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3 ORIENTAÇÃO TEÓRICA DA PESQUISA

3.4 Letramento e oralidade

A palavra letramento surgiu a partir do termo literacy, que inicialmente fora traduzido como alfabetização. Na busca de uma maior precisão quanto ao termo letramento, alguns estudiosos (CARVALHO, 2005; MARCUSCHI, 2007, TFOUNI, 2006) propõem que sejam feitas algumas reflexões. Uma delas baseia-se na distinção entre os dois termos (alfabetização e letramento). Segundo Soares (2004 apud RIBEIRO, 2004), a alfabetização é aquisição da tecnologia da escrita, ou seja, trata-se da aquisição das habilidades básicas para que o indivíduo possa ler e escrever, tais como as habilidades de “codificação de fonemas em grafemas e decodificação de grafemas em fonemas, as habilidades motoras de manifestação de instrumentos e equipamentos para que a codificação e decodificação possam ocorrer”. (p. 91)

Quanto ao uso efetivo da tecnologia da alfabetização em práticas sociais que envolvem a língua escrita, dá-se o nome de letramento, isto é, o letramento é o uso que o cidadão faz da escrita de acordo com o contexto social do qual ele participa. SOARES (2004 apud RIBEIRO, 2004).

Diante dessa distinção inicial, percebe-se que dentro da sociedade moderna não basta que o indivíduo seja apenas alfabetizado. Ler e escrever são duas habilidades importantes para a vida em sociedade, mas somente o ato de codificar e decodificar caracteres da língua não garante a participação crítica e cidadã do sujeito nela. É preciso que a escola se preocupe não só em alfabetizar o aluno, mas que o prepare para aplicar os conhecimentos de leitura e escrita em todas as situações, em todos os contextos sociais dos quais ele faz parte. Dessa forma, entende-se que uma educação verdadeiramente democrática e preocupada com a construção do saber do aluno irá desenvolver atividades que contemplem as práticas de alfabetização e as práticas de letramento.

Acredita-se que o ensino de língua materna deva acontecer nas escolas voltando seu olhar para o uso efetivo que o aluno faz e precisa fazer da língua. Entende-se que o conhecimento puro e simples das regras gramaticais não responde aos anseios da sociedade atual. Mais importante do que saber o nome das classes gramaticais, é saber quando e onde empregá-las.

No que diz respeito à relação oralidade-letramento, Marcuschi (2007) afirma que a oralidade é “uma prática social interativa para fins comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora, que se realiza, nos contextos sociais, partindo de situações mais informais para situações mais formais” (p. 25). O letramento, segundo o mesmo autor, envolve as diversas formas de escrita na sociedade e pode ir desde a apropriação mínima da escrita até a uma apropriação mais profunda. Para

Mascuschi (2007), letrado é o indivíduo que participa de eventos de letramento e não somente aquele que faz uso formal da escrita.

Ao analisar ambas as definições, observa-se que uma corrobora o desenvolvimento da outra, ou seja, tanto a oralidade quanto o letramento, enquanto práticas voltadas para a sociedade, precisam ser desenvolvidas no âmbito escolar de forma que, a partir delas, o aluno tenha condições de participar de eventos de letramento e que possa ir além do uso formal da escrita. Marcuschi (2007, p. 22) destaca que: “na sociedade atual, tanto a oralidade quanto a escrita são imprescindíveis, trata-se, pois, de não confundir papéis e seus contextos de uso, e de não discriminar seus usuários”.

Durante muitos anos, fala e escrita foram modalidades de uso da língua concebidas de forma dicotômica, conforme afirma Marcuschi (2007). Tal dicotomia contribuiu para que muitos teóricos, estudiosos e professores da língua passassem a crer que houvesse uma supremacia da língua escrita sobre a língua falada. No entanto, estudos recentes (MARCUSCHI, 2007; FÁVERO, 2005, SILVA, 2001 entre outros pesquisadores) destacam que a modalidade oral é tão importante para a sociedade moderna quanto a modalidade escrita e conferem especial atenção aos estudos que envolvem a primeira. Marcuschi (2007) reforça essa idéia ao destacar que “atualmente, oralidade e letramento são tidas como atividades interativas e complementares no contexto das práticas sociais e culturais” (p.16). Nesse sentido, não há por que primar por uma das modalidades. É preciso criar condições satisfatórias para que ambas sejam contempladas na escola, de forma que o aluno chegue a dominar e a usar bem tanto uma, quanto outra e que possa, por meio do uso consciente das duas modalidades, participar da sociedade de maneira mais crítica e ativa.

