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3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEI 12.846/2013 (LEI ANTICORRUPÇÃO) E

3.1. A Lei 12.846/2013 – origem e influências

Da mesma forma que casos de corrupção permeiam a história de nosso país antes mesmo de seu surgimento como nação independente, o combate à corrupção não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Por exemplo, o Código Penal, vigente desde

a década de 194050, prevê a criminalização da corrupção ativa e passiva, nos atuais artigos 33351 e 31752.

No entanto, fenômeno recente é o aumento da intolerância às tais condutas53 pela comunidade global registrada a partir dos anos 1990 e, principalmente, após a virada do século. Como apontado no capítulo anterior, globalização e aumento da interação entre os países, as fronteiras das nações se abriram aos capitais do mundo, sobressaindo à existência de um mercado global, em detrimento aos mercados nacionais ou regionais.

Nesse sentido, essa “nova ordem” reclamava a padronização de regras de governança e a criação de mecanismos que pudessem garantir a alocação (e o retorno) desses capitais. Dentre tais preocupações, se encontra a adoção de mecanismos de combate à corrupção e a adoção de programas de conformidade empresarial.

A essa demanda internacional deve ser adicionada a relevante preocupação norte americana com o fluxo de capital ilegal após os atentados de 11 de setembro. Os ataques às torres gêmeas e ao pentágono voltaram os olhos da superpotência para o combate ao terrorismo que, por sua vez, tem uma estreita ligação com a corrupção, pois muitas das vezes, o financiamento dos atos de terror se dá por dinheiro que circula em mercados paralelos, cujo principal contribuinte é o dinheiro fruto da atividade corruptiva.

Nesse sentido, os Estados Unidos da América impulsionam, ainda mais, a discussão nos organismos internacionais para criação de mecanismos de combate à corrupção em suas diversas faces que, por sua vez, transbordaram àquelas tipificadas nos

50BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio

de Janeiro, RJ, 7 dez. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: set. 2016.

51Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar,

omitir ou retardar ato de ofício: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional. (BRASIL, 1940).

52Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função

ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. § 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa (BRASIL, 1940).

53Eduardo Cambi e Fábio André Guaragni apontam que “na década de sessenta do século passado, o

pagamento de suborno, por parte das empresas, para autoridades públicas era um comportamento considerado racional e que contribuía para tornar a atividade econômica mais eficiente. O suborno era considerado uma taxa como outra qualquer a ser contabilizada nos custos normais da empresa”. CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André (Coords.); BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira (Org.). Lei

artigos 317 e 333 do Código Penal para abraçar diversas ações referentes à relação entre pessoas, entes e empresas e o Estado.

A partir de tal impulso, emergem diversos documentos das organizações multilaterais estipulando agenda propositiva para o estabelecimento de novos mecanismos de combate à corrupção.

Tais instrumentos, não determinavam de maneira clara a adoção imediata de determinadas medidas para os países, mas sim a criação paulatina destes mecanismos nos respectivos ordenamentos jurídicos. Aqui, pois, se verifica uma clara atuação bem- sucedida do chamado soft law54, fenômeno que tem o seu aparecimento ligado a criação das entidades e organismos multilaterais, tendo presença marcante com o surgimento da ONU (Organização das Nações Unidas) e das instituições criadas a partir do determinado na Conferência de Bretton Woods55, quais sejam, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e ao Acordo Geral de Tarifas de Comércio (GATT)56 que, por sua vez, dá origem à Organização Mundial do Comércio57.

O fenômeno do soft law em nossos tempos é elucidado pela visão crítica de Sarcedo (2016, p. 90):

(...) o direcionamento da ação da tutela penal sobre a atividade econômica representa, na verdade, um imperativo de padronização da identidade do mercado globalizado, que deve ser harmonizado com a

54Valadão define o fenômeno da seguinte forma: “Por soft law entendemos as normas exaradas pelas

entidades internacionais, seja no âmbito das organizações multilaterais, enquanto pessoas jurídicas de Direito Internacional Público, tal qual a ONU, seja no de organizações regulatórias, não necessariamente ligadas às organizações internacionais de direito público, tal qual a Câmara Internacional do Comércio (CCI), e também as declarações de intenção que o conjunto das nações faz, como resultado dos grandes encontros nacionais.” (VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira. Soft Law: um aspecto (quase) inovador do direito internacional contemporâneo. Revista Prática Jurídica, Ano V, n. 49, p 14-21, abr. 2006.). O Professor Salem Hikmat Nasser traz uma definição mais detalhada do que se entenderia por Soft Law, aponta o autor:“Entende-se por soft law basicamente: (1) normas jurídicas ou não, dotadas de linguagem vaga ou de noções com conteúdo variável ou aberto ou que apresentem caráter de generalidade ou principiológico que impossibilite a identificação de regras específicas e claras; (2) normas que preveem, para os casos de descumprimento, ou para a resolução de litígios delas resultantes, mecanismos de conciliação, mediação, ou outros à exceção da adjudicação; (3) atos concertados, produção dos Estados, que não se pretende sejam obrigatórios. Sob diversas formas e nomenclaturas, esses instrumentos por eles produzidos, e que não são obrigatórios; (5) instrumentos preparados por entes não estatais, com a pretensão de estabelecer princípios orientadores do comportamento dos Estados e de outros entes, e tendendo ao estabelecimento de normas jurídicas” (NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito

internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2005. p.61).

55 As Conferências de Bretton Woods estabeleceram em julho de 1944 as regras para as relações comerciais

e financeiras entre os países mais industrializados do mundo. O sistema Bretton Woods foi o primeiro exemplo, na história mundial, de uma ordem monetária totalmente negociada, tendo como objetivo governar as relações monetárias entre Nações-Estado independentes.

56 GATT – General Agreement on Tariffs and Trade (sigra em ingles).

finalidade de dar maior segurança aos investidores frente às incertezas econômicas e às desconfianças nos movimentos internacionais de capitais. Para tanto, decisões internacionais tomadas no âmbito corporativo acabam influindo em decisões políticas de diversos países, que premidos pelas forças econômicas, acabam negociando parte de sua soberania interna e adotando exigências legais de padrões internacionais de gestão empresarial. Com vistas a viabilizar todo esse processo de internalização dos padrões internacionais de gestão empresarial, recorre-se ao reforço penal como meio coativo para fazer cumprir as boas práticas de governança corporativa e os compliance

programmes. Incentiva-se, dessa forma, o cumprimento de novos

padrões de colaboração entre o particular e o Estado, como meio de prevenção de riscos, detecção de delitos e, mais ultimamente, como prática anticorrupção. 58

É nesse contexto, que diversos compromissos são discutidos, assinados e posteriormente ratificados pelos Brasil. Nesse sentido, podemos citar, por exemplo, a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE.

Referida convenção busca criminalizar, nos países signatários, o oferecimento, a promessa ou a doação de vantagem pecuniária ou de outra natureza indevida a um funcionário público estrangeiro, direta ou indiretamente, com o intuito de que, por meio de ação ou omissão, esse funcionário realize uma conduta para facilitar ou dificultar uma transação internacional, determinando a adoção de uma série de medidas pelos países que aderirem a essa.

O Brasil assinou e ratificou o referido instrumento que ensejou a entrada em vigor da Lei 10.467/200259, que insere dispositivos no Código penal, justamente para o atendimento dos termos da Convenção.

58SARCEDO, Leandro. Compliance e responsabilidade penal jurídica: construção de um novo modelo

de imputação baseado na culpabilidade. São Paulo: Liber Ars, 2016. p. 90.

59BRASIL. Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002. Acrescenta o Capítulo II-A ao Título XI do Decreto-

Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e dispositivo à Lei no 9.613, de 3 de março de

1998, que "dispõe sobre os crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores”; a prevenção da utilização do Sistema Financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei, cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 12 jun. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10467.htm>. Acesso em: nov. 2016.

Nesse sentido, é a partir de compromissos internacionais é que são implementados os artigos 337 B60, C61 e D62, criando o Capítulo II-A – Dos Crimes Praticados por Particular Contra a Administração Público Estrangeira, em um claro exemplo das pressões internacionais exercidas pelas entidades internacionais, como menciona Sarcedo (2016).

Do mesmo modo, a Convenção Interamericana contra a Corrupção (OEA), ratificada pelo Brasil em 200263, determina que os Estados-parte promovam, desenvolvam e fortaleçam seus mecanismos para prevenir, detectar, punir e erradicar a corrupção64. Por sua vez a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, ratificada pelo Brasil em 2006, tem previsão análoga em seu artigo 12.1, ao determinar que “os Estados Partes devem adotar medidas para prevenir a corrupção e melhorar as normas contábeis e de auditoria no setor privado, assim como prever sanções administrativas e penais eficazes” 65.

Neste contexto e como forma de atender essas demandas internacionais, fora criado o microssistema de enfretamento da corrupção do Brasil, ou seja, é a partir da assunção de compromissos internacionais em meados da década de 1990 que se iniciou o desenho de um sistema de combate à corrupção no Brasil, com a introdução de “diversos

60Art. 337B. Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público

estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional: Pena – reclusão, de 1 (um) ano a 8 (oito) anos, e multa.

