• Nenhum resultado encontrado

O bilinguismo do surdo e a educação bilíngue

Em nossa investigação, utilizamos o termo bilinguismo aplicado a duas vertentes diferentes. A primeira, como vimos no tópico anterior, diz respeito a uma filosofia educacional voltada para a instrução do público surdo, na qual leva-se em conta suas especificidades linguísticas, valorizando-se a língua de sinais e a cultura surda. A segunda vertente, refere-se ao indivíduo, àquele que faz uso de duas ou mais línguas, sejam elas áudio-orais ou viso-gestuais, como veremos mais detalhadamente a seguir.

Existem diversas definições para o termo bilinguismo aplicado ao indivíduo. Suas variáveis podem ser bastante complexas, de modo que a delimitação de um conceito preciso é essencial para determinarmos o caso específico dos surdos, ponto crucial em nosso estudo. Conforme Mello (1999),

Para muitas pessoas, o bilinguismo é uma exceção e o falar bilíngue é frequentemente, associado à noção de perfeição, ou seja, bilíngue seria uma espécie rara que fala, lê, escreve e compreende duas ou mais línguas de maneira igualmente fluente, sem sotaque e sem quaisquer outros traços que permitam distingui-lo do monolíngue, quando fala uma de suas línguas. No entanto, a realidade não é bem assim: estima-se que o bilinguismo está presente em quase todas as nações do mundo, em todas as classes sociais e em todas as faixas etárias e sua aquisição ocorre em diferentes fases da vida. (MELLO, 1999, p.18)

As primeiras definições de bilinguismo difundidas no século XX tinham tendência a restringi-lo ao domínio pleno de duas línguas por um indivíduo como se este fosse um usuário nativo de ambas, como precisou Bloomfield (1935). Em oposição à essa ideia, Macnamara (1967), definiu o indivíduo bilíngue como aquele que possui uma competência mínima em ao menos uma das quatro habilidades linguísticas, a saber, compreensão oral e escrita, e produção oral e escrita, em uma língua diferente de sua língua materna.

A partir dos estudos da sociolinguística, desenvolvidos especialmente a partir da década de 1960, essas concepções foram se modificando. Passou-se a considerar não

44

somente os interlocutores e suas competências linguísticas, mas também os usos das línguas em questão e o contexto social no qual as interações ocorrem.

Em concordância com Grosjean (2004), entendemos que conceber como bilíngues unicamente aqueles que poderiam se passar por monolíngues em duas (ou mais) línguas é, na prática, uma visão pouco realista que deixaria de englobar muitos indivíduos que fazem uso diário de duas ou mais línguas sem, contudo, dominá-las igualmente nas diferentes habilidades de compreensão e de produção. Para o autor, o bilinguismo está relacionado ao uso e não ao domínio das línguas, definindo, assim, como bilíngue aquele que utiliza duas ou mais línguas (ou dialetos) nas suas interações sociais cotidianas.

Essa prática pode ser observada no caso do indivíduo surdo que interage diariamente nas comunidades surda e ouvinte por meio da LS e da língua áudio-oral, especialmente na modalidade escrita. Nesses contextos, o domínio dessas línguas não é necessariamente “perfeito” em todas as competências de comunicação, podendo apresentar variações, desenvolver-se em diferentes níveis, nas diferentes modalidades que serão utilizadas de acordo com as necessidades do surdo face a seu interlocutor surdo ou ouvinte.

Cabe ressaltarmos que o bilinguismo do surdo deve ser visto de forma diferente dos outros tipos de bilinguismo por duas razões principais. Em primeiro lugar, como foi mencionado, por seu caráter bimodal, ou seja, pelas diferentes modalidades de língua que ele veicula, sendo uma viso-gestual e a outra áudio-oral. Em segundo lugar, por tratar-se de um bilinguismo de minorias no qual sua língua materna, a LS, é a língua minoritária, não predominante no local onde ele vive; e a língua áudio-oral é a língua majoritária, que ele utiliza na forma escrita e, em alguns casos, na forma oral.

