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3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEI 12.846/2013 (LEI ANTICORRUPÇÃO) E

3.4. Responsabilidade Objetiva das Pessoas Jurídicas

A questão da responsabilização das pessoas jurídicas pela prática de Atos Lesivos à Administração Pública não é novidade no direito brasileiro. Como bem aponta Campos (2014, p. 163):

[...] a responsabilização de pessoa jurídica em decorrência de atos lesivos à Administração Pública não representa novidade exclusiva da Lei Anticorrupção. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento consolidado no sentido de que numa ação de improbidade, por exemplo, a pessoa jurídica pode figurar no pólo passivo, ainda que desacompanhada de seus sócios, sendo responsabilizada com seu patrimônio pela prática do ato ímprobo. 94

No entanto, a entrada em vigor da Lei 12.846/2013 representa um significativo avanço na responsabilização dos entes coletivos ao prever que esta, além de independente da conduta das pessoas físicas, é objetiva. Isso quer dizer que para se atribuir a responsabilidade à Pessoa Jurídica, basta comprovar o dano causado e o nexo de causalidade entre este e a empresa.

Vale ressaltar: ao optar por dar caráter objetivo à responsabilidade “as sanções administrativas e cíveis serão aplicadas às pessoas jurídicas, independentemente de dolo ou culpa, sendo suficiente a comprovação da prática do ato lesivo tipificado na referida lei para aplicação das referidas sanções” (NEVES e OLIVEIRA, 2014, p. 194). Tal fato representa um sensível avanço, pois até então, a responsabilidade (subjetiva) das pessoas

94CAMPOS, Patrícia Toledo. Comentários à Lei nº 12.846/2013 – Lei Anticorrupção. Revista Digital de Direito Administrativo, Ribeirão Preto, v.2, n.1, 2014, p. 163.

jurídicas era de difícil comprovação. Xavier (2015, p. 42) ressalta essa alteração de modelo:

Importante ressaltar que a legislação pátria saiu de um modelo no qual as pessoas jurídicas sequer eram responsabilizadas e foi para o outro extremo, no qual as pessoas jurídicas são responsabilizadas objetivamente, fazendo ressalva apenas em relação às pessoas físicas, no §2º do artigo 3º para as quais será imprescindível a apuração da culpabilidade do agente para que lhe seja imputada qualquer punição (responsabilidade subjetiva). 95

No entanto, tal avanço acabou por gerar severos questionamentos doutrinários sobre a possibilidade de imputação da responsabilidade de forma objetiva, notadamente para aqueles filiados à corrente penalista de interpretação da Lei Anticorrupção. Argumentam que, em sendo a corrupção um ato humano, a consumação do fato só poderá ser configurada a partir da análise subjetiva da conduta do agente que tenha praticado o ato em favor da referida pessoa jurídica. Nas palavras de Justen Filho (2013):

[...] em momento algum a Lei nº 12.846/2013 instituiu uma espécie de ‘corrupção objetiva’, em que seria bastante e suficiente a ocorrência de eventos materiais. Ocorre que, consumada a infração em virtude da conduta reprovável de um ou mais indivíduos, poderá produzir-se a responsabilidade da pessoa jurídica. Essa responsabilização será ‘objetiva’ na acepção de que bastará a existência de um vínculo com a pessoa jurídica infratora. 96

A partir desses argumentos é que parte da doutrina sustenta a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei Anticorrupção. Alega-se que tal dispositivo violaria os princípios do devido processo legal, a garantia ao contraditório e à ampla defesa, uma vez que os atos sancionados dependem de uma conduta volitiva de uma

95XAVIER, Christiano Pires Guerra. Programas de Compliance Anticorrupção no contexto da Lei 12.846/2013: elementos e estudo de caso, 2015, Dissertação (mestrado), Escola de Direito de São Paulo

da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2015, p. 42.

96JUSTEN FILHO, Marçal. A “Nova” Lei Anticorrupção brasileira (Lei 12.846/2013). Informativo

Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n° 82, dezembro de 2013. Disponível em: <http://www.justen.com.br//informativo.php?&informativo=82&artigo=1110&l=pt>. Acesso em: set. 2016.

pessoa natural em favor da pessoa coletiva, de forma que seria necessária a análise subjetiva daquela conduta para configuração da responsabilidade da Pessoa Jurídica.