Parágrafo Único. A pena é aumentada de 1/3(um terço) se, em razão da vantagem ou da promessa, o funcionário público estrangeiro retarda ou omite ato de ofício, ou ainda pratica infringindo o dever funcional (BRASIL, 2002).

61Art. 337C. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou

promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro o exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa (BRASIL, 2002).

Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada a funcionário estrangeiro.

62Art. 337D. Considera-se funcionário público estrangeiro, para os efeitos penais, quem, ainda que

transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro.

63BRASIL. Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002. Promulga a Convenção Interamericana contra a

Corrupção, de 29 de março de 1996, com reserva para o art. XI, parágrafo 1o, inciso "c". Diário Oficial da

União, Brasília, DF, 8 de out. de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4410.htm>. Acesso em: nov. 2016.

64BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira (Org.); CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André

(Coords.). Lei Anticorrupção: Comentários à Lei 12.846/2013. São Paulo: Almedina, 2014. p. 47.

65BRASIL. Decreto n° 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra

a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 de jan. de 2006. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/D5687.htm>. Aceeso em: nov. 2016.

instrumentos de ataque à corrupção, tais como a Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), (...) as leis que definem os denominados crimes de responsabilidade (Lei 1079/1950 e Decreto-Lei 201/1967), a LC 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) dentre outros diplomas legais.” 66.

A Lei 12.846/201367 veio integrar tal sistema, suprindo uma deficiência deste, provendo um mecanismo claro de imputação de responsabilidade às pessoas jurídicas pela prática dos atos contrários à administração pública, abarcando condutas lesivas mais amplas do que os atos de corrupção definidos no Código Penal68. Conforme aponta Campos (2014, p.163):

A lei anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) tem por objetivo sanar a lacuna existente no sistema jurídico sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas que praticam atos ilícitos em desfavor da administração pública nacional ou estrangeira, principalmente, atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos.69

Referido texto se originou do Projeto Lei 6.826/2010 (posteriormente transformado no PLC 39/2013 em sua tramitação no Senado Federal), de iniciativa do Poder Executivo em cumprimento ao estabelecido nos compromissos internacionais assumidos pelo país, notadamente a Convenção da OCDE. Este tramitou lentamente entre

66NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O Sistema Brasileiro de

Combate a Corrupção e a Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 17, n. 65, mai/ago 2014, p 93.

67A pressão internacional exercida para que o Brasil adotasse medidas mais concretas de combate à

corrupção empresarial se materializou por meio da recomendação feita ao país pelo WGB (Working Group of Bribery) que, no contexto de verificação da implantação de medidas de combate a corrupção na forma da Convenção da OCDE, recomendou que o Brasil (i) tomasse medidas urgentes para estabelecer a responsabilidade direta de pessoas jurídicas pelo delito de suborno de um funcionário público estrangeiro; (ii) criasse sanções efetivas, proporcionais e dissuasivas, incluindo sanções monetárias e de confisco; e (iii) assegurasse que, em relação aos estabelecimento de jurisdição sobre as pessoas jurídicas, uma ampla interpretação da nacionalidade das pessoas jurídica fosse adotada. A resposta a tais recomendações é encontrada na Lei 12.846/2013 e na Lei 10.467/2012.

68Como afirma Xavier: “a Lei n° 12.846/13 sanciona mais do que condutas definidas pelo Código Penal

como ‘corrupção’. A referida norma, ao lado de dispositivos contidos na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), Lei de Licitações (Lei 8.666/93) e o próprio Código Penal, formam um microssistema normativo voltado à proteção da administração pública, de seu patrimônio e dos princípios que a informam”. (XAVIER, Christiano Pires Guerra. Programas de Compliance Anticorrupção no contexto

da Lei 12.846/2013: elementos e estudo de caso. São Paulo: FGV, 2015. Dissertação (Mestrado em

Direito) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2015).

69CAMPOS, Patrícia Toledo. Comentários à Lei nº 12.846/2013 – Lei Anticorrupção. Revista Digital de Direito Administrativo, Ribeirão Preto, v.2, n.1, 2014, p.163.

os anos de 2010 e 2013, sendo impulsionado apenas após a divulgação da Avaliação do Sistema de Integridade da Administração Pública Federal pela organização em conjunto com a Controladoria Geral da União, em outubro de 201170.

Já no Senado Federal, em 2013, o referido projeto ganha importância estratégica para o Executivo Federal que desejava utilizar a presente lei como uma espécie de resposta ao clamor das ruas evidenciados nas manifestações ocorridas no Brasil em junho de 2013. Assim, nesse contexto, é sancionada a Lei 12.846 no dia 1º de agosto de 2013.