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4.1 O letramento na classe de LE com surdos

4.1.4 Letramento e surdez

Para muitos pesquisadores da área da surdez, o surdo passa por sérias dificuldades ao longo de sua vida. Tais problemas decorrem, em grande parte, de sua situação

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linguística que dificulta suas interações no seio da comunidade ouvinte majoritária. Conhecer as particularidades que envolvem o bilinguismo do surdo, o processo de aquisição da L1 e da L2, assim como o papel das diferentes línguas que ele utiliza diariamente, é essencial para compreendermos os problemas vivenciados por esse indivíduo tanto na escola, quanto fora dela.

Segundo os defensores da filosofia oralista, essas dificuldades seriam sanadas ou reduzidas por meio da supressão do uso da LS, dando prioridade ao aprendizado sistemático da língua áudio-oral, especialmente da oralização. Nessa concepção, a surdez é concebida como uma deficiência a ser transposta por meio de práticas terapêuticas e do ensino sistemático da língua áudio-oral, tornando o surdo semelhante ao ouvinte. Porém, como vimos no capítulo 2, esse modo de ensino fracassou, pois suas práticas arbitrárias desconsideram a condição do surdo, sua percepção visual do mundo, sua língua e sua cultura.

Em seus primeiros anos de vida, é essencial que a criança surda tenha a oportunidade de interagir com sua família através dos sinais pois, devido à impossibilidade de receber estímulo auditivo, ela não tem como reagir às interações sonoras de seus pais, caso estes sejam ouvintes. Além disso, a ausência de estímulo gestual por parte da família, pode provocar a privação do acesso à linguagem nessa fase inicial da vida, o que resultaria em sérias consequências. Autores como Goldfeld (1997), Quadros (1997) e Ciccone (1990), apontam os riscos do acesso tardio à linguagem pela criança surda, podendo resultar em danos não somente cognitivos, mas também sociais e emocionais. Isto porque a linguagem é percebida muito além da função comunicativa nas interações sociais, mas também com a função da organização do pensamento e da capacidade de abstração. Goldfeld (op.cit.) critica a visão de ensino oralista, pois ao priorizar o trabalho sobre a oralização, muitos outros elementos essenciais para o desenvolvimento do indivíduo são desconsiderados. Para a autora,

Apenas profissionais que igualam o conceito de língua oral com o conceito de linguagem podem acreditar que os anos em que a criança surda sofre atraso de linguagem e bloqueio de comunicação (o que é inevitável quando lhe oferecem apenas a língua oral como recurso comunicativo) não prejudicam o seu desenvolvimento. Se, ao contrário utilizarmos um conceito mais amplo de linguagem e se analisarmos a sua importância na constituição do indivíduo, como ferramenta do pensamento e como a forma mais eficaz de transmitir informações e cultura, perceberemos que somente aprender a falar (oralizar) por meio de um processo que leva tantos é muito pouco em relação às necessidades que a criança surda, como qualquer outra criança, tem. (GOLDFELD, 1997, p.38)

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Por essas razões, é de suma importância que a criança surda possa ter acesso a uma língua que lhe seja transmitida naturalmente desde os primeiros anos de vida.

Quanto à aquisição da L2, a autora (Quadros, 1997, p. 83) aponta três formas distintas: (a) a aquisição simultânea da L1 e da L2 como, por exemplo, no caso de uma criança filha de pais que usam línguas diferentes ou que usam uma língua diferente daquela usada pela comunidade onde vivem, ou ainda, no contexto de uma escola bilíngue; (b) a aquisição espontânea e não simultânea da L2, como quando a pessoa passa a morar em outro país; e (c) a aprendizagem da L2 de forma sistemática, como acontece em escolas de língua estrangeira.

No caso da criança surda, as duas primeiras formas só seriam possíveis se tratássemos da aquisição de duas línguas de sinais diferentes, supondo seu contato com comunidades surdas de outros países. Descartando essa suposição, dentre as três formas de acesso ao aprendizado da L2, de modalidade áudio-oral, somente a terceira se aplica à situação do surdo.

Conforme vimos no capítulo 3, a LIBRAS é adquiria pelo surdo de maneira natural, sem ser ensinada, por meio do contato com outros sinalizadores sejam eles surdos ou ouvintes. Por essa razão, essa deve ser sua L1. Mais tarde, no contexto do ensino formal, a criança surda terá acesso ao aprendizado da L2 por meio da L1, enquanto língua de comunicação. Quadros (1997) aponta que “a necessidade formal do ensino da língua portuguesa evidencia que essa língua é, por excelência, uma segunda língua para a pessoa surda”.