Em que pese a questão não ter sido avaliada por nossos tribunais até o momento, não nos parece prospera a tese da inconstitucionalidade do aludido artigo. Como bem apontam Bertoncini, Cambi e Guaragni (2014, p. 79):

O uso da responsabilidade objetiva, quando dirigido à pessoa jurídica, tem respaldo formal na própria Carta Constitucional. Assim, o art. 37, parágrafo 6º, estatui que as pessoas jurídicas de direito público, bem como as de direito privado, prestadoras de serviços públicos, ‘responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa’. É dizer: causado o dano, respondem objetivamente; após, sendo condenadas, as pessoas jurídicas em questão podem cobrar-se de terceiros regressivamente, desde que se provem o dolo ou a culpa. Logo, somente é subjetiva a responsabilidade civil na ação de regresso.

Ademais, a própria legislação infraconstitucional prevê o uso da responsabilidade objetiva para sancionar infrações civis, como o Código de defesa do Consumidor de cunho administrativo-civil, como é o caso da Lei 12.529/2011, a chamada Lei do CADE. Referido diploma, prevê em seu art. 3697 a responsabilização objetiva para sancionar algumas infrações à ordem econômica. Sob o enfoque civil-administrativo, não há qualquer restrição à imposição da responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas. Tal responsabilidade deriva da chamada teoria do risco98 é perfeitamente aceita pelo direito

97Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, atos sob qualquer forma

manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: [...]. (BRASIL. Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código

de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de

junho de 1994, e a Lei no 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Diário Oficial da União,

Brasília, DF, 12 dez. 2011. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2011/Lei/L12529.htm>. Acesso em: nov. 2016).

98Cuéllar e Pinho (2014, p.150/151) analisam a teoria do risco como sendo a doutrina pela qual todo o

prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter agido ou não com culpa. Nesse sentido, tal teoria aponta para cinco vertentes:

A primeira, denominada Risco Proveito, grosso modo, aponta que o dano deve ser reparado a partir daquele que tira proveito da atividade lesiva, ou seja, nas palavras de Rui Stocco, quem colhe o bônus deve arcar com o ônus da atividade. Por sua vez, a teoria do Risco Profissional, se assemelha bastante à teoria do risco proveito, sendo uma adaptação desta para as relações de trabalho, notadamente para abarcar a responsabilidade do empregador frente aos acidentes de trabalho.

civil e administrativo. Grosso modo, a objetividade da responsabilidade da conduta, estaria ligada ao proveito obtido por essa. O ônus advém do proveito obtido a partir do ato lesivo.

Ademais, cumpre ressaltar que a responsabilização objetiva não é algo absoluto na presente Lei Anticorrupção. Em verdade, o novel legal dá à responsabilidade duplo tratamento. Isso porque, enquanto a Lei impõe o caráter objetivo na responsabilização das pessoas jurídicas em razão da prática de uma das condutas descritas nos incisos do artigo 5º e prevê, de forma independente e autônoma, que as pessoas naturais serão punidas na medida de sua culpabilidade, nos termos do art. 3º da referida Lei, nas palavras de Campos (2014, p.165):

Desta forma é possível a seguinte afirmação: enquanto a pessoa jurídica é responsabilizada objetivamente pelos atos ilícitos praticados, os dirigentes e administradores da pessoa jurídica penalizada terão as suas condutas analisadas sob o prisma da responsabilidade subjetiva, pois a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de quaisquer pessoas naturais.

A previsão de imputação objetiva de responsabilidade, descrita nos artigos 1º e 2º99 da lei, tem o efeito de transferir o dever in vigilando do Estado em prevenir o cometimento de Atos Contrários à administração pública às pessoas jurídicas. Isso porque a punição desses entes independe da demonstração de dolo ou culpa, bastando a

Já pela teoria do Risco excepcional a reparação do dano será sempre necessária qual o dano for uma consequência de um risco de ordem excepcional, não afeto a qualquer atividade. Esse terá lugar sempre em que a atividade desenvolvida apresentar risco excepcionalmente elevado.