Marcuschi (2007, p. 45) mostra que os estudos acerca da língua falada e da língua escrita têm trazido resultados importantes, porém ainda muito limitados para ambas. O autor afirma que, apesar dessas limitações, esses estudos já têm dado contribuições e chegado a conclusões importantes acerca do ensino da língua. Eis algumas:

“as semelhanças são maiores do que as diferenças tanto nos aspectos estritamente lingüísticos quanto nos aspectos sociocomunicativos; as relações de semelhanças e diferenças não são estanques nem dicotômicas, mas contínuas ou pelo menos graduais; as relações podem ser mais bem compreendidas quando observadas no contínuo dos gêneros textuais; muitas das características diferenciadas atribuídas a uma das modalidades são propriedades da língua; não há qualquer diferença lingüística notável que perpasse o contínuo de toda a produção falada ou de toda a produção escrita, caracterizando uma das modalidades; tanto a fala quanto a escrita, em todas as suas formas de manifestação textual, são normatizadas”.

A partir dessas colocações, acredita-se que é preciso haver um esforço coletivo no sentido de que a escola possa desenvolver atividades que envolvam ambas as modalidades, uma vez que as características entre elas mais as unem do que as separam. É importante também perceber que para a sociedade moderna o domínio de apenas uma das modalidades torna-se um insuficiente, pois não atende às necessidades nem da sociedade nem do mercado de trabalho, que busca por profissionais que dominem diversos tipos de linguagens, isto é, linguagem oral, escrita, tecnológica, etc.

Assim, o autor (op. cit.) enfatiza que ambas as modalidades, mesmo respeitando suas características próprias, podem (e “devem”) interagir e se complementar, uma vez que não caracterizam dois sistemas lingüísticos.

Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas sociais, dialetais e assim por diante. As limitações e os alcances de cada uma estão dados pelo potencial do meio básico de sua realização. (p. 17)

Não obstante essas informações percebe-se, ainda no século XXI, a tendência de se ver a fala e a escrita como modalidades de uso opostas e não como um continuum. Isso pode ser justificado pela ênfase dada às regras da língua e não aos usos que se faz da mesma. Marcuschi (2007) destaca quatro tendências de abordagem do tratamento da língua dentro da relação oralidade-escrita:

A primeira tendência caracteriza-se por abordar uma dicotomia estrita entre oralidade- escrita. Dentro dessa concepção, a língua falada e a língua escrita são apresentadas em dois blocos com características distintas, como pode ser observado no quadro abaixo proposto por MARCUSCHI (2007).

Quadro 8: Língua falada e escrita

Fala Escrita Contextualizada Descontextualizada Dependente Autônoma Implícita Explícita Redundante Condensada Imprecisa Precisa Não-normatizada Normatizada Fragmentária Completa Não-Planejada Planejada Fonte: MARCUSCHI, 2007, p. 27

A partir do quadro sinótico acima esboçado, chega-se a algumas conclusões, tais como: a fala é caracterizada como um “erro”, como uma estrutura simples, informal, concreta e que precisa necessariamente de um contexto para ser entendida. Já a escrita, seria o retrato do bom uso da língua, teria uma estrutura complexa, formal e abstrata. (FÁVERO, 2005; MARCUSCHI, 2007; BAGNO,1999)

Essa foi uma tendência aceita por muitas décadas no ensino de língua materna no Brasil, o que resultou em muitos fracassos no âmbito da linguagem e contribuiu para que muitas crianças vissem a escola não como um lugar de aprendizagem, mas como um lugar onde elas tinham que aprender uma linguagem que nem sempre era aquela que tinham em seus lares.

Essa informação é muito importante, pois tal tendência acaba por desconsiderar o conhecimento prévio dos alunos. Agindo dessa maneira, a escola coopera para que continue a existir o preconceito lingüístico que aceita apenas como certo o uso da variante de prestígio da língua, desconsiderando, portanto, as outras.

A segunda tendência apresentada por Marcuschi (2007), denominada de fenomenológica, de caráter estruturalista, foi postulada por antropólogos, psicólogos e sociólogos para identificar as mudanças que surgiram na sociedade motivadas pela escrita.

Para Marcuschi (2007), trata-se de uma tendência não muito adequada quando se deseja observar fatos da língua, uma vez que ela considera a questão da estrutura lingüística a partir de uma visão global, não dando ênfase a particularidades inerentes à mesma. Nesse contexto, fala e escrita se estruturam da seguinte forma:

Quadro 9: Cultura oral e letrada

Cultura oral Cultura letrada

Pensamento concreto Pensamento abstrato

Raciocínio prático Raciocínio lógico

Atividade artesanal Atividade tecnológica

Cultivo da tradição Inovação constante

Ritualismo Analiticidade

Fonte: MARCUSCHI, 2007, p. 29

Dentro da perspectiva fenomenológica de ensino, a língua ainda é vista de maneira estanque. Acredita-se que a segunda tendência, ainda permeada pelos preconceitos da sociedade, não contribui para que haja um ensino da língua materna mais justo e menos excludente.

