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Salas e estrelas de cinema

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 163-165)

Os contatos sexuais em parques e banheiros públicos corriam o risco de terminar em prisão por “atentado ao pudor”. Por isso, os ho- mens também se apropriaram de um local público mais discreto para buscar potenciais parceiros. A escuridão das salas de cinema, a aten- ção do público focalizada na tela e os luxuosos e amplos saguões, sa- las de espera e banheiros, típicos dos modernos cinemas, ofereciam ambientes ideais para aventuras homoeróticas. Podia-se escapar do trabalho por uma ou duas horas durante o dia e envolver-se numa li- gação clandestina e anônima nesse espaço pouco iluminado. Para um “homem verdadeiro” que apreciava as relações sexuais com bichas, para a pessoa com sentimentos ambivalentes ou confusos em relação ao sexo com outros homens e aqueles ainda não familiarizados com a topografia sexual do Rio de Janeiro ou São Paulo, os cinemas torna- ram-se espaços exemplares para praticarem atividades sexuais enco- bertas. Pelo fato de se localizarem próximos das áreas onde muitos homens moravam, as salas de cinema da Cinelândia, no Rio, e os novos elegantes “palácios” do cinema na Avenida São João, em São Paulo, tornaram-se locais favoritos dos homossexuais. O cinema era também uma das formas mais populares de entretenimento para pes- soas de baixa renda.86 O preço relativamente barato das entradas fez

dos cinemas um dos locais semipúblicos mais acessíveis para que ho- mens com recursos econômicos modestos pudessem ter contatos se- xuais com outros homens.

Sexo e vida noturna, 1920-1945

Henrique mencionou que sua primeira atividade homoerótica teve lugar num cinema.87 “Jurema” admitiu que ele às vezes ia para os

cinemas para arranjar parceiros “ativos”. No escuro do cinema, ele iria “fazer crochê”, ou seja, alcançar e tocar a virilha de outro homem para indicar suas intenções sexuais.88 Esses contatos sexuais anônimos po-

diam terminar em masturbação mútua, em intercurso se as condições o permitissem, ou em um hotel barato fora do cinema.

Os homossexuais, contudo, não frequentavam o cinema apenas para o sexo. Os filmes brasileiros, norte-americanos e europeus exer- ciam, de qualquer maneira, um papel importante em suas vidas. Kay Francis, que nasceu João Ferreira da Paz em 1912 na pequena cidade de Água Preta, no interior do Estado de Pernambuco, cresceu em meio à mais extrema pobreza rural. Em 1932, mudou-se para Recife, a ca- pital do estado, e passou a trabalhar como empregado doméstico. Ele ia ao cinema com muita frequência e tornou-se fanático por Kay Fran- cis, uma das estrelas hollywoodianas mais bem pagas dos anos 30. Sessenta anos mais tarde, ele ainda construía sua persona em torno dessa atriz dos anos 30. Lembrando a magia de sua imagem projetada na tela, ele explicou: “Eu queria ser como ela. Ela era tão glamourosa. Então comecei a imitá-la”.89 No meio século seguinte, sempre que a

oportunidade se apresentava, João Ferreira da Paz tornava-se Kay Francis. Durante o carnaval, em festas de amigos e, mais tarde, em concursos de travestis no Rio de Janeiro nos anos 50, ele se transfor- mava numa cópia deslumbrante da estrela de Hollywood. Como ex- plicou a Kay Francis brasileira, sua contrapartida norte-americana to- mou conta de sua imaginação porque, embora sofresse tanto em seus papéis, sempre permanecia elegante e glamourosa.

As revistas sobre cinema, tais como A Cena Muda e Eu Sei Tudo, além das revistas semanais ilustradas, como O Cruzeiro, acompanha- vam de perto a vida das estrelas de Hollywood, bem como a vida das cantoras e atrizes do rádio brasileiro. Essas publicações lançavam pa- drões de moda, maquiagem e estilos de cabelo, todos os quais eram imitados à risca por seus leitores. Os filmes e as revistas ofereciam a oportunidade para desenvolver uma relação mais íntima com as repre-

Além do carnaval

sentações de beleza, estilo e graça feminina que traziam à tona. O olho fotográfico dos alunos do Instituto de Criminologia captou essa rela- ção entre os jovens homossexuais e as famosas modelos e atrizes. As- sim, entre as decorações modestas do quarto parcamente mobiliado de Zazá, eles observaram quatro fotografias emolduradas de estrelas femininas penduradas na parede sobre a cama. No chão, uma pilha de revistas femininas. O quarto mais elegante era o de Damé: mobi- liado com uma imensa cama turca coberta com uma colcha de renda, também continha quadros de estrelas e astros do cinema graciosamen- te emoldurados, ao lado de retratos de pessoas de sua família.90

Noções de ideal feminino, é claro, diferem umas das outras. Kay Francis, nascido em Pernambuco, voltava-se para Hollywood. O tra- vesti e prostituto Gilda de Abreu moldava-se segundo a estrela nacio- nal cujo nome adotou. “Lena Horne”, amigo de Madame Satã, esco- lheu a cantora e atriz afro-americana como modelo.91 Kay Francis

identificava-se com a dor e o sofrimento das mulheres aristocráticas representadas por sua sósia holywoodiana. Gilda de Abreu pintava meticulosamente seus lábios de acordo com os cosméticos escolhidos por seu ídolo feminino.92 Pode-se imaginar que Lena Horne orgulha-

va-se por se identificar com uma estrela de cinema e cantora famosa de ascendência africana. Os atores românticos masculinos também podiam provocar fantasia e desejo sexual. Alfredinho, por exemplo, apaixonava-se pelos atores fortes, masculinos, dos filmes que vira quando adolescente.93 Em vista da enorme popularidade dos filmes

nesse período, essas representações cinematográficas, tanto as impor- tadas quanto as brasileiras, constituíram poderosos pontos de referên- cia para os homossexuais paulistas e cariocas à medida que moldavam e reforçavam padrões de masculinidade e feminilidade.

No documento Além Do Carnaval - James Naylor Green (páginas 163-165)