Por sua vez, a teoria do risco integral estaria ligada ao desenvolvimento de atividade administrativa e à responsabilidade objetiva do Estado e as Pessoas Jurídicas privadas prestadoras de serviços públicos e aponta para imposição do dever de indenizar o dano causado independente do fato de ser culposo ou não. Por fim, a vertente mais aceita no Direito brasileiro, denominada Teoria do Risco Criado, a responsabilidade objetiva teria como fundamento a obrigatoriedade de o agente se responsabilizar pelo risco ou perigo que suas atividades representam. (CUÉLLAR, Leila; PINHO Clóvis Alberto Bertolini. Reflexões sobre a Lei Federal 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). Revista de Direito Público da Economia (RDPE), Belo Horizonte, ano 12, n.46, abr./jun. 2014, p. 150/151).

99 Art. 1o Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela

prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

Art. 2º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não (BRASIL, 2013).

comprovação da prática do ilícito por um de seus colaboradores, por exemplo, e o nexo de causalidade entre este e a Pessoa Jurídica100.

Em suma, percebe-se que a opção legislativa pela responsabilização objetiva das pessoas jurídicas tem dupla função: (i) estabelecer um mecanismo que permita sancionar a pessoa jurídica sem que se adentre na questão da culpa no ato, o que é de difícil comprovação; (ii) dar celeridade e efetividade as punições impostas por força da presente Lei.

Analisando a questão da responsabilidade objetiva trazida pela Lei, Bottini e Tamasauskas (2014) afirmam que a responsabilidade objetiva prevista na Lei só prevaleceria caso fosse constatado a inexistência de um sistema de integridade efetivo ou a pessoa jurídica objeto apresente alguma irregularidade grave, como o uso de tal estrutura jurídico-organizativa estritamente para a prática de ilícitos. A ausência deste significaria a existência de culpa da Pessoa Jurídica que, negligentemente, deixou de cumprir seu dever de vigilância.

Em outras palavras, caso a empresa objeto apresente mecanismos eficazes de compliance, não se haveria de falar em responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, sendo necessária a comprovação da culpa ou participação direta desta na consumação do ato lesivo à Administração Pública. Estaríamos, pois, diante de uma responsabilidade subjetiva da pessoa jurídica consubstanciada na culpa desta, em razão da falha de seus mecanismos de prevenção e integridade. Nas palavras dos autores referidos acima (2014):

A Legislação [...] trouxe importantes inovações para o estabelecimento de comportamento ético nas relações das empresas com o Estado. Dentre esses, a transferência do foco persecutório do corrupto para o corruptor e a possibilidade de apenamento independentemente de culpa ou dolo podem ser considerados os mais importantes, ao lado do ferramental indispensável para sua estruturação: a cultura e os instrumentos de complicance.

Esse artigo defende a averiguação de algum desvalor no comportamento ou na estrutura da empresa como a justificação para o apenamento com sanções de multa e publicação extraordinária da

100Explorando o tema Carvalhosa (2015, p. 43) expõe que: “Pode-se mesmo fazer um paralelismo entre o

Estado e a pessoa jurídica. Assim, o Estado não tem direitos, tem deveres, e o poder-dever de exercê-los na precípua promoção e na tutela do interesse público. E, igualmente, a pessoa jurídica não tem direitos, tem deveres de precipuamente promover e de cumprir o seu objeto social no interesse de seus sócios e associados, e da comunidade onde atua”.

decisão condenatória (art. 6º) e perdimento de bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, suspensão ou interdição parcial de suas atividades, dissolução compulsória da pessoa jurídica, além da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades pelo prazo mínimo de um e máximo de cinco anos (art. 19).

No entanto, não parece ter sido essa a vontade do Legislador. A existência de um programa de conformidade efetivo não é um limitador para a imposição da responsabilidade objetiva. Essa é aplicável indistintamente a todas as Pessoas Jurídicas sujeitas aos efeitos da Lei 12.846/2013. Com efeito, tal fato não diminui a importância da adoção de tal mecanismo, quer por sua importância per si, quer por ser a adoção desses programas uma importante causa atenuante para aplicação da pena, como se verá a seguir.