Vonen (1996) propôs o termo “bilinguismo surdo” para definir esse caso específico de bilinguismo. Para o autor, além de ser bimodal, o bilinguismo surdo caracteriza-se pela impossibilidade do acesso direto e natural do surdo à modalidade áudio-oral. Burgat (2009) relaciona, ainda, outras especificidades que caracterizam o bilinguismo surdo: as línguas de sinais são línguas dominadas em relação à línguas áudio- orais, notadamente, devido ao número de praticantes dessas línguas; o bilinguismo surdo não possui um espaço geográfico determinado, assim, as línguas de sinais são consideradas línguas sem território; as línguas de sinais não tem registro escrito; para uma grande maioria dos surdos, a língua de sinais não é praticada no meio familiar. Posto tudo isso, como, na prática, o surdo se torna bilíngue?

45

Ao longo de sua vida, o indivíduo surdo poderá ter acesso à LS e à língua áudio- oral de maneiras diversas em função de fatores como o seu grau de surdez, o contexto no qual ele vive (família de ouvintes, mista ou de surdos), a existência ou não de contato com a comunidade surda local e a língua de comunicação e de educação escolhidas por seus pais.

Fernandes aborda a condição da surdez, ressaltando que

[...] embora brasileiras, as crianças surdas necessitam de uma modalidade linguística que atenda as suas necessidades visuais espaciais de aprendizagem, o que significa ter acesso à Libras, assim que for diagnosticada a surdez, para suprir as lacunas que a oralidade não preenche em seu processo de desenvolvimento da linguagem e conhecimento de mundo. Essa situação configura o bilinguismo dos surdos brasileiros: aprender a língua de sinais, como primeira língua, preferencialmente de zero a três anos, seguida do aprendizado do português, como segunda língua (FERNANDES, 2007, p.2).

Outros estudiosos concordam que o aprendizado precoce da LS é essencial para o desenvolvimento cognitivo da criança surda. Os trabalhos de Petitto e Marentette (1991) apontam que o balbucio manual do bebê surdo acontece naturalmente, de forma semelhante ao balbucio oral do bebê ouvinte. Ambos poderão evoluir de acordo com os estímulos, o input proporcionado pela família, seja ela surda ou ouvinte, favorecendo, assim, o desenvolvimento de uma LS ou de uma língua áudio-oral.

Entretanto, observamos que, diferentemente da aquisição natural das línguas áudio-orais pelos ouvintes, raramente as LSs são transmitidas de uma geração a outra pois, como vimos anteriormente, a maioria dos surdos nascem de pais ouvintes, não praticantes da LS. Soares chama a atenção para essa realidade levantando a seguinte questão:

Como uma criança surda, filha de pais ouvintes que nunca viram a língua de sinais, não conhecem pessoas surdas e nem imaginam o que fazer para comunicarem-se com seu filho, vai adquirir uma primeira língua? Esse é um grande obstáculo para o desenvolvimento psicossocial da criança surda e para o ensino eficiente da língua portuguesa, pois a criança nem sequer nasce em um ambiente que favoreça o desenvolvimento de sua primeira língua, no caso do Brasil, a LIBRAS. Nota-se que não é um problema da criança por ela ser surda, mas um problema social que pode gerar consequências irreversíveis no desenvolvimento da criança caso não seja oferecido a ela o direito de ter acesso à aquisição de uma língua de forma natural. (SOARES, 1997, p.29-31)

Muitos pesquisadores concordam que, caso a criança surda não tenha acesso à LS nos seus primeiros anos de vida, seu desenvolvimento cognitivo e psicossocial pode estar

46

comprometido. Mas para outros, tal situação pode ser remediada desde que essa criança tenha tido contato com algum sistema gestual de comunicação, o que lhe permitiria o acesso à internalização de conceitos, ainda que abstratos, semelhantemente à criança surda que teve acesso precoce à LS. A esse respeito, Goldfeld ressalta que

