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Os aportes das práticas de letramento no ensino do português como L2

4.1 O letramento na classe de LE com surdos

4.1.5 Os aportes das práticas de letramento no ensino do português como L2

A temática do letramento do educando surdo tem levantado discussões entre os profissionais que trabalham com esse público, especialmente a partir do Ensino Fundamental, pois tem-se percebido que grande parte desses educandos possuem habilidades de codificação e decodificação, ou seja, são alfabetizados, porém apresentam muita dificuldade em apreender o sentido dos textos que leem e em produzir textos coesos e coerentes. Para Karnopp e Pereira, “essa dificuldade pode ser atribuída não só às concepções de leitura e de escrita que embasam as práticas pedagógicas utilizadas na escola, mas também ao pouco conhecimento do português que quase a totalidade dos surdos apresenta quando chega à escola” (KARNOPP, PEREIRA, 2012, p. 126).

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Em relação às concepções de leitura e escrita, é necessário que retomemos a distinção entre alfabetização e letramento, refletindo sobre o desenvolvimento de ambos na escola. Interessada no ensino da codificação e da decodificação, a alfabetização percebe a leitura como um código de transcrição gráfica das unidades sonoras, correspondendo à ação de ensinar a ler e a escrever. Já o letramento, grosso modo, observa os usos sociais da leitura e da escrita, correspondendo à condição daquele que não somente sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais da escrita.

Retomando, também, a questão do bilinguismo do surdo e da educação bilíngue abordada no capítulo 2, entende-se que a forma como a surdez é percebida tem uma implicância fundamental no processo de ensino-aprendizagem. Em uma proposta de ensino bilíngue, na qual os aspectos linguísticos, culturais e sócio-históricos do surdo devem ser levados em conta, é essencial que o educador conheça a LIBRAS e tenha a capacidade de adaptar suas práticas às especificidades do educando.

O ensino da língua portuguesa como L2 para surdos pode representar uma importante contribuição para nossa investigação sobre as abordagens didático- pedagógicas no ensino do FLE para surdos. Essa concepção se deve a dois fatores principais. O primeiro, diz respeito à modalidade áudio-oral do português, semelhante ao francês. O segundo, corresponde ao fato de ambas as línguas terem a mesma origem, ou seja, são línguas neolatinas.

Partindo dessa premissa, tomamos alguns aspectos metodológicos que têm sido propostos por professores de português no ensino dessa língua como L2 ao público surdo, a partir dos quais poderemos observar seu desenvolvimento e propor adaptações para contexto do FLE para surdos.

Levando em conta os aspectos culturais do surdo, Quadros e Schmiedt (2006) apontam algumas práticas recorrentes no seio dessa comunidade como a produção de estórias espontâneas, o relato de casos, e a contação de piadas em LIBRAS, compartilhadas entre os surdos em encontros informais. Ao considerarem esse elemento comum no dia a dia do surdo, as autoras propõem um ensino do português para crianças surdas pautado no relato e na produção de estórias em LIBRAS. As estórias produzidas e transmitidas pelos surdos de uma geração a outra constituem uma importante literatura em sinais, a qual a criança surda observa, aprende e reproduz. Isso constitui uma etapa importante para a alfabetização da criança surda, pois “os alunos surdos precisam tornar-

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A partir do trabalho sobre estórias e literatura em LIBRAS, o professor, praticante da LIBRAS, poderá explorar os aspectos sintáticos e semânticos dessa língua, a expressão facial, as configurações de mãos, entre tantas outras particularidades estruturais referentes às LSs, levando a criança a perceber a riqueza e a complexidade desse sistema linguístico, preparando-a para o aprendizado da L2 e levando-o à conscientização de que esta é igualmente rica e complexa, embora de outra modalidade. Como afirmam as autoras,

O ensino da língua de sinais é um processo de reflexão sobre a própria a língua que sustenta a passagem do processo de leitura e escrita elementar para um processo mais consciente. Esse processo dará sustentação para o ensino da língua portuguesa que pode estar acontecendo paralelamente. (Op. cit., p.32)

Por esse prisma, entendemos que o conhecimento, ou melhor, o domínio da LIBRAS pelo educando é de suma importância para que ele aceda de forma plena ao aprendizado do português. Acontece que, em muitos casos, os surdos chegam à escola sem uma LS bem estruturada, sendo necessário um trabalho específico sobre a LS paralelamente ao ensino da L2. A respeito disso, estudos apontam que a qualidade das produções escritas e a compreensão leitora em L2 pelas crianças surdas, filhas de pais surdos, ou seja, aquelas que tiveram o input da LS naturalmente nas interações familiares, foi superior ao desempenho das produções e leituras dos surdos que não tiveram acesso precoce à LS.