A terceira tendência descrita pelo autor (op.cit.) possui uma característica variacionista e trata da escrita e da fala “sob o ponto de vista dos processos educacionais e faz propostas

específicas a respeito do tratamento da variação na relação padrão e não-padrão lingüístico nos contextos do ensino formal”. (MARCUSCHI, 2007, p. 31)

Essa tendência cria a possibilidade de ambas as modalidades (oral e escrita) coexistirem no ambiente escolar como um continuum. A língua passa a ser vista de maneira mais ampla e o fato de levar em consideração a relevância da variedade para qualquer comunidade de fala é algo muito importante e que muito contribui para que haja mudanças no ensino da língua.

Na perspectiva variacionista, oralidade e escrita apresentam características menos excludentes e mais comuns. É possível haver uma interação entre as duas modalidades como se pode ver abaixo:

Quadro 10: Oralidade e escrita na perspectiva variacionista

Fala e escrita apresentam:

Variedades não-padrão Variedade padrão

Língua coloquial Língua culta

Normas não-padrão Norma padrão

Fonte: MARCUSCHI, 2007, p. 31

A última tendência foi classificada pelo autor acima citado como sociointeracionista. Nessa tendência, as relações que se estabelecem entre a oralidade e a escrita acontecem de maneira dialógica. A língua é concebida como um fenômeno interativo e dinâmico. Tanto a fala quanto a escrita apresenta dialogicidade, usos estratégicos, funções interacionais, envolvimento, negociação, situacionalidade, coerência, dinamicidade. É importante ressaltar que a quarta tendência abre espaço para inúmeras e relevantes mudanças no ensino de língua materna, porém acredita-se que ela sozinha não dará conta de resolver todas as dificuldades de linguagem que os alunos apresentam.

Segundo Marcuschi (2007), a quarta tendência ainda não possui uma explicação e um rigor quanto à descrição dos fenômenos da língua, precisando, dessa forma, de um apoio da Análise da Conversação etnográfica, aliada à Lingüística do Texto, em busca de se conseguir resultados mais seguros e com um grau maior de adequação tanto prática quanto teórica.

O estudo dessas tendências contribui de forma significativa para que se entenda que existem perspectivas diferenciadas que apresentam formas distintas quanto ao tratamento dado à língua. É importante destacar que, dependendo da abordagem escolhida, a língua poderá ser entendida tanto como um sistema dicotômico quanto um sistema interativo/dialógico, e que tal escolha poderá contribuir para que os problemas que envolvem a linguagem oral e a escrita possam ser, pelo menos, amenizados.

Por esses motivos, torna-se imprescindível que se insiram nos conteúdos e nos programas de língua portuguesa informações sobre a linguagem oral, uma vez que essa possui, segundo Castilho (1990, p. 121 apud RAMOS, 1997, p. IX), muitos processos que não aparecem na língua escrita.

A partir da concepção de que a língua deve ser ensinada na perspectiva de um continuum ao longo do qual se distribuam ambas as modalidades, os PCNs (1997) traçam os seguintes objetivos:

1. Expandir o uso da linguagem em instâncias privadas e utilizá-la com eficácia em instâncias públicas, sabendo assumir a palavra e produzir textos tanto orais como escritos, coerentes, coesos, adequados a seus destinatários, aos objetivos a que se propõem e aos assuntos tratados. 2. Utilizar diferentes registros, inclusive os mais formais da variedade lingüística valorizada socialmente, sabendo adequá-los às circunstâncias da situação comunicativa de que participam.

3. Conhecer e respeitar as diferentes variedades lingüísticas do português falado.

4. Compreender textos orais e escritos com os quais se defrontam em diferentes situações de participação social, interpretando-os corretamente e inferindo as intenções de quem os produz. (p. 41-42)

Sabemos que essa não é uma tarefa fácil e nem simples de fazer, tendo em vista que, tanto na linguagem oral quanto na escrita, tem-se elementos bastante complexos que requerem um planejamento que leve em consideração o conhecimento prévio que os alunos levam para o ambiente escolar, perceba de que maneira cada conteúdo ministrado está sendo útil e necessário para que o educando possa desenvolver-se de maneira autônoma. E finalmente, aprofundar esses conteúdos não só como forma de vencer conteúdos, mas como forma de possibilitar ao aluno uma oportunidade de ampliar suas competências.