A dificuldade ao acesso a uma língua que seja oferecida natural e constantemente leva a criança surda a um tipo de pensamento mais concreto, já que é pelo diálogo e aquisição do sistema conceitual que ela pode se desvincular cada vez mais do concreto, internalizando conceitos abstratos. A aprendizagem tardia de uma língua, como é o caso de muitos que aprendem a Libras na adolescência ou na fase adulta, não possibilita a reversão total desse quadro. (GOLDFELD, 2002, p. 57)

A autora comenta, ainda, sobre as dificuldades cotidianas enfrentadas pelo surdo em decorrência do atraso de linguagem, destacando que

Em todas as situações cotidianas, o surdo que não adquire uma língua se encontra em dificuldade e não consegue perceber as relações e o contexto mais amplo da atividade em que se encontra, já que para tal seria necessário que seu pensamento fosse orientado pela linguagem. Hoje, sabe-se que estas dificuldades cognitivas são decorrentes do atraso de linguagem, mas a comunidade geral ainda não tem esta compreensão e em muitas situações ainda percebe-se o surdo sendo tratado como um incapaz. (Ibidem, p.58)

Por essas razões, os especialistas bilinguismo enquanto filosofia educacional defendem o acesso do surdo à língua de sinais como L1, a qual lhe garantirá o desenvolvimento da linguagem e do pensamento; e à língua áudio-oral como L2, por meio da qual ele poderá fazer valer seus direitos enquanto cidadão na comunidade majoritária ouvinte.

Quanto aos surdos que adquirem a LS tardiamente, cabe observarmos que, graças a sua sensibilidade ao aspecto visual, ele tem uma propensão a adquiri-la rápida e naturalmente. Por conseguinte, mesmo nos casos em que o surdo tenha sido exposto, primeiramente, à língua áudio-oral, é a LS que lhe trará maior confiança para comunicar- se com maior desenvoltura e eficácia, o que configura que esta deve ser considerada sua L1. Já na concepção de bilinguismo do surdo para Anne Mahé (2000), existe uma distinção entre primeira língua e língua materna. Para a autora, a LS deve ser considerada uma língua materna (LM) somente para 5% dos surdos, aqueles nascidos de pais surdos,

47

pois haveria entre eles uma aquisição genuína da LS transmitida naturalmente de pais para filho. Quanto aos 95% restante, a LS deve ser considerada sua primeira língua (L1), ainda que o acesso ao aprendizado desta seja tardio. Em ambos os casos, a língua áudio- oral reafirma-se como sua L2.

Diferentemente dessa aquisição espontânea, o aprendizado da língua áudio-oral pelo surdo se dá em um processo longo e bastante complexo. De forma arbitrária e não natural, o surdo só poderá aprender a língua escrita por meio de repetições e sistematizações centradas nas regras gramaticais e na estrutura da língua. De acordo com Quadros, “qualquer língua oral exigirá procedimentos sistemáticos e formais para ser adquirida por uma pessoa surda” (QUADROS, 1997, p.67). Por essas razões, a autora reafirma que a LS deve ser considerada a L1 do surdo, ao passo que a língua áudio-oral será sua L2.

Paralelamente a essas particularidades individuais, Goldfeld (1997) destaca duas diferentes maneiras possíveis para se adquirir a LS e a língua áudio-oral numa perspectiva de ensino bilíngue. Na primeira, a criança surda deve adquirir a língua de sinais e a língua áudio-oral na modalidade oral desde os primeiros anos de idade. Em função de seu contexto econômico-social ela poderá ter o acompanhamento de um fonoaudiólogo e de outros profissionais especializados. Mais tarde, essa criança acessa a escola onde é alfabetizada na língua áudio-oral, aprendendo a escrita e aprimorando sua oralização. Na segunda maneira, a criança adquire a língua de sinais e a língua áudio-oral somente na modalidade escrita, não desenvolvendo a oralização.