Nesse ponto, poderíamos falar em letramento gestual/em sinais? Mesmo tratando- se de uma língua viso-gestual, seria possível dizer que alguém é letrado ou iletrado em LIBRAS? Seria possível, ainda, caracterizar o nível de letramento gestual/em sinais do indivíduo, surdo ou ouvinte? Quadros e Shmiedt (op.cit.) comentam sobre as contribuições que o letramento em língua materna podem trazer ao aprendizado de uma L2, porém, destacam que, no caso do surdo, o letramento em língua materna é impossível, por tratar-se de uma língua viso-gestual e por não haver uma representação escrita reconhecida desta.

Os surdos não são letrados na sua língua quando se deparam com o português escrito [...] Existe a língua escrita da língua de sinais, um sistema não- alfabético que representa as unidades espaciais-visuais dessa língua. No entanto, ela não é difundida ainda. Caso o fosse, os surdos poderiam ser

103 letrados na sua própria língua, o que favoreceria, provavelmente, a aquisição da escrita do português. (QUADROS, SCHMIEDT, 2006, p.33).

Nessa colocação, as autoras se referem ao SignWriting, sistema de escrita das línguas de sinais. Contudo, embora seja utilizado algumas escolas no sul do Brasil, e figure no currículo enquanto disciplina integrante do curso de Licenciatura em Letras- LIBRAS da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), esse sistema não é reconhecido oficialmente no país e sua difusão entre as comunidades surdas do país ainda é muito restrita.

Sob um outro de ponto de vista, ao retomarmos o conceito de multiletramentos apresentado por Rojo (2009), segundo o qual o ato de ler envolveria a articulação de diferentes modalidades de linguagem além da escrita (dentre elas, a imagem estática e em movimento, a fala, a música, os gestos, os sinais, etc.), entendemos que o surdo pode ser considerado um indivíduo letrado em sua LM, ou L1, a língua de sinais. E esse letramento gestual/em sinais poderá evoluir em diversos níveis ao longo de sua trajetória linguística, contribuindo para o aprendizado do português como L2, assim como das línguas estrangeiras.

Ao basear-se nos princípios do letramento para nortear o processo de ensino do português como L2 ao público surdo, o educador deverá implementar práticas metodológicas que, além de acionar e desenvolver estratégias de leitura, conscientizem o educando quanto aos usos sociais da leitura e da escrita nos mais variados contextos.

Dessa forma, o educando poderá desenvolver uma empatia com língua-áudio-oral, tão importante para suas interações cotidianas, em oposição à visão pessimista que tem se propagado entre os surdos há tanto tempo. A esse respeito, Ribeiro e Silva comentam que

Atualmente, a língua de sinais representa a língua do surdo, devido ao reconhecimento do status linguístico da LIBRAS e do espaço que ela vem ocupando nos últimos anos. Para muitos surdos que tiveram sua educação baseada em uma metodologia oralista e foram torturados por uma proposta que por décadas, foi o terror da comunidade surda, a Língua Portuguesa vai continuar sendo tratada como uma “obrigação”. No entanto, negar a Língua Portuguesa já não é uma regra absoluta entre os surdos; pelo contrário, para alguns, ela já é vista com uma segunda língua que tem muito mais a contribuir do que atrapalhar. (RIBEIRO, SILVA, 2015, p.148)

Para que haja uma real motivação do educando surdo face ao aprendizado do português é necessário que, primeiramente, a LIBRAS esteja no centro das interações na

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sala de aula, pois é por meio dela que o surdo lê e apreende o sentido. Em segundo lugar, o educador deverá abandonar as técnicas de leitura trabalhadas com o público ouvinte pois o surdo NÃO aprende como o ouvinte. Ao invés disso, ele deverá conhecer seu educando e adaptar suas práticas pedagógicas à suas necessidades. Em terceiro lugar, o ensino deve estar voltado para o desenvolvimento do letramento, o que constituirá um elemento de motivação para o educando, pois este perceberá que seu aprendizado está diretamente relacionado aos seus usos cotidianos reais de leitura e escrita.