científicos desses profissio- nais estavam amplamente disseminados os ensinamentos dessa moral. Se a doutrina católica não era um ponto de referência explícito para aqueles que escreviam a respeito da homossexualidade, os estudiosos europeus certamente eram. Assim como Viveiros de Castro e Pires de Almeida, na virada do século, basearam suas ideias na literatura médica da Europa, também os médicos e criminologistas brasileiros que estu- daram o assunto nas décadas de 1920, 1930 e 1940 sintetizavam teorias importadas da França, Alemanha, Inglaterra, Espanha e, ocasionalmente, dos Estados Unidos. Como notou a historiadora Nancy Leys Stepan, os latino-americanos, incluindo os brasileiros, olhavam para os pensadores europeus e “abraçavam a ciência como uma forma de conhecimento progressivo, uma alternativa à visão religiosa da realidade, e como um meio de estabelecer um novo modo de poder cultural”.20 Essas apro-

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duzidas na Europa e nos Estados Unidos em endocrinologia e funções hormonais nas décadas de 1920 e 1930, bem como em teorias mais gerais acerca de eugenia, comportamento criminal e desvio social.21

Duas figuras internacionais, em particular, se destacaram por exercer uma maior influência em moldar as noções brasileiras sobre homos- sexualidade e sua ligação com a raça, o gênero, a criminalidade e a biologia. Um deles foi Cesare Lombroso, o criminologista italiano, e o outro foi Gregório Marañón, um professor da Universidade de Madri.

Cesare Lombroso (1836-1909), um dos pioneiros no campo da an- tropologia criminal, defendia a teoria do delinquente nato, cujo fragi- lizado sistema nervoso o predispunha a um comportamento degene- rado, que incluía propensão a mutilação, tortura, homossexualidade e a fazer tatuagens pelo corpo.22 Lombroso e seus seguidores procura-

vam determinar a degeneração criminosa por meio de características fenotípicas. Seu trabalho influenciou Leonídio Ribeiro, que empregou as técnicas antropométricas de Lombroso para medir partes do corpo de 195 presos no Rio de Janeiro em 1932, a fim de provar a ligação entre desequilíbrio hormonal e homossexualidade. Como mencionado no Capítulo 2, Ribeiro foi agraciado com o prêmio Lombroso, em 1933, por suas investigações antropológico-criminais, que incluíam seu es- tudo de 1932 sobre os homossexuais cariocas.

A segunda influente figura internacional foi Gregório Marañón (1887-1960), um professor de medicina da Universidade de Madri que assinava a “Introdução” à obra de 1938 de Ribeiro, Homossexualismo

e endocrinologia. A obra-prima do próprio Marañón, La evolución de la sexualidad e los estados intersexuales, fora publicada na Espanha,

em 1930, e traduzida para o inglês dois anos depois. Ele também su- mariou sua teoria sobre a intersexualidade no periódico médico-legal brasileiro Arquivos de Medicina Legal e de Identificação, que no fim da década de 1930 apresentava entre suas páginas inúmeros artigos sobre a homossexualidade.23 Argumentando que homossexuais pos-

suíam características tanto masculinas como femininas por causa de seu desequilíbrio endócrino, Marañón propunha uma explicação bio- lógica para a homossexualidade. O termo “intersexual” descrevia essa

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posição limítrofe entre os dois sexos. Marañón, contudo, reconhecia que essa condição era apenas uma predisposição à homossexualida- de. Fatores exógenos, tais como religião e ética, podiam moderá-la ou erradicá-la.24 Ao sugerir ser possível mudar a orientação sexual de uma

pessoa, Marañón criou um espaço para a intervenção da Igreja, mais do que da medicina, como veículo exequível para a recuperação do intersexual. Sob esse aspecto, suas teorias, e as de muitos seguidores seus no Brasil, voltavam-se para a ciência sem abandonar as noções mais tradicionais de como conter manifestações de um comportamen- to desviante. Embora a biologia desempenhasse um papel significativo na constituição de um intersexual, a moralidade, a ética e a repressão sexual poderiam se provar suficientes para vencer as deficiências fi- siológicas.

As ideias de Marañón acerca das origens endocrinológicas da ho- mossexualidade foram adotadas pela maior parte dos demais médicos e criminologistas brasileiros que escreviam sobre o assunto nos anos 30. Entre eles figurava o eminente médico forense Afrânio Peixoto, que sugeria outro termo, “missexual”, em razão da mistura do elemen- to masculino e feminino por ele diagnosticado naqueles seres “anor- mais” e “degenerados”.25 A despeito dessas sutilezas de definição, não

havia na realidade nenhuma diferença substancial nas várias expres- sões empregadas por esses médicos para descrever a homossexuali- dade. Tanto os intersexuais como os missexuais eram pessoas cujas disfunções na constituição biológica haviam produzido características tanto masculinas como femininas, resultando no desejo erótico pelo mesmo sexo. O termo inversão enfatizava a escolha do objeto de de- sejo do indivíduo; já as noções de intersexual e missexual explicavam as causas biológicas desse distúrbio. Peixoto e outros médicos também estavam de acordo com Ribeiro e Marañón quanto à suposição de que os fatores externos, não biológicos, podiam afetar o comportamento homossexual e até modificar os desejos sexuais de um dado indivíduo. Assim, a cura, embora fundamentalmente de base biológica, podia também compreender esforços psicológicos e morais, ou seja, de mé- dicos, de psicólogos e da Igreja.

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