Os estudos sobre o ensino do português com L2 apontam uma série de problemas cultivados ao longo da história, o que trouxe ao surdo uma certa resistência e, em muitos casos, a antipatia frente ao uso dessa língua. Isso ocorre devido a razões diversas, dentre as quais destacamos as práticas pedagógicas inadequadas. A esse respeito, Quadros enfatiza que

[...] A aquisição do português escrito por crianças surdas ainda é baseada no ensino do português para crianças ouvintes que adquirem o português falado. A criança surda é colocada em contato com a escrita do português para ser alfabetizada em português seguindo os mesmos passos e materiais utilizados nas escolas com as crianças falantes de português. Várias tentativas de alfabetizar a criança surda por meio do português já foram realizadas, desde a utilização de métodos artificiais de estruturação de linguagem até o uso do português sinalizado (QUADROS, 2006, p.23)

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É preciso que se entenda que o surdo não aprende da mesma maneira que ouvinte, que sua percepção do mundo é visual, que a língua que lhe permitirá uma comunicação plena e efetiva é a LS, sua L1, e que, se não houver uma adaptação total do processo de ensino-aprendizagem da língua áudio-oral (e das outras disciplinas presentes no currículo escolar) à suas especificidades, o aprendizado nunca será eficaz.

Botelho (2002) enfatiza essa ideia, defendendo um ensino bilíngue de fato, que promova ações dentro da escola e mobilize os professores quanto a elaboração de práticas adaptadas. Para a autora,

O surdo se torna “atrasado” não porque não ouve ou porque usa a língua de sinais e, sim, porque a escola e as políticas educacionais não levam em conta a necessidade de um ensino baseado na percepção visual. Houvesse escolas de fato bilíngues, com professores preocupados com a aquisição da língua materna e da língua escrita pelo surdo, como língua estrangeira19, investimento

na produção de recursos didáticos visuais, oferta plena de programas televisivos legendados, entre outras condições, e nenhuma informação seria perdida. (BOTELHO, 2002, p. 94)

Para que isso ocorra realmente, é preciso enfatizar a língua de sinais como L1, colocando-a efetivamente como a base para o ensino da língua portuguesa. Para Quadros (1997),

[...]a língua de sinais é o meio de trocas informações com pessoas surdas. Cabe observar que, com muita frequência, os professores reclamam que os conteúdos escolares são difíceis de serem transmitidos para os alunos. Certamente, a dificuldade reside na limitação dos próprios professores em relação à LIBRAS e nas limitações dos alunos decorridas da falta de oportunidade de terem um desenvolvimento linguístico, cognitivo e social adequado. (QUADROS, 1997, p. 110)

Como é sabido, o português constitui a base dos conteúdos formais escritos e da maior parte das avaliações na escola. Entretanto, por terem dificuldades com a estrutura formal dessa língua, muitos surdos não conseguem compreender os conteúdos abordados em português nos livros didáticos, enfrentando barreiras, também, na produção escrita em L2, especialmente nas avaliações escritas formais. Esses problemas são enfrentados pelo

19 Concordamos como a reflexão da autora, contudo, entendemos que a língua escrita praticada no país

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surdo desde a alfabetização em L2, acompanhando-o no decorrer de sua escolaridade e, também, fora da escola. Para Lima et al.,

O aspecto mais flagrante na aquisição de uma língua oral como L2 pela criança surda é que ela deve adquirir propriedades no nível fonológico e prosódico que seu aparato sensorial auditivo está impedido (ou parcialmente impedido) de apreender. No entanto, a criança surda pode ter acesso à representação gráfica dessas propriedades, que é a modalidade escrita da língua oral. (LIMA et al., 2004, p.77)

Esse acesso se dará por meio de um ensino formal estrutural da língua áudio-oral, que, pautado na proposta de ensino bilíngue, terá a LS como língua de comunicação e de ensino e, com o apoio desta, o educador proporá estratégias de exposição do educando surdo ao input da L2. Mas para que o surdo aprenda, de fato, a L2, não basta, simplesmente, trazer a LS para a sala de aula. É preciso que, desde a alfabetização, o professor implemente uma pedagogia voltada para o letramento, que possibilite à criança surda a uma visão prática dos usos sociais da leitura e da escrita. Corroborando essa ideia, Shimazaki pontua que “o ensino de leitura para estudantes surdos (...) deve preocupar-se não somente com a apropriação do código, ou seja, com a dimensão linguística; deve voltar-se à dimensão social” (SHIMAZAKI, 2008, p. 91).

No próximo tópico refletiremos sobre essas questões a partir das dos princípios norteadores do letramento enquanto base para o ensino das línguas áudio-orais ao público surdo.