Cabe ressaltarmos que nem todo surdo deseja oralizar. Em nossos encontros com surdos adultos, tivemos a oportunidade de conhecer surdos brasileiros e franceses bilíngues que se recusavam a “falar”. Estes, apesar de terem tido acesso ao desenvolvimento da oralização e da leitura labial, concebiam a oralização como algo não

natural para o surdo e não se sentiam confortáveis em “falar”. Alguns nos relataram,

ainda, que a estranheza manifestada por certos ouvintes ao perceberem sua forma de oralizar causava-lhes constrangimento.

Para muitos pesquisadores (Quadros, 1997; Sanches, 1993), a língua áudio-oral na perspectiva da educação bilíngue deve ser adquirida somente na modalidade escrita, pois o desenvolvimento da oralidade é um processo totalmente artificial para o surdo. A esse respeito, Rocha-Coutinho pontua que

48 Um deficiente auditivo não pode adquirir uma língua falada como língua nativa porque ele não acesso a um sistema de monitoria que forneça um feedback constante para sua fala. A língua falada sempre será um fenômeno estranho para o surdo, nunca algo natural. Os deficientes auditivos, provavelmente experimentam um grau considerável de ansiedade ao usar a língua oral porque eles não têm nenhuma forma de controlar a propriedade técnica e social de sua fala, exceto através de movimentos labiais e da relação de pessoas a sua fala. O deficiente auditivo apesar de contar com expressões faciais e movimentos corporais, não possui uma das fontes de informação mais rica da língua oral: monitorar sua própria fala e elaborar sutilezas através da entonação, volume de voz, etc. (ROCHA-COUTINHO, 1986, p.79-80)

Retomando nossa reflexão sobre os aspectos que uma proposta de ensino bilíngue para surdos envolve, é importante observarmos, além das línguas em questão, as culturas nas quais a criança surda está inserida. Quadros chama a atenção para essa realidade, enfatizando que

A comunidade surda apresenta uma cultura própria que deve ser respeitada e cultivada. Ao mesmo tempo, a comunidade ouvinte tem sua cultura. Por isso uma proposta puramente bilíngue não é viável. Uma proposta educacional, além de ser bilíngue, deve ser bicultural para permitir o acesso rápido e natural da criança surda à comunidade ouvinte e para fazer com que ela se reconheça como parte da comunidade surda. (QUADROS, 1997, p. 28)

A partir dessa reflexão tomamos as observações de Grosjean (2004) quanto à situação linguística e cultural do surdo, segundo as quais, além de bilíngue, o surdo é, também, um indivíduo bicultural. Existem várias definições para o termo “cultura”. Segundo o autor, a cultura está relacionada a todos os aspectos da vida de um grupo como a organização social e política, as regras, os comportamentos, as atitudes, as crenças, os valores, os hábitos, as tradições, entre outros. Nessa perspectiva, todo indivíduo pertenceria a um certo número de culturas ou de redes culturais, como as culturas maiores (referentes à comunidade nacional, à comunidade linguística, à religião, etc.), e as culturas menores (referentes ao trabalho, ao esporte, ao lazer, etc.).

Para o autor, os indivíduos podem ser considerados biculturais quando apresentam três traços distintos: “eles participam da vida de duas ou várias culturas; se adaptam, ao menos em parte, a essas culturas (no que se refere às atitudes, aos comportamentos, aos valores, etc.); e combinam e sintetizam certos traços de cada uma delas” (GROSJEAN, 2004, p.65)13. Essas características podem ser observadas no caso do surdo que, ao

13 « [...] ils participent à la vie de deux ou plusieurs cultures, ils s’adaptent, du moins en partie, à ces cultures

(au niveau des atitudes, comportements, valeurs, etc.) et ils combinent et synthétisent certains traits de chacune d’elles. » (GROSJEAN, 2004, p.65)

49

envolver-se diariamente em situações dentro das comunidades surda e ouvinte, torna-se, inevitavelmente, um indivíduo bicultural.

No próximo tópico, abordaremos a questão do trabalho pedagógico sobre o bilinguismo e o biculturalismo do surdo a ser desenvolvido na escola a partir da possibilidade do seu contato com professores não somente ouvintes, mas, também